Bairro Alto. Terra sem lei, onde o domínio pertence não aos mais fortes, mas aos cangalheiros. Terra de álcool, mulheres pintadas, bares fumarentos, jogos de sorte e azar (sobretudo de azar, especialmente se a batota for descoberta), cavalos com a pele tatuada pelas esporas dos seus donos, uma imensidão de areia que não deixa a descoberto qualquer pensamento, sequer, de um oásis onde um par de cowboys possa matar a sua sede.

Foi aqui que tudo começou: neste Bairro Alto, imaginado, e no outro, real, há quase vinte anos. De lá para cá, Tó Trips e Pedro Gonçalves viveram altos e baixos, amealharam histórias, passaram fomes e fizeram banquetes, assaltaram carruagens e apanharam bandidos, cruzaram toda a distância que existe entre Madragoa e Morricone. Como se o Velho Oeste fosse Lisboa, como se Maria Severa se houvesse apaixonado por um desperado.

Do cruzamento entre a saudade do fado e o sonho western nasceu uma música idiossincrática, soberba, fruto sobretudo de um mundo globalizado: sem uma cultura Americana a adocicar-lhes as cordas, os Dead Combo soariam muito diferentes. Talvez mais portugueses, talvez arriscassem cantar em vez de construir paisagens. É a mistura que lhes confere identidade. E que não vem só da lonjura encurtada por Cristóvão Colombo; vem também da África, da América do Sul, do Mediterrâneo.

A música cresceu, fez-se gente. Partiu à conquista, como tantos outros cowboys partiram à conquista das suas liberdades próprias por entre sóis escaldantes, abutres famintos e fatas morganas. Apresentou-se, disparando um revólver, em “Vol. 1” (2004), figurou num cartaz de “procura-se, morto ou vivo” em “Vol. 2” (2006), entrou para a galeria de mitos do Velho Oeste em “Lusitânia Playboys” (2008), deu o nome a uma cidade inteira em “Lisboa Mulata” (2011). “A Bunch of Meninos” (2014) e “Odeon Hotel” (2018) são já os Dead Combo a assentar, a deixar para trás a vadiagem.

Partiu e encontrou tantos outros. Anthony Bourdain, por exemplo, que contou com a presença dos Dead Combo num episódio do seu programa, gravado em Lisboa. Marc Ribot, que com eles colaborou em disco. Mark Lanegan, que os acompanhou em palco por algumas ocasiões. E as centenas, milhares de fãs, que os acompanharam ao longo de duas décadas, e que se quiseram despedir dos seus heróis mesmo que a noite fosse dos namorados, e não dos cavaleiros solitários.

No Capitólio, uma única luz começou por incidir sobre Tó Trips e Pedro Gonçalves, músicos consanguíneos entregues ao delírio elétrico e desértico do seu fado blues, ou blues fado, ou ambas juntas ou nenhuma. Música, apenas. Distinta o suficiente para poder formar um género em si mesma, sem que um qualquer imitador se possa sequer chegar perto do seu ADN.

A luz, e a 'Janela' que de imediato se abriu, mostrando Tó Trips, como sempre mostra, como o mais irrequieto – é da forma como se debruça sobre a sua guitarra, à espera de lhe arrancar mais uma nota, mais um riff, mais um fio de ouro do seu pescoço. A luz treme, o fumo começa a subir. Sente-se o cheiro a madeira dos bares que os Dead Combo calcorrearam, lembrados em formato de estória para uma última, derradeira, embriaguez. Nem é preciso que ela venha do bourbon. Não quando há 'Sopas de Cavalo Cansado' à mercê da clientela.

«É um prazer tocar aqui em casa», comenta a dada altura Tó Trips. Se Carlos Paredes tinha em 'Verdes Anos' todo um país, Trips tem nos seus dedos não uma, mas duas cidades: a Lisboa ficcionada, erguida no meio de um continente selvagem, e a Lisboa que é “casa”, onde cada colina permite sonhar uma humanidade diferente. Ao ouvi-los tocar, encontramo-nos na posição privilegiada de as habitar ambas. E assoma-nos a ideia, orgulhosa: que é o Mississippi junto do Tejo? Nada, mesmo nada. Há essa lata, imaginação suficientes para o afirmar sem vergonha.

Ao longo de hora e meia de concerto, os Dead Combo foram jogando com as sombras que se erguiam por detrás de si, ao fundo do palco, e com as emoções do próprio público, relembrando sempre que São Valentim estava à espreita e agradecendo a presença de todos os casais. Foi a estes que Pedro Gonçalves dedicou uma versão terna e simples de 'Can't Help Falling In Love', de Elvis Presley, sozinho ao piano. Por entre conselhos pertinentes: «namorem com higiene» foi um deles.

Pouco depois, Tó Trips recorreria à auto-depreciação humorística: «só mesmo vocês é que no dia dos namorados nos vêm ver a tocar isto». Certamente não esperava a resposta, pronta, de alguém no público: «É amor...» Sim, é amor. E foi amor, que depois disto, e de mais algumas datas pelo país, os Dead Combo vão partir para nunca mais (ou assim se supõe) voltar. E se há amor, também pode haver sexo – como em 'Deus Me Dê Grana' e 'Cachupa Man', onde o encontro entre guitarras elétricas mais pareceu uma sessão de acasalamento.

«Obrigado por nos terem aturado estes anos todos», afirmou Pedro. Não, nós é que agradecemos: pelas estórias, pelas bebedeiras, pelos duelos ao pôr-do-sol. Pelas canções, como 'Lisboa Mulata' e, sobretudo, 'Elétrica Cadente', tema que foi apresentado como de esperança, mas que – e quem o conhece desde a primeira vez sabe-o – é, na verdade, das coisas mais tristes que se pode ter o prazer de escutar. Não seria uma despedida a sério sem algumas lágrimas. Adeus, cowboys.

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