Se a história é escrita pelos vencedores, não é de admirar que os retornados das antigas colónias portuguesas tenham sido votados ao esquecimento durante tantos anos. Quando pensamos no 25 de Abril, pensamos no fim do jugo ditatorial, na conquista da liberdade, na entrada de Portugal na Europa democrática. Mas, invariavelmente, havia sempre quem tivesse de pagar por essas vitórias — mesmo que involuntariamente.
O fim do Estado Novo significou o fim do império colonial e, com isso, 500 mil colonos tiveram de regressar à metrópole perante a iminente independência dos países onde viviam, deixando a maior parte dos bens para trás. Mais do que isso, tendo sido motivados pelo regime ditatorial português a ir ocupar estas terras — e tendo muitos ido para fugir a uma vida de pobreza —, regressaram com o estigma de representarem a pior faceta de Portugal. Eram "os retornados", mas podiam ser batizados "os indesejados" que pouca diferença fazia.
"Caderno de Memórias Coloniais", de Isabela Figueiredo, e "As Naus", de António Lobo Antunes, eram dos poucos exemplos na literatura portuguesa a retratar esta realidade até ser publicado "O Retorno", de Dulce Maria Cardoso, cuja explosão de popularidade tornou o tema incontornável e urgente. Trata-se de um romance de cunho autobiográfico que descreve a vida de uma família forçada a embarcar na ponte aérea de 1975 para Portugal antes da Independência de Angola, ficando num hotel de cinco estrelas onde tem de se adaptar a este novo quotidiano. A história segue Rui, um jovem de 15 anos, entre a angústia de deixar tudo para trás e a raiva que dedica a todos aqueles que considera responsáveis pelo seu infortúnio. O seu sucesso, aliás, surpreendeu a autora.
"Estava convencidíssima que seria um insucesso — não por achar que o livro é mau, mas por achar que o tema não interessava a ninguém. Era um assunto que vinha ainda desse estigma dos colonialistas, fascistas, exploradores", conta ao SAPO24 nesta entrevista no âmbito do ciclo "O 25 de Abril (também) foi uma ficção".
Desde então, a escritora considera que muito se tem feito para trazer mais luzes sobre o tema, especialmente tendo em conta que "começámos muito atrás no início da nossa corrida, era uma corrida viciada porque quase cinco décadas de ditadura empobreceram-nos muito, não só em termos económicos, mas intelectuais".
No entanto, nem tudo correu bem. Para Dulce Maria Cardoso, a mudança de paradigma ficou-se mais pela queda do regime do que pela mudança das mentalidades. "Não tenhamos ilusões, a ditadura aguentou-se quase cinco décadas com a conivência de todos — ou melhor, de quase todos. Não me parece que aquelas pessoas todas que andavam de cravo na mão no dia 25 de abril de 1974, fossem todas resistentes antifascistas", afirma.
Agora, estamos perante um momento onde a extrema-direita nacional procura explorar as feridas mal saradas dos últimos 50 anos para ganho próprio e convence cada vez mais pessoas. "Será sempre complicado estar a avaliar o que se tem feito. A tendência é para dizer que correu mal, e tanto é que aparentemente mais de um milhão de pessoas querem um partido que retoma o 'Deus, Pátria e Família' e ainda acrescenta o 'Trabalho', para ficar ainda pior", alerta. Mas, ainda assim, mantém alguma esperança.
Os retornados costumam ser tratados ora como perpetradores da opressão colonialista, ora como espoliados da história forçados a deixar a vida para trás — “O Retorno” recusa-se a ceder ao maniqueísmo de agrupá-los somente numa destas gavetas. Quão importante foi para si explorar estas diferentes facetas?
Bem, os retornados são e foram muitas pessoas, e cada uma delas carrega uma história, uma ideologia e uma crença — portanto, cabe lá tudo. Os saudosistas, os colonialistas, os não-colonialistas, cabe tudo no grupo. Esta questão é muito complexa e pensá-la não é mais simples. Eu só há pouco tempo, muito depois de ter escrito "O Retorno", e por causa de perguntas que os jornalistas me faziam, é que percebi algumas coisas sobre a própria experiência que vivi.
O primeiro erro em que eu caía é que falava em termos de Portugal e Angola, e isso não é verdade. O que eu tenho que falar é de um império e de uma colónia. Porque a colónia por si só é uma entidade única e irrepetível, com regras muito próprias. Eu não vivi em Angola, em nada que se possa comparar com Angola, eu vivi numa colónia. E essa colónia, para começar, foi construída sob o signo da violência — por isso é que é uma colónia. Sendo assim, há uma relação de poder e submissão: o poder exerce-se através da violência e a submissão faz-se com a aceitação da violência. Quando crescemos num sítio destes — porque as pessoas crescem e nascem em todos os lugares, até nos errados —, vamos naturalizando a violência. Ou seja, aquilo que eu vi, demorei muitos anos a perceber que era violento, porque era a única coisa que conhecia. Se eu passear na rua e vir toda a gente vestida de cor de laranja, passo a assumir que toda a gente se veste assim — nunca vi outra coisa, nem sequer estranho que assim seja.
E qual é o segundo erro?
É tentar concertar as memórias privadas e a memória pública da tal colónia. Porque, apesar desse signo da violência, apesar de toda a ilegitimidade e da imoralidade do império, não deixa também de ser verdade que aquilo foi a minha vida e a vida dos meus pais. E que eu fui feliz, que as paisagens e os frutos eram maravilhosos, que os cheiros eram muito diferentes e muito mais apelativos. Porque África é, mesmo para quem nunca lá foi, o continente da infância — é tudo excessivo em África, tal como na infância. E depois há uma sensação de futuro, de tudo por fazer — não num mau sentido, mas num sentido de possibilidade.
É desregrado?
Sim, e é como se o futuro fosse mais importante. Aqui na Europa, o que sinto é que andamos todos curvados com o passado. São 800 anos para um lado, 1000 para o outro (risos). É sempre o passado. E lá, apesar de haver um passado riquíssimo, parece que a futuro ainda é possível. Portanto, há dois erros e é preciso perceber que a colónia foi única e perceber que é quase impossível concertar memória pública e memória privada. As duas coisas tornam isto numa conversa muito complicada, especialmente para pessoas que tiveram relação, que viveram lá também, ou que são filhos de pessoas que lá estiveram — porque depois querem vingar aquele abandono a que os pais ou avós ou eles próprios foram sujeitos. Porque isso foi também um abandono.
Em que sentido?
Dando o exemplo dos meus pais, o que aconteceu foi que o meu pai foi para lá com carta de chamada, depois daquele célebre "para Angola, rapidamente e em força" — que não foi exatamente assim que o Salazar disse, mas pronto, passou a ser assim recordado. E os meus pais estavam zangados, porque se tinham zangado com a família, tinham fugido os dois porque os meus avós não os deixavam casar, enfim. Além disso, o meu pai fora apoiante do Humberto Delgado e tinha perdido o direito ao voto. Portanto, havia ali uma série de circunstâncias em que disseram "não, não queremos". E tanto podiam ter ido para ali [Angola] como para França ou para a Alemanha. O que aconteceu foi que houve umas cartas de chamada e o meu pai decidiu aproveitar aquela oportunidade, eles foram com um contrato, e dessa forma tanto fazia estar aqui como lá. Isto apesar das pessoas mitificarem a vida das colónias, tal como as das colónias mitificavam a vida da metrópole, o engano era duplo — nem a metrópole era tão grandiosa como se ensinava, nem a vida na colónia era tão faustosa como se imaginava. Mas a verdade é que estas pessoas foram para lá a achar que estavam num território português e que estavam protegidas. Só que, com a ganância de tudo querer, fizeram que elas ficassem condenadas a ficar lá — à exceção dos muito ricos, mas esses são sempre uma minoria, deles não reza a história. Foi assim para as pessoas normais, para os pequenos empresários.
É o próprio caso da mãe do protagonista, o Rui, que vai para Angola para fugir de uma vida de miséria em Portugal continental. Aliás, vai pela primeira vez para uma casa que tem água canalizada.
Exatamente. Essa foi a história de muita gente. As pessoas não têm consciência disso, ou não estão informadas em geral, mas a moeda de lá valia muito menos aqui. Portanto, mesmo que quisessem voltar, iam perder muito dinheiro. Ir para lá era uma ideia de povoar, de colonizar, e depois, de repente, "olha, agora acabou-se tudo". Além disso, voltam e ainda são acusados de serem colonialistas. Não tenhamos ilusões, a ditadura aguentou-se quase cinco décadas com a conivência de todos — ou melhor, de quase todos. Não me parece que aquelas pessoas todas que andavam de cravo na mão no dia 25 de abril de 1974 fossem todas resistentes antifascistas. O que me parece é que eram pessoas indiferentes, ou até coniventes, e que depois quando o poder mudou, mudaram-se também — é o que normalmente acontece, não é? Portanto, o que foi injusto para as pessoas que foram as colónias é que havia uma não-afronta do poder, ou até uma afronta privada, mas depois só os retornados é que depois levaram com os rótulos de fascistas e colonialistas.
No fundo, levaram com o julgamento da história, certo?
Foram os vencidos do império.
Relativamente ao que estava a falar, das pessoas que tomam as dores dos antecessores, uma das marcas de Rui é sentir “a dor de não conseguir compreender o porquê” de tal destino ter-se abatido sobre si e a sua família. Essa combinação de incompreensão e falta de comunicação normalmente gera ressentimentos — esse ressentimento ainda existe?
Não, porque os retornados aliás deviam ser um exemplo bom para uma série de outras situações, porque foi um grupo muito estigmatizado: quando eu cresci, dizer "és retornado" ou "és como um retornado" era uma ofensa enorme e agora, se alguém quer ofender, já ninguém chama isso. O que mudou? Não foi a palavra, essa manteve-se exatamente a mesma; mudou a realidade material destas pessoas. Ou seja, o que aconteceu foi que estas pessoas foram se integrando. Depois de chegados cá, a maior parte deles eram pequenos empresários e tiveram de abrir pequenos negócios — cafés, supermercados, etc... — porque também sabiam o que faltava aqui e o que já havia lá. Em Angola havia bastante mais dinheiro, era tudo mais novo, mais pujante, e depois havia outra coisa que era a influência de países estrangeiros. Nomeadamente os EUA em Angola, porque tinham grandes interesses no petróleo e nos diamantes, era quase uma colónia norte-americana. Em Moçambique havia a influência da África do Sul, e por estes modos as pessoas iam mudando. Estavam mais acompanhados num mundo que já era outro e quando cá chegaram, perceberam as lacunas económicas.
Quando cresci, ser retornado era péssimo. Para mim foi terrível a experiência de perder a individualidade e passar a ser o membro de um grupo, passei a ser "uma retornada". Uma igual a muitas, era um ser fungível, diziam-me "a minha mãe não gosta que eu ande contigo porque tu és retornada". Independentemente de eu ser o que fosse, era uma retornada e isso bastava.
E era totalmente passivo, não é? Foi um rótulo imposto sobre as pessoas. O próprio Rui ressente-se disso ao longo da narrativa, é um insulto que se cola à pele sem ele ter noção porque é que isso aconteceu.
Mas agora a narrativa mudou e, por exemplo, já ouvi muita gente dizer que os retornados mudaram efetivamente o país. Vieram, dinamizaram e engrandeceram-no. Portanto, o que mudou foi a realidade material daquelas pessoas e por isso não foi preciso mudar a palavra — esta deixou por si só de constituir um insulto. E quando vou às escolas e estou a falar desta vigilância de palavras que agora se usa muito e com a qual eu embirro bastante, uso muitas vezes o exemplo dos retornados. O que tem de se mudar é a realidade material das pessoas, porque depois as palavras caem por si, não há nada que fique agarrado.
Relativamente a "O Retorno", referiu já várias vezes que, apesar de ter um cunho autobiográfico, escrevê-lo não foi nem um ajuste de contas, nem uma terapia. No entanto, o livro produziu uma reação de interesse raramente vista em Portugal. À distância de 13 anos, como é que classificaria este seu romance?
Eu sou a pior pessoa para fazer essa análise! (risos) Deixo isso para os leitores e para os académicos. Eu gostei muito de escrever o romance, era um livro que eu queria fazer, que me tinha obrigado a fazer, mas fi-lo sem qualquer expectativa de sucesso. Aliás, estava convencidíssima que seria um insucesso — não por achar que o livro é mau, mas por achar que o tema não interessava a ninguém. Era um assunto que vinha ainda desse estigma dos colonialistas, fascistas, exploradores, etc... Por outro lado, o livro inaugurou a coleção de ficção da Tinta da China, ou seja, era uma aposta. Eu costumava brincar quanto aos meus livros anteriores, dizia que era "a autora das cinco estrelas e dos cinco leitores", porque tinha sempre muito boa crítica, mas muito más vendas. Com o "Chão dos Pardais", que é o livro imediatamente anterior a "O Retorno", eu, ao fim de um semestre, tinha 57 exemplares vendidos — ou seja, seria a minha família, os amigos e pouco mais. Então eu achava que, se com temas mais generalistas era assim, então com um que não interessava a ninguém é que a coisa ia correr muito mal. Não tinha qualquer expectativa no sucesso do livro — quero dizer, tinha tanta quanto tive nos outros romances, que é toda, mas sabendo que se os outros não funcionaram, este provavelmente também não funcionaria.
Quando a Bárbara [Bulhosa, editora da Tinta da China] me telefonou ao fim de uma semana e disse "vamos para segunda edição", eu ri-me e respondi "era bom, não era?" Mas era verdade e eu fiquei muito admirada e contente. Depois percebi que se tornou num livro muito amado, o que me deixa muito feliz, e é lido transversalmente. Aliás, é mais lido por pessoas que não estiveram lá e que não têm nada a ver com o assunto do que com pessoas que estiveram, pelo menos do que vou percebendo. E é muito lido por pessoas que foram contemporâneas, que querem perceber o que lhes escapou. Há gente que me diz "eu vi os hotéis cheios, mas não imaginava o que se estava a passar". Mas, acima de tudo, é lido pelos filhos das pessoas que passaram por isso, os descendentes que querem perceber os silêncios dos avós e dos pais, dos adultos que os criaram. Isso é muito bonito, é um livro que preencher esse buraco negro que o trauma do retorno se tornou, foi uma espécie de sorvedouro de emoções.
Quando fiz a pergunta, estava a pensar na forma como pareceu tocar na psique nacional de alguma maneira.
O livro está organizado como uma radiografia da perda e acho que todos nós já perdemos algo. É difícil [conceber] a ideia de se perder um país ou o sítio onde se vive, porque raramente acontece. Acho que essa perda total, em que um dia estás assim e no outro dia perdeste tudo o que conhecias e vais para um sítio completamente estranho, é uma experiência radical. Eu organizei o livro não tão baseado nessa experiência, porque percebi que o leitor teria dificuldade a identificar-se. Por isso é que eu deixei o pai lá e que escolhi um adolescente. Aquele é também um romance de crescimento, aquele miúdo está a tentar procurar o seu caminho. Acho que é isso que também enternece as pessoas e fá-las identificarem-se, porque toda a gente já foi adolescente, toda a gente teve aqueles mistérios sobre a sexualidade, sobre o papel na família. Acho que o êxito do livro deve-se a essa componente histórica, mas também à outra parte que é emotiva e que poderia acontecer noutro livro qualquer.
Como referiu há pouco, à exceção de alguns exemplos honrosos, "O Retorno" saiu numa altura onde ainda pouca importância era dada ao tema da descolonização e dos retornados, pelo menos no campo literário. O que pensa sobre a forma como temos encarado este nosso legado histórico desde então?
Acho que temos feito um caminho muito longo e bom no que diz respeito à questão do pós-colonialismo, porque começámos muito atrás no início da nossa corrida, era uma corrida viciada porque quase cinco décadas de ditadura empobreceram-nos muito, não só em termos económicos mas intelectuais. Portanto, a elite que saiu da ditadura era uma elite fraca. Quando há pouco investimento, é preciso ser um povo de génios para depois tudo correr bem. Tínhamos muitas falhas e continuamos a ter — fizemos muito, mas é impossível recuperar tudo. Faltou muita coisa, nomeadamente um século de leitura, já que éramos todos analfabetos enquanto o resto da Europa andava a ler. E depois faltou-nos todo o desenvolvimento pós-Segunda Guerra Mundial, em que ficámos aqui fechados com o ditador e o seu cheiro de naftalina, com medo que as roupas se estragassem, com um império fechado numa arcazinha, todo contente.
Será sempre complicado estar a avaliar o que se tem feito. A tendência é para dizer que correu mal, e tanto é que aparentemente mais de um milhão de pessoas querem um partido que retoma o "Deus, Pátria e Família" e ainda acrescenta o "Trabalho", para ficar ainda pior, já que vem ali com uma perninha da Alemanha. "O trabalho liberta", não é?. E, portanto, alguma coisa correu mal para não percebermos que aquilo não foi interessante nem bom nem agradável. E que é no estado social, de direito, num regime democrático e nas suas instituições que está a solução. Mas, independentemente desse viço, temos de dizer que fizemos muito, porque partimos de muito lá para trás.
Quanto a essa referência que faz ao tal milhão de pessoas, quando se fala de "O Retorno" e da sua temática, existe a ideia de que Portugal ainda não foi incapaz de encarar a história recente, esqueceu as feridas da descolonização e do PREC em prol de uma regeneração coletiva que deu lugar a uma certa amnésia. Dado o atual momento político, arriscamos chegar aos 50 anos do 25 de Abril com essas feridas reabertas?
Já estão! Já não há nada a fazer quanto a isso. Quando chegamos ao aniversário tão simbólico da Revolução como os 50 anos e temos a terceira força política com slogans parecidos com os do Estado Novo, a resposta está dada. Agora interessa-nos é compreender porque é que isto acontece. Quanto a mim — e esta é só mais uma opinião a juntar a centenas, é aí que está a beleza da democracia, cada um pode ter a sua opinião e pode expressá-la — é que a Revolução não tratou da mudança de mentalidades, tratou das injustiças e dos crimes, de uma série de coisas formais mais evidentes da ditadura do Estado Novo. Acabou com os presos políticos, acabou com a censura. Tem de haver uma revolução para tal, mas depois de feita, isso não é difícil, é só abrir as prisões, dizer "agora toda a gente escreve sem passar pelo lápis azul". Isto é relativamente simples.
Ou seja, mudanças apenas do ponto de vista formal. Faltava tudo o resto.
E foram muito boas! Só que são as mudanças fáceis de fazer. Agora a mentalidade, como é que se muda? São precisas gerações. Portanto, estas pessoas que durante as tais cinco décadas foram relativamente coniventes com o que se passava, claro que continuaram a educar os seus filhos e mantiveram as suas profissões partilhando alguns ideais salazaristas. Portanto, era só preciso que houvesse uma pessoa que aparecesse e que não tivesse vergonha de encarnar esse lado mais negro que todos os povos têm e que nós, por maioria da razão, temos de maneira mais continuada. E pronto, foi assim que aconteceu, junta-se a isto o facto dos jovens realmente não terem noção de como é não viver em democracia — é como eu que não tenho noção do que é não viver com água canalizada ou eletricidade. A minha mãe, por exemplo, tem noção disso e continua a ficar muito contente de haver água em casa, de não ter de carregar cântaros. Isso é algo que, para mim, já não faz sentido algum, porque a água está cá sempre. Tudo aquilo que damos por adquirido, deixamos de dar valor porque parece que é inerente, nasce connosco. Os jovens votam assim porque não sabem e também porque são os mais castigados, no sentido em que nós falhámos, as gerações anteriores falharam nas oportunidades de vida que deram às seguintes.
Usando um chavão, falharam as promessas de Abril.
Sim, sim, portanto agora os mais novos não têm dinheiro para comprar casa nem para pagar rendas, é tudo caro, a comida é cara, viver tornou-se bastante difícil para a maioria das pessoas e especialmente para os mais jovens, que saem de casa dos pais aos 40, não podem decidir livremente se querem ou não ter filhos porque não têm dinheiro. É normal que perante isto digam "estes são os do sistema e vamos acabar com isto, quanto mais não seja com o voto de protesto para demonstrar que não estamos contentes". Só que é brincar com o fogo é sempre perigoso, porque pensamos que só vamos acender uma lareirazinha do descontentamento e do protesto e de repente está tudo a arder. E eu tenho batalhado muito quando falo com os mais novos quanto a essa ideia, percebo a tentação de incendiar um bocadinho para dizer que estão descontentes e que isto não está a correr bem. O problema é que quando fazemos isso, nunca sabemos se não vem uma corrente de ar que alimenta a fogueira. E nunca sabemos se tudo aquilo em que acreditamos e que nos permitiu, lá está, a mostrar o nosso descontentamento, não vai não vai ficar em cinzas.
Recorrendo a uma frase que usou numa entrevista há uns anos, o "passado é um sítio muito perigoso, é talvez o sítio mais perigoso de todos". Estar a trazer fantasmas do passado não passa por aí, arriscar trazer-nos de volta para um sítio que achávamos que já tínhamos ultrapassado?
Já não sei em que contexto eu disse essa frase, mas talvez isso seja mais em termos das nossas vidas pessoais, das nossas emoções, porque o passado tem até algumas vantagens, em termos de país, de perceber que a coisa correu mal — ao menos serve para isso. É preciso é que as pessoas saibam e queiram saber o que aconteceu, que se informem, que percam algum tempo a pensar. E tudo isto, aparentemente, vai se tornando em atividades luxuosas, porque as pessoas não têm tempo, vivem mal, e pensar ou distinguir o trigo do joio na informação são privilégios — novamente, são coisas que se calhar não damos conta. Nós, os que temos tempo para fazer isso, achamos que toda a gente tem também, e que se não o faz é porque não quer. Mas isso não é verdade.
Esse foi um grande erro da esquerda: assumir que toda a gente podia informar-se, cultivar a autonomia, independência e liberdade, ser um cidadão pleno, e que se não o fizesse, era por indolência ou incapacidade. Mas se as pessoas têm capacidades económicas más, estão tão escravizadas a pensar nas contas, tão cansadas e fartas de tudo, que perdem esse discernimento. E depois, basta vir um canto tão agradável como "vamos mudar isto, vamos fazer isto e aquilo", que faz sentido. Nos dias após as eleições, ouvi algumas entrevistas de pessoas que acreditam genuinamente que as coisas vão mudar, que este novo poder na assembleia lhes vai mudar significativamente a vida. Dizem "eu, em 40 ou 50 anos, nunca saí da cepa torta e agora finalmente acho que..." E verão que não, porque não pode haver mais demagogia naquelas promessas todas. É muito triste, estarmos a assistir a isto nos 50 anos da Revolução.
Aproveito para fazer um pequeno exercício especulativo: como é que crê que Rui seria ao fim destes 50 anos?
(Risos) Eu acho que o Rui... acho que está bem. Ele cresceu, está lá com a sua família... Eu vou continuando a saber das minhas personagens, portanto para o Rui eu dei-lhe assim um destino bom. Ele está bem, dentro da medida em que estamos todos, porque também estará preocupado com o rumo [do país]. Quando a saúde e a educação públicas estão em perigo, ninguém pode estar bem. Ainda temos, por enquanto, a segurança — ao contrário do que nos querem fazer acreditar, Portugal ainda é um país bastante seguro, não tenho nada essa noção de insegurança. Mas já tenho a ideia de que a saúde e a educação estão nos limites do aceitável. E pronto, a partir daí não há nenhuma sociedade que se consiga organizar quando direitos tão fundamentais não estão garantidos.
Pergunto também porque o livro acaba com Rui ainda com uma certa angústia e raiva dentro dele.
Mas ele é um adolescente ainda, acho que é quase impossível não haver essa raiva na adolescência, ainda por cima nas circunstâncias do Rui, que não sabe bem onde pertence — sabe que não pertence aqui [Portugal], que se calhar também já não pertence lá [Angola]. Mas acho que tudo nele é algo mais solar, mais construtivo.
Quanto aos 50 anos do 25 de Abril, que frase é que gostaria de deixar?
Eu continuo a acreditar na velha frase de "o povo unido jamais será vencido". Nós temos é de confiar nisso, temos de nos unir, porque tudo conspira para nos desunir, para nos dividir e diferenciar — seja por cor de pele, por crenças, por um clube de futebol, por um carro que se conduza, tudo são fatores de fragmentação, tudo são grupos. Continuo a seguir essa velha máxima. Mesmo agora quanto a este milhão [de eleitores do Chega], deixe-me dizer que foram só 18% dos votantes, os outros estão todos contra, ou pelo menos não são a favor. Portanto, até nisso vejo esperança. Agora, precisamos é de nos mobilizar e não achar que isto é apenas uma coisa que acontece. É preciso esforço.
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