Em entrevista à Lusa, Mundo Segundo, um dos elementos do coletivo, abordou as dicotomias do ‘hip-hop’ dos anos 1990 e a atualidade, o peso da responsabilidade de mais de 20 anos na indústria e como fazer música de revolução ou consciencialização, sem incitar à violência.
“Sabemos que existem muitos jovens a ouvir-nos, há pais que são nossos fãs e trazem os filhos aos nossos concertos. Sabemos o peso que isso tem e a importância que temos na educação dessas crianças e jovens. Seria uma estupidez qualquer músico […] dizer coisas indiscriminadamente como se não soubesse que isso pode influenciar de forma negativa”, começou por indicar o músico.
Mundo Segundo prosseguiu, explicando que o ‘storytelling’ usado no ‘hip-hop’ não implica qualquer incitamento, mas que isso também depende “de quem absorve e da forma como o interpreta” e que cabe ao recetor fazer “uma filtragem da informação”, sem que o autor esteja isento.
“Podes contar na primeira pessoa, mas perceber que o que estás a dizer pode ter impacto negativo. Temos a música ‘Sala 101’ que é precisamente isso [‘storytelling’], não na forma de te dessensibilizar ou incitar. É sensibilizar de que a violência é crescente e convém diminuir. Falar de forma direta e crua para as pessoas pode criar uma sensibilidade diferente, ao invés de dessensibilizar”, opinou.
Ainda assim, o álbum homónimo dos Dealema, de 2003, tem um tema intitulado “Bófiafobia” no qual o coletivo faz uma dura e explícita crítica aos polícias, denunciando práticas corruptas, mas Mundo Segundo defendeu que o termo “bófia” é usado para descrever um polícia corrupto e que o objetivo nunca foi no “sentido de a polícia ser algo negativo na sociedade”.
“Daí a música ser ‘Bófiafobia’ e não ‘Políciafobia’, porque no Porto um ‘bófia’ é um polícia corrupto. É essa a interpretação que temos da música. Essa música é um ‘storytelling’, que não incita a qualquer tipo de violência. É um alerta a mostrar que, como existem professores bons e maus, também existem polícias bons e maus e que alguns abusam da autoridade”, vincou.
Além disso, o ‘rapper’ afirmou que hoje em dia não teria mudado o tom da crítica, explicando que um dos cuidados dos Dealema é “fazer algo intemporal” e não mudaria nada porque quando tocam a música, as “pessoas continuam a identificar-se”.
“Não quer dizer que pessoas com más intenções não se apropriem dela, mas percebemos que grande parte das pessoas que a ouvem e entoam percebem qual foi a mensagem que quisemos passar”, acrescentou.
O músico rejeita que o “politicamente correto” promovido pelas redes sociais esteja a limitar aquilo de que se pode falar no ‘hip-hop’, mas salienta que a “montra digital”, onde se depositam “todas as coisas boas e o lixo”, tem exposto as polémicas a mais gente.
“A polémica existe desde o tempo dos Public Enemy ou N.W.A.. A montra digital é que está aberta a mais pessoas e causa esse impacto. Mas não é qualquer tipo de condicionante. Sempre foi assim, hoje em dia tem mais exposição, a internet está aberta a toda a gente e causa esse impacto. Para mim é sempre igual, desde o início até agora, só que dantes falávamos em circuitos fechados, hoje em dia está aberto a toda a gente e para todo o mundo”, explanou.
O ‘rapper’ defendeu também que o público deve ter uma filtragem própria e não seguir uma corrente de pensamentos de indignação, porque cada pessoa tem o livre arbítrio “de interpretar da forma que quiser” aquilo que é escrito, assim como o próprio escritor tem de lidar com as críticas de que é alvo.
“Se eu falar de uma coisa de violência doméstica, quem foi vítima pode sentir-se afetado, mas também depende da interpretação que dou ao que vou fazer. Quando escrevo algo que pode afetar alguém que foi vítima, eu tenho de estar ciente que isso pode prejudicar alguém. Tenho de assumir as consequências. Posso ter o direito de me manifestar contra [a crítica] ou simplesmente dizer: isto é a minha obra, não obrigo ninguém a ouvi-la”, atirou, depois de questionado pela Lusa sobre a recente polémica envolvendo o ‘rapper’ Valete, sobre a qual não se quis pronunciar diretamente.
Mundo Segundo prosseguiu, exemplificando com uma ida a uma exposição de arte, sabendo à partida que a mesma contém um quadro “violento cheio de sangue” e que a decisão de ir ou não à exposição é do próprio espectador.
“Toda a gente tem o livro arbítrio de carregar ‘play’ ou não. Tens de ser livre de escolher ouvir ou não ouvir. Se eu não gosto de um filme de horror, para que é que vou vê-lo? O que não quero para mim, não quero por perto. É como as pessoas tóxicas, tu não queres estar no meio delas, então afastas-te. Isto é a mesma coisa, a arte que não queres para ti, pões de parte. Pelo menos é isso que faço na minha vida”, acrescentou.
Questionado sobre se os Dealema deixariam de fazer músicas ou contar histórias explícitas porque poderiam ofender alguém, Mundo disse que a banda ia continuar a fazer o que tem feito até agora: quando faz algo que pode afetar alguém, procuram “provas concretas” e fazem um “estudo aprofundado”.
“Sempre tivemos esse cuidado de não dizer um disparate à toa só porque é consensual e toda a gente vai bater palmas. Há muita gente que diz coisas da boca para fora porque é fixe e vão dizer que é corajoso e depois a pessoa arrepende-se e pensa que não foi corajoso e foi imprudente porque não pensou à frente. Não vamos deixar de fazer o que sempre fizemos, vai ser sempre igual. Com mais maturidade, mais experientes, mas a mensagem está sempre lá”, garantiu o artista de 38 anos.
Os Dealema, coletivo formado por Mundo Segundo, Maze, Expeão, Fuse e DJ Guze, atuam este sábado com a Pérola Negra Band, no Hard Club, no Porto, num concerto que marca a reedição do álbum de estreia homónimo, de 2003, e preparam um novo trabalho, seis anos depois de "Alvorada da Alma".
(Por: André Guerra da agência Lusa)
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