Em 2013, Bill Drummond – uma das metades dos gloriosos KLF – publicou uma série de vídeos de um minuto cada, onde teorizava sobre assuntos relacionados com a música e a indústria musical, como a sua experiência com a criação e manutenção de uma editora (a Zoo, no final dos anos 70), o nascimento e a morte do punk (que começa e acaba com os Sex Pistols) e, mais relevante ainda para este artigo, a diferença entre o single e o LP. Dizia ele: «A música popular [i.e. a música pop] foi a forma de arte mais poderosa do século XX. O seu formato mais potente era o de um single de 7'', mas aquilo que os artistas queriam fazer, e que a indústria discográfica queria que comprássemos, era o LP. Ambos estavam, criativa e moralmente, errados. O single promove a ação, o álbum encoraja a letargia. O single promove revoluções, o álbum suprime-as. O single pode ser uma linha direta para Deus, o álbum uma mera banda-sonora para as tarefas domésticas»...
Por muito que se possa discordar deste tipo de fanatismos, Drummond tem uma certa razão. Olhemos para o passado, para o momento em que a música passou a definir a adolescência e se começou, de facto, a falar de “música pop”: os anos 50 e 60. Falamos de Elvis Presley e de imediato nos lembramos de 'Hound Dog', 'Heartbreak Hotel' ou até mesmo 'In the Ghetto'; dificilmente recorremos a “Elvis' Christmas Album” (número 1 nos EUA em 1957), “Pot Luck” (número 4 em 1962) ou “Moody Blue” (número 3 em 1977) quando queremos salientar a magia do Rei. Falamos de Ritchie Valens ou de Bill Haley e aí não há hipótese: é 'La Bamba' e 'Rock Around the Clock', respetivamente. E nem sequer temos de ir pelos caminhos do rock n' roll. Se é verdade que “In the Wee Small Hours” vale pelo seu todo, é desse disco que nos lembramos, e não de 'My Way', quando queremos discutir Frank Sinatra?
O conceito de “álbum” enquanto pináculo daquilo que deveria ser a música só surge em 1967, quando os Beatles editaram “Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band” e obrigaram os seus contemporâneos a seguir-lhes as pisadas. Não só isso, como ainda levaram à divisão entre “música pop” e “música rock”; se, antes, um e outro termo eram intercambiáveis, a partir de “Sgt. Pepper's” passou a existir uma distinção entre a pop – coisa efémera, mastigável, falsa – e o rock – sério, autêntico, inovador. Só no rescaldo da explosão punk é que começam a surgir as primeiras vozes contra aquilo que se passou a designar, pejorativamente, de rockismo. Que é como quem diz, a falsa crença de que é o rock n' roll o padrão de base da música popular, a demanda pela “autenticidade”, o ódio visceral pela canção “descartável” e pelas grandes estrelas pop. Nas últimas duas décadas, a luta contra o rockismo ganhou força na forma de poptimismo, o seu inverso: a ideia de que a música pop, diga-se, “comercial” merece ser analisada nos mesmos moldes críticos e/ou académicos que o rock.
E é isso que tem acontecido, desde que uma nova leva de vozes críticas encontrou o seu espaço nos jornais e revistas especializadas. A ascensão do poptimismo levou, por exemplo, a que “Blackout”, disco de Britney Spears, tenha sido considerado – por críticos e artistas pop – como um dos melhores álbuns do século XXI, uma “Bíblia da Pop” para quem começou a fazer música na última década; levou a que “Lemonade”, de Beyoncé, fosse encarado como o álbum que recuperou o conceito de “álbum” na era do streaming; e levou a que “Future Nostalgia”, o disco que Dua Lipa veio agora apresentar a Portugal, fosse não só tido como “a banda-sonora do período de confinamento” mas também fosse rotulado de game-changer, isto é, um disco cujo impacto mudará a indústria musical, a música pop, e quem sabe o mundo inteiro.
Mas “Future Nostalgia”, independentemente de todos os recursos estilísticos poptimistas a que possamos recorrer, sofre – e é preciso dizê-lo – de um grave problema de rockismo. Não apenas porque alimenta a teoria supracitada de que o formato álbum é superior ao single, mas também pela própria temática que lhe está subjacente: a nostalgia que se sente pelos tempos e pela música de outrora, aquele antigamente é que era bom que tantas e tantas vezes se escuta da boca de quem acha que a música morreu com o grunge, ou com “Master of Puppets”, ou com os Led Zeppelin, ou com Bob Dylan. A vassalagem que muitos prestam aos velhos grandes nomes do rock não é, tecnicamente falando, muito diferente daquela que a artista inglesa presta ao disco (género assaz odiado pelos rockistas) por via da música que ouvia na infância e adolescência, e que serviu de inspiração para “Future Nostalgia”. Como por exemplo os Daft Punk, cuja sonoridade está bem presente no álbum. Dua Lipa tinha cinco anos quando a dupla francesa editou “Discovery”; lembremos que os videoclips dos singles retirados a esse disco eram todos eles uma homenagem a séries de animação japonesas de quando eles eram crianças, e subitamente o segundo vídeo lançado para 'Levitating' não nos parece tão inocente assim.
Mesmo que o seu modus operandi sonoro não seja o mesmo que o dos franceses (a música não é construída apenas com recurso a samples), aqui e ali notam-se certos traços estilísticos cuja influência só poderia ter vindo das mesmas mãos que compuseram 'One More Time' – e no seu espetáculo na Altice Arena, o 60º da digressão “Future Nostalgia”, isso foi despudoradamente notório. Começou desde logo com as escolhas de canções no pré-concerto, com o PA a debitar êxito atrás de êxito house dos anos 90 e do início do milénio, sendo de salientar a presença de 'Music Sounds Better With You', dos Stardust de Thomas Bangalter. Continuou com 'Love Again', canção dona de uma linha de baixo que se derrete no ar como manteiga em frigideira e à qual é adicionado um trecho de 'Your Woman', dos White Town. E atingiu o seu apogeu quando, antes de 'Cold Heart', os presentes são brindados com imagens que lembravam os famosos capacetes dos Daft Punk, ao mesmo tempo que se escutava 'Together' (via “Alive 2007”) e 'Technologic'.
A magia dos Daft Punk consistia em serem uma banda pop para gente que gostava de rock n' roll. O mesmo parece passar-se com Dua Lipa, que com “Future Nostalgia” rejeita o artifício pela autenticidade (a britânica fez um disco com a música que ama, e não algo ditado pelas tendências mais recentes), a efemeridade pela consistência (cada uma das canções do disco aparenta ter a capacidade de resistir ao teste do tempo) e, passe a expressão, o futuro (a evolução da música) pela nostalgia (o recauchutar de sons antigos). Desse modo, não podemos chamar-lhe “estrela pop”; mas “estrela rock”, como sinónimo de seriedade, parece ser uma expressão que lhe assenta que nem uma luva.
Perante uma Altice Arena praticamente esgotada, com um público cujos gritos se devem ter escutado em Alfama, Dua Lipa apresentou um espetáculo igualmente coeso, dividido em quatro partes, cada qual intercalada por um momento de dança e (mais) música. 'Physical' sucedeu-se a um curto filme introdutório, com estética eighties, onde foram apresentados os dançarinos, ao som de um sintetizador HI-NRG – a disco dessa década. Altamente sincronizados, foram eles o pulmão da hora e meia que não permitiu a ninguém dentro do recinto permanecer sentado, numa espécie de aula de aeróbica que só não fez suar quem não tem poros. Uma estrada ladeada por néons dá o mote para 'Love Again', e 'Cool' conta com a presença de dois patinadores em palco, fazendo as delícias do público.
Este haveria de deixar Dua Lipa igualmente deliciada: notou-se quando entoou a plenos pulmões um dos primeiros versos de 'Break My Heart', de forma igualmente sincronizada, sob o largo sorriso da britânica. Que, pouco depois, haveria de dedicar 'Good In Bed' a um fã presente no golden circle, nomeadamente à sua tatuagem – a natureza da qual não nos foi possível aferir. Se é verdade que a estupefacção foi generalizada aquando do momento em que uma gigante lagosta insuflável toma o palco em 'We're Good', a efusividade tomou conta da Arena no final de 'Boys Will Be Boys', balada feminista transformada em samba, primeiro, e em discoteca, depois.
O momento, interlúdio entre o segundo e terceiro atos, permitiu-nos também dar a mão à palmatória. Aquilo em que Dua Lipa é rockista esfuma-se ligeiramente durante o seu espetáculo ao vivo pelo simples facto de a artista procurar salvar a canção, isto é, o single, através do maior némesis de um longa-duração: o formato DJ set. Algo que aconteceu sobretudo com as canções mais dançáveis do terceiro ato, que se iam interligando entre si: 'One Kiss' (que cantou com Calvin Harris), 'Electricity' (com os Silk City), 'Hallucinate' e 'Cold Heart' (versão de Elton John, remisturada). O longa-duração tem como objetivo valer pelo seu todo; o DJ set, sobretudo se for bom, pode de facto provocar a revolução que Bill Drummond apregoa. Basta que a canção certa apareça na hora certa.
Depois de uma sucessão de bandeiras – a de Portugal e a bandeira LGBT+ em palco, a do Kosovo (Dua Lipa é de origem albanesa) num dos balcões – o espetáculo termina com Dua Lipa a aproveitar a plataforma habilmente colocada no alto da Arena para interpretar 'Levitating', sobrevoando o público, e com um encore onde couberam 'Future Nostalgia' e a inevitável 'Don't Start Now'. Uma hora e meia depois, continuamos a sair da Altice Arena a pensar que é impossível compreender Dua Lipa e “Future Nostalgia” se não gostarmos igualmente de rock, e por arrasto de colocar toda a nossa atenção numa obra de arte total, por oposição a colocá-la num formato tão expedito quanto o de um 7''. Quer isto dizer que antigamente é que era bom? Não, de todo, porque a sua maior vitória reside nisso: no facto de, mesmo recuperando o passado, Dua Lipa querer fazer o presente, independentemente daquilo que o futuro lhe traga. É o título do álbum que está errado. A nostalgia é agora, a revolução também.
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