Não é fácil convencer um estrangeiro da delicada elegância de umas papas de sarrabulho. Mesmo que estejam arrumadas na leveza de um copo de vidro, mesmo que o sabor esteja apurado e as texturas equilibradas, o véu da ignorância rasga-se com a listagem dos ingredientes (e dos métodos de confeção). Lá em baixo, brilha Braga, com as luzinhas da cidade minhota a furar a noite fria mas de céu limpo que se avista do topo do Bom Jesus do Monte.
A gastronomia minhota é qualquer coisa de parecido com a exuberância da paisagem. Não é que a singeleza de um ou dois ingredientes combinados não chegue para encantar os arcebispos, mas o espetáculo dos cheiros, das cores, das texturas é a tradução para a boca daquilo que os olhos veem aqui de cima: verter um Miogo numa noite gelada ou subir o elevador que alivia as pernas do escadório numa tarde quente são praticamente sinónimos da mesma antítese profano-religiosa.
É hora de jantar, aqui no cimo do monte, à beira dos sinos que tocam a hora no santuário. Na mesa, uma das comensais revela: "aprendi que não se deve explicar muito aos estrangeiros como são feitos os nossos pratos". Guarde-se o segredo das várias nacionalidades que, nas mesas à volta, revezam o vinho verde com as bochechas de bísaro.
Este é o resultado: a comida como jogo de socialização e conhecimento; sedução e crítica; partilha e reação. Importa agora olhar para isso da partilha (ainda que se queira guardar os detalhes).
Mesmo no mundo globalizado que temos, não deixa de ser curioso que a gastronomia da Catalunha, Grécia, Dinamarca, Eslovénia, Espanha, Noruega, França e Portugal (Minho e Coimbra) se junte na sala de um hotel no sopé de uma basílica portuguesa. O jogo, contudo, não começou aqui à roda das mesas; veio de antes, veio lá de baixo, do Mercado Municipal. É que a praça de Braga recebeu por estes dias um concurso onde acontece isso mesmo: jovens cozinheiros europeus mostram de onde vêm e como olham para aquilo que comem, ali mesmo no Mercado Municipal.
Organizado pelo Instituto Internacional de Gastronomia, Cultura, Arte e Turismo (IGCAT), o European Young Chef Award (EYCA) reuniu em Braga finalistas dos concursos regionais que aconteceram em nas regiões gastronómicas da Europa. No Mercado, o objetivo é “apresentar e trocar conhecimentos sobre pratos tradicionais e produtos alimentares das suas regiões”, escrevia a organização em comunicado.
Aqui, os jovens cozinheiros preparam — e reinterpretam — as receitas tradicionais das respetivas origens. Depois, peritos internacionais e chefes de cozinha estrelados avaliam o que os concorrentes são capazes de fazer com os produtos frescos que encontram ali mesmo no mercado.
“No Minho, temos o orgulho de aplaudir esses jovens e talentosos chefes de toda a Europa que estão a aumentar a consciência sobre a fragilidade do nosso futuro alimentar e que vão ser os embaixadores da nossa região para a qualidade e diversidade alimentar na Europa”, disse Diane Dodd, presidente do IGCAT, citada num comunicado da organização.
Já para Rafael Amorim, secretário-geral da comunidade intermunicipal (CIM) do Cávado (e em representação das três comunidades envolvidas), “este género de concursos são uma grande porta de entrada para os jovens que se querem integrar no mercado de trabalho. É desejo das três CIMS que este tipo de programas possam permanecer, para continuarmos a promover o que de bom há no Minho.”
A autarquia bracarense diz que o projeto European Young Chef Award, “promovido pelo Instituto Internacional de Gastronomia, Cultura, Arte e Turismo em parceria com o Município de Braga e o Consórcio Minho Inovação, visa reforçar os laços entre as regiões europeias através de jovens chefs, promovendo simultaneamente a inovação culinária e a sustentabilidade, utilizando a cozinha tradicional e os produtos locais.”
A história do concurso começou em 2017. Depois de passagens por Sant Polo del Mar, em Espanha, Galway, na Irlanda, e Rodes, na Grécia, o EYCA chega a Braga após um ano sem competição por causa da pandemia. A chegada a Portugal marca também a primeira vez que o concurso é aberto ao público, acontecendo entre as bancas da praça, com os cozinheiros a mostrar o que valem diante dos talhantes e das vendedoras de frutas e flores.
Do Minho para o prato
Rafael Oliveira, o responsável pela empresa que operacionalizou o EYCA, apresenta António Loureiro como o "ponta de lança" da gastronomia minhota. Mas o chef do vimaranense aCozinha (estrela Michelin 2019, 2020 e 2021) passa a bola para os novos talentos: "os pontas de lança são os jovens promissores, os futuros chefes que farão da cozinha portuguesa aquilo que sabem fazer melhor: cozinhar com paixão, com os excelentes produtos que temos no nosso território, um excelente receituário. Eles é que são os verdadeiros ponta de lança — nós somos os treinadores, estamos cá para os treinar e orientar, para os ajudar a evoluir e a fazerem um bom trabalho."
Apesar de tudo, Portugal — e a região gastronómica do Minho — ainda chega a estas competições longe da realidade dos outros países. António Loureiro admite que se nota "a formação é diferente, que há muito mais formação, e [os finalistas estrangeiros] vêm muito melhor preparados."
"Têm já uma técnica bastante evoluída e competem muitas vezes certamente, pela forma com chegam cá, com a vontade com que chegam e como lideram a prova, aquilo que transmitem aos jurados, a tranquilidade no que estão a fazer, acaba por nos dar logo a sensação e perceber que a formação que eles têm é muito melhor — melhor, se calhar mais intensiva, com mais acompanhamento. Isso sem dúvida faz a diferença. Num concurso como este, o importante é treinar e treinar muitas vezes para perceber a evolução, para perceber aquilo que se tem de melhorar nos pratos."
E isso nota-se, diz António, "principalmente no jovem que ganhou, da Noruega, que é uma pessoa que já compete com alguma assiduidade e que já vem com uma preparação, com uma bagagem, acima da média."
Há que sublinhar, porém, outro desfasamento: a região do Minho compete ao nível do ensino secundário. Não havendo uma instituição de ensino superior (como no Estoril, por exemplo) com formação na área e tendo os concorrentes de estar obrigatoriamente numa instituição da região, a diferença nota-se logo na idade dos participantes (o concorrente do Minho tem 17 anos, o norueguês 21 — e a idade limite são os 26 anos).
António Loureiro diz ao SAPO24 que o Minho irá em breve ter formação superior na área. "Há uma escola que vai nascer em Guimarães que terá um curso superior, mas ainda não tem — e o facto de não o ter e o facto de ainda termos um ensino profissional muito débil e muito muito dependente daquilo que são as finanças que o Estado dá às escolas acaba por criar aqui um 'handicap' [deficiência] muito grande naquela que é a formação", diz o chef.
"Nem todos os alunos que estão na formação tem vocação, a maioria não tem sequer. Estão pela equivalência", critica.
Mesmo já tendo algumas escolas "um nível muito bom", António lembra que, para estes concursos, "além do nível da formação, é necessário muito acompanhamento, é necessária muita formação e motivação para os concorrentes, porque,caso contrário, não é a semana ou duas do concurso com os treinos que se vão fazer que as coisas vão mudar."
Para o jovem português que sair do concurso regional do Minho (na próxima semana), António avisa já que "se o miúdo não tiver uma pró-atividade, no que diz respeito a olhar para o concurso e não começar logo a treinar e a tratar de elaborar o menor prato possível, dificilmente conseguirá competir noutro nível."
Uma questão de mãos (de obra)
No final da semana passada, o ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, começou na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro um périplo de dois dias pelo Alto Douro Vinhateiro. Começou na academia, a falar de formação e mão de obra, e continuou por quintas e reuniões, sempre a avisar que as empresas devem “fazer um esforço muito grande para melhorar as condições de remuneração e de trabalho.”
Afinal, se a qualificação sobe, também os salários e as condições de trabalho deviam melhorar. Aliás, para António Loureiro essa é a condição essencial para que estes jovens não saiam de Portugal: "dar-lhes boas condições de trabalho, dar-lhes bons ordenados, dar-lhes motivação para continuarem e para os fixar; uma das grandes lacunas e uma das grandes dificuldades que nós temos é fixar pessoas", conta António.
Não é foi o único, ao longo da noite, a apontar para a dificuldade que as cozinhas (e mesmo as salas) têm de reter talento por as empresas não valorizarem o capital humano.
"Hoje jovens têm uma facilidade de mobilidade muito grande, que não tinham antigamente e por uma experiência trocam um posto de trabalho; porque estar em Guimarães pode ser interessante para um miúdo daqui de Terras de Bouro, mas para um miúdo do Porto, se calhar é Lisboa ou ir para o estrangeiro fazer um estágio ou ir trabalhar", defende.
"E o importante é nós conseguirmos motivá-los a ficar cá, a ficar connosco, a aprender connosco. É claro que não temos a ambição de que eles fiquem connosco para sempre, isso é impossível, já não há ninguém assim, mas que fiquem connosco durante algum tempo, um ano ou dois, o suficiente para aprenderem, para perceberem o conceito e o projeto que têm à frente deles naquele momento."
Mas que futuro podem ter os dois jovens portugueses que chegaram a esta final? "Eles fizeram um excelente trabalho com aquilo que têm disponível e com o que aprenderam", afirma António Loureiro. "Têm um futuro promissor porque, para começar, têm coragem — isso é muito importante — e já têm algum talento, que também é muito importante", acrescenta. Depois, "têm vontade de crescer na profissão e de a seguir e de evoluir, se não, não se punham aqui a prestar provas e a pôr-se à prova e a passar a avaliação. Por isso para eles só vejo coisas boas neste momento."
Mas para o cozinheiro estrelado de Guimarães, uma carreira promissora começa na "humildade para aprender". Depois, a força de vontade, ter algum talento também é importante, e ter coragem, não ter medo. As características mais importantes para nós são a humildade e a vontade de aprender. Se tiverem essas duas, o resto é fácil, vem por acréscimo."
"Uma escola de hotelaria ou uma escola de formação é a mesma coisa quando nós tiramos a carta; quando tiramos a carta, não sabemos andar de carro. Nas escolas é exatamente igual, nós saímos com bases, saímos com uma noção daquilo que é a profissão, mas a realidade do mundo do trabalho é sempre diferente — e eles têm essa perceção quando vão aos estágios. Quando os [jovens cozinheiros] saem para o mercado de trabalho, têm de ser competitivos."
O sabor do Norte levou a taça
No final, ganhou a Noruega. Espen Laumann trouxe a família a Portugal para o ver ganhar a competição. O segundo lugar foi para o grego Andreas Dermatis e o terceiro para a dinamarquesa Frida Jensen.
"Estou muito feliz", disse Espen Laumman aos jornalistas, admitindo que "não estava à espera de ganhar, mas tinha a esperança de vencer". "Houve bastante trabalho duro e muitos dias a trabalhar — acho que não tive uma folga em quatro meses", acrescentou ainda.
O jovem de 21 anos ("daqui a pouco 22, já estou a ficar um bocadinho mais velho") leva praticamente uma década nas cozinhas. Começou por baixo, aos 12, a lavar loiça. No ano seguinte, já tinha espaço para fazer pizzas e pratos pequenos.
"E foi aí que realmente me apaixonei pela cozinha", revelou Espen ao SAPO24, em Braga. "mas disseram-me para não ser chef, porque teria de trabalhar muito e o salário não é assim tão bom, mas o meu amor pela comida é tão grande que não consegui resistir."
"Comecei cedo, mas hoje estou a trabalhar num dos melhores restaurantes na Noruega e tenho uma grande gratidão por todas as pessoas que me ajudaram ao longo dos anos."
Espen ainda diz que o nível dos colegas finalistas era todo ele elevado, mas António Loureiro, presidente do júri, afirmou que "o primeiro lugar foi unânime".
"Houve discussão nos restantes lugares, mas o primeiro lugar sem dúvida que se destacou pela técnica que apresentou, pelo produto que apresentou, pelas texturas, sabores, cor", explica o chef português. "Aqui sempre tínhamos alguns aspetos a considerar — a sustentabilidade, o desperdício —, mas sem dúvida que, no final, o que vale sempre é o sabor e a apresentação do prato, mais o sabor, acima de tudo.
E, graças a esse sabor, tal como a próxima edição viaja do frio de Braga para o frio de Trondheim, na Noruega, também o título de melhor jovem chef da Europa sobe da cidade das igrejas para a terra dos fiordes.
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