Quem passou pelos últimos anos de ensino básico ou pelo ensino secundário ali entre 1999 e 2002 lembra-se bem de quais eram os tópicos de conversa (além das habituais questões intergeracionais, sobretudo ligadas à puberdade): Playstations 2 “chipadas”, Figo no Real Madrid, “Jackass”, Big Brother e Zé Maria, será que a professora de inglês e o de matemática andam enrolados?, o Pokémon, o “Missão Impossível 2”, o “Gladiador” ou o “Matrix”, o “South Park” e, claro, a Internet ainda apenas como curiosidade e não como repositório de todas as nossas informações pessoais.
Mas também se falava de Britney Spears, tornada mega-estrela global através do sucesso de '...Baby One More Time', e de Christina Aguilera, por causa de 'Genie In a Bottle'; falava-se de nu metal, sobretudo de bandas como os Linkin Park e Limp Bizkit; de Marilyn Manson, entre os góticos; e falava-se de Eminem – e era praticamente impossível não falar de Eminem, já que o seu rosto pairava, omnipresente, na MTV, já que eram suas as polémicas que alimentavam as colunas pop dos jornais, já que era seu o rap mais feroz do mundo numa altura em que (em Portugal) o rap ainda não tinha o mesmo peso institucional que tem vindo a ter nos últimos anos.
Foi Eminem, mais que nenhum outro, a garantir esse peso ou, pelo menos, a criar as condições necessárias para que o rap e o hip-hop o tivessem. Tupac e Notorious B.I.G. foram estrelas nos Estados Unidos e ainda mais depois da sua morte, mas por cá ainda só encontravam o seu espaço por entre um grupo restrito de pessoas; Snoop Dogg ainda não tinha “rebentado”, com 'Drop It Like It's Hot'; os Beastie Boys só eram tidos e achados por entre os pensadores rock; encontrar um fã dos A Tribe Called Quest ou dos De La Soul ou de Nas era, aos 14-17 anos, uma tarefa hercúlea. Restava Eminem, que beneficiou de dois aspetos extremamente importantes para conquistar os corações e as cabeças de putos brancos suburbanos com vontade de fugir para o vazio da existência:
- Mandava gente para aquele sítio como se nada fosse;
- Os seus versos eram politicamente incorretos e carregados de humor, o que imediatamente fazia com que os pais desses putos o odiassem (e, nessa idade, toda a gente gosta de chatear os pais).
Será correto dizer que Eminem não teria obtido o mesmo sucesso caso não tivesse tido, desde cedo, o apoio do homem que já havia chocado os EUA com os “seus” N.W.A., na década anterior: Dr. Dre. Foi este quem contratou Eminem para a sua editora, a Aftermath Entertainment, já após o rapper ter lançado um LP e um EP, em 1996 e 1997, respetivamente. Foi Dre quem o produziu e quem o ajudou a juntar as peças daquilo que seriam os três álbuns rap mais importantes, e de maior sucesso, da viragem do milénio: “The Slim Shady LP” (1999), “The Marshall Matters LP” (2000) e “The Eminem Show” (2002), que fizeram dele o primeiro artista a vencer o Grammy para Melhor Álbum Rap em três discos consecutivos. E foi Dre quem conferiu a Eminem o estatuto que este precisava para ser encarado como “real e verdadeiro” num meio hip-hop que, como se sabe, leva essas coisas muito a sério.
É que Eminem não começou por ter uma carreira fácil, à semelhança daquilo que foram os primeiros anos da sua vida. Nascido Marshall Bruce Mathers III, em 1972, e após um parto difícil (72 horas, o que quase matou a mãe), ficou sem o pai em tenra idade, sofreu bullying na escola, foi obrigado a crescer numa Detroit operária, de bairros degradados e perspetivas de vida zero. Os norte-americanos têm um nome para isto: white trash [“lixo branco”, em tradução literal], caucasianos pertencentes a um estrato social baixo, sem grande educação formal ou perspetivas de futuro. Mas Eminem nunca quis ser trash; muito menos quis ser branco ou, melhor ainda, que a cor da sua pele fosse condição sine qua non para ter sucesso na vida ou insucesso na música que faz. “8 Mile”, o filme que protagonizou em 2002 e que é uma história mais ou menos ficcionada da sua vida, mostra isso mesmo; o tal puto branco suburbano – como os que viriam a fazer dele uma estrela – a tentar mostrar o seu valor num meio cultural, e musical, afro-americano.
(Some people only see that I'm white, ignorin' skill / 'Cause I stand out like a green hat with a orange bill [“Algumas pessoas só veem que sou branco e esquecem a técnica / Porque salto mais à vista que um chapéu verde com aba laranja”], canta Eminem em 'Role Model'.)
Mas o que ao início era um obstáculo depressa se tornou na sua maior força. O rap branco nunca foi visto com bons olhos pelo mainstream; os temas mais icónicos dos Beastie Boys são aqueles em que as guitarras são quem mais ordena ('(You Gotta) Fight for Your Right (To Party!)', 'Sabotage'), Marky Mark (que se viria a tornar num ator de sucesso com o seu nome verdadeiro, Mark Wahlberg) era mais pop que hip-hop, Vanilla Ice era uma piada e os Insane Clown Posse, que tinham e têm um verdadeiro orgulho em ser white trash, eram mais uma subcultura que um grupo parte da “cena”.
Depois chegou Eminem, trazendo consigo algumas das letras mais violentas do cânone hip-hop, muitas delas altamente misóginas, algo que o próprio admitiu. Tudo o que fosse turbulência nas suas relações amorosas e familiares (e a turbulência existiu: acusou a mãe de maus tratos, que acabou a processá-lo, e nunca teve a melhor das ligações à mãe da sua filha, Hailie) era de imediato transformada numa longa história em verso e levada ao extremo, quase como se a violência fosse uma piada – que o é, em grande parte dos livros de banda desenhada, que também foram para o rapper uma inspiração.
É (também) por isso que Eminem foi forçado a criar um alter-ego, uma personagem que pudesse dizer sem medos tudo aquilo que ele se inibia de proclamar por pudor: Slim Shady, o branquela que é voz para todas as suas frustrações e ataques de raiva, o gajo que quer levar para a cama uma das Spice Girls (ou todas), o bacano que nos desafia a desafiá-lo a conduzir bêbado, o homem que termina discussões com a namorada de uma forma extremamente simples: atirando-a ao rio, atada a uma pedra, enquanto a filha bebé graceja.
(The views and events expressed here are totally fucked and are not necessarily the views of anyone [“As opiniões e acontecimentos aqui expressos são completamente marados e não são necessariamente as opiniões de ninguém”], afirma na intro de “The Slim Shady LP”.)
Quase 20 anos antes do #MeToo, já Eminem provocava a ira de toda a gente com um pingo de consciência. Não que o próprio quisesse saber, e os seus fãs também não. Aos 15 anos, todos somos e queremos ser politicamente incorretos, todos queremos chocar a burguesia e chamar a atenção com as coisas palermas que vamos dizendo. Eminem fê-lo nuns EUA pós-Columbine sem se importar minimamente com quem estava a ouvir, gozando até com os seus críticos; incluída em “The Slim Shady LP” está uma gravação de Zoe Winkler, filha do ator Henry Winkler (o famoso Fonzie), a chamar-lhe “nojento”. Hoje, os versos mais antigos de Eminem só nos lembram um clássico dos Smiths – 'That Joke Isn't Funny Anymore' – mas, para a geração “Jackass”, era a coisa mais hilariante que se poderia ouvir.
Claro que se pode argumentar que Eminem só conseguiu obter o sucesso que obteve, dizendo as coisas que disse, sendo caucasiano. A revista Rolling Stone, por exemplo, proclamou-o “Rei do Hip-Hop” - algo que não nunca faria com Tupac, Chuck D ou até mesmo Kanye West, tal como o “Rei do Rock” continua a ser branco. Mas, ao fazê-lo, esquecemo-nos que de facto a sua técnica era imparável, veloz, mortífera, acompanhando cada beat sem falhas. Tudo isso sem soar a alguém a tentar rappar como os negros, ou sem cair na armadilha da chamada “apropriação cultural”. Duas décadas depois, podemos e devemos criticá-lo por muita coisa, até por ter ajudado a potenciar o lado mais politicamente incorreto e sarcástico da chamada alt right, através das críticas e insultos prementes a feministas, homossexuais ou pessoas transgénero, mas não poderemos deixar de o aplaudir por aquilo que era e se tornou: um miúdo solitário e pobre que, à sua maneira, conquistou boa parte do mundo.
Comentários