A frase de Bocage que dá título ao artigo adequa-se na perfeição ao nosso guia pela cidade de Setúbal. André Macias nasceu em Lisboa e aos três anos foi viver para Setúbal, local de recordações da sua infância e defende a cidade que o acolheu com o entusiasmo e fervor de um verdadeiro setubalense guiando-nos por uma viagem de sons, cheiros, palavras, luz e cor.
A infância do pai do nosso guia e de André é feita de acasos felizes. Tanto um como o outro, por razões profissionais dos seus progenitores, chegaram a Setúbal e ambos cresceram com o Sado como cenário para as suas histórias de vida. Para a mãe de André, moçambicana, a adaptação foi mais complicada, era uma cidade pequena, sentia “África sempre presente, mas cada vez mais longe”, vivendo algo que «O retorno» de Dulce Maria Cardoso retrata de forma ímpar.
Com um passado romano que permanece pela Serra da Arrábida e que convida a um passeio com raiz histórica, Setúbal foi uma cidade esquecida durante algum tempo e um mero ponto de passagem. Tem uma história ligada ao forte investimento na indústria conserveira durante o século XIX, que atraiu várias pessoas de outras zonas como do Alentejo e Algarve bem como da Europa, em especial os franceses. No século XX, com a dispersão desta indústria para o norte do país, a cidade sadina sofreu as marcas do desemprego, das poucas oportunidades e foi envelhecendo. Mais tarde, foi recebendo outras indústrias ligadas ao cimento, papel, fertilizantes e energéticas, contudo padeceu sempre de alguma marginalização. Hoje, com alguma reconstrução, renovação e organização, Setúbal recuperou de alguns períodos menos positivos e está de cara limpa, mantendo sempre um cenário paradisíaco de serra e mar, que inspira qualquer setubalense a declamar as suas quadras e rimas.
Ligada à tradição piscatória, pelo risco da sua atividade e da privação familiar, os pescadores são eles, voz de inspiração e inspiradores de muitas quadras, que se estendem aos donos dos restaurantes, que ainda hoje “declamam rimas destacando com orgulho o peixe acabado de pescar” ainda saltando com gotas de vida. É disso exemplo o restaurante Tasca do Xico da Cana, que vai já na 3ª geração familiar. André diz “que entre o bafejo do peixe acabado de pescar e a grelha na rua, o dono pegava na sua cana e dava ritmo ao poema”. A poesia é “uma festa por dentro das pessoas”, diria Valter Hugo Mãe no «O filho de mil homens».
André não tem dúvidas, Setúbal respira poesia, “é algo presente em todos os setubalenses. Ajuda ter sido cidade de dois grandes poetas, mas é algo que está nas entranhas”. Tal como uma visita ao Mercado do Livramento ou a “praça”, como é comumente conhecido, um lugar que não há igual. É pitoresco, pelo som dos pregões, pelo movimento frenético dos fregueses, pelo cheiro a frescura e sabor da oferta e pela luz. As palavras de André brilham quando fala do local, diz que “não há melhor início de férias ou remédio para um sofrido regresso à rotina, do que visitar o mercado e comprar peixe acabado de pescar ou a maçã riscadinha de Palmela, (denominação de origem protegida), para colorir a mesa e equilibrar os humores”.
Os humores do poeta Bocage desabafam pela cidade, sendo a Praça e Casa de Bocage disso exemplo. “Nunca li um bom verso que não voasse da página em que foi escrito”, diria Afonso Cruz no «Vamos comprar um poeta”, caso visitasse Setúbal, onde por ruelas e recantos Bocage se autorretrata em poema e se cruza com Luísa Todi, cantora lírica, com conhecida carreira internacional dando nome a uma das avenidas mais importantes da cidade, que preserva o orgulho nestes ilustres.
À semelhança de Sebastião da Gama, poeta e professor, cuja obra é arrebatada pela paisagem de autêntico paraíso da Serra da Arrábida, «um tesouro escondido que apaixonou o poeta, reflectida na sua escrita», comenta brioso o nosso guia. A vaidade prossegue… diz que existem muitas pessoas que vivem em Lisboa e que nunca visitaram a Arrábida e “que surpresas exclamam o desconhecimento desta paisagem de evasão”. Contemplar o nascer e o pôr-do-sol é único, acrescentando que “até é bonito ver chover, é um miradouro…avistamos o estuário vislumbrando Alcácer, Tróia e quase que se vê Lisboa”. Visão 360º, que não cansa o olhar e à qual Sebastião da Gama sem presunção e com dom natural, partilha com o mundo baptizando o quadro como «Serra-Mãe».
O Parque Natural da Arrábida celebra o seu dia a 28 de julho, pois transborda riqueza botânica. Já por si, a serra é um tesouro, contudo não fica por aqui. Ao longo de curvas e contracurvas entre penhascos, surgem praias, todas com uma beleza distinta e única, que com o sistema de acessos permite paz e tranquilidade adaptada a cada um. André destaca Galápagos e Galapinhos como as suas praias de eleição, são “verdadeiros paraísos na terra”. Mas se achávamos que as surpresas tinham terminado, a harmonia do verde da serra e o azul do mar é a prova divina, “quando passeamos de barco e mudamos de perspectiva, desvendamos recantos de encanto e plenitude que é possível esquecer”, reforça André. O valor da fauna e flora marinhas da costa da Arrábida foi também agraciado com a criação de um Parque Marinho contíguo.
Mário Regalado, apelidado de trovador do Sado, escreve uma balada conhecida como um hino da cidade, que qualquer setubalense que se preze saberá pelo menos o refrão:
“Onde é que existe um rio azul igual ao meu
que em certos dias tem mesmo a cor do céu,
minha cidade é um presépio é um jardim
queria guardá-la inteirinha só para mim.”
O orgulho de receber bem, de oferecer a frescura do mar é algo que Setúbal encarna vaidosa, escondendo refúgios no silêncio da vegetação, no mundo de mar e numa cidade aberta ao rio azul, que todos os que a visitam guardam em poema.
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