A viver desde 2017 em Altamira, no coração da floresta amazónica, a escritora e jornalista brasileira, que acaba de lançar em Portugal o livro “Meus desacontecimentos” (Companhia das Letras), contou em entrevista à agência Lusa que fez essa opção, porque, como ativista climática, quer estar num dos centros do mundo.
Fê-lo por coerência, como afirmou, porque defende que é “urgente” um deslocamento dos conceitos hegemónicos do que é centro e do que é periferia, ou seja, “os centros do nosso mundo são onde a natureza resiste, não os centros financeiros e políticos, onde as decisões que destroem a natureza são tomadas”, afirmou.
Então, para a jornalista, os centros são a Amazónia, outras florestas tropicais, os oceanos, outros biomas, e não Washington, Pequim, Londres, Frankfurt, Lisboa ou São Paulo.
A reboque dessa ideia de recentralização do mundo, Eliane Brum e o seu companheiro estão a “recentralizar o jornalismo”, contando o que está a acontecer a partir de outro lugar.
Tudo começou em 2016, quando a jornalista estava a fazer o seu primeiro projeto de ativismo com um grupo de psicanalistas, “que era para escutar as pessoas da floresta que foram expulsas pela hidroelétrica de Belo Monte, escutar o sofrimento delas”.
“Eu pensei, se eu sou jornalista e digo que a Amazónia é um dos centros do mundo, porque é que eu estou na periferia do mundo, em São Paulo, e não na Amazónia?”.
Eliane Brum não separa a cidadã ativista da jornalista e acredita que ambas podem e devem coexistir, sem pôr em causa as regras e os critérios que sustentam o bom jornalismo.
“Eu acho que quem não é ativista hoje ou está morto ou está em coma. É porque a gente está vivendo a situação mais desafiante de toda a trajetória humana nesse planeta”, afirmou, explicando que isso a confrontou com a necessidade de “fazer o que não sabe”, porque “o que sabe não é suficiente” e isso faz-se usando “a imaginação”.
Começou então a criar projetos com outras pessoas, o principal dos quais é uma plataforma jornalística, baseada na Amazónia, chamada “Sumaúma – Jornalismo do Centro do Mundo”.
Nesta plataforma, “a gente está formando jornalistas da floresta para que contem o que está acontecendo lá a partir de outra linguagem, a partir da linguagem de dentro, a partir da linguagem de quem não se separa da natureza”, contou, explicando que a criação deste projeto é em si um ato de ativismo, mas “o jornalismo de Sumaúma segue rigorosamente as premissas do jornalismo”.
“Eu desafio qualquer pessoa com as nossas matérias. As matérias são extremamente rigorosas. A gente recuperou o que o jornalismo perdeu com a crise, nós temos ‘checkador’, nós temos revisor, nossos tradutores são nativos profissionais, a gente tem revisão das traduções, tudo é rigorosamente tratado, os factos são respeitados”.
Contudo, Eliane Brum assinala que, apesar do desastre climático, algo de novo está a surgir, uma “nova infância” de crianças e jovens preocupados com o futuro do planeta.
“As maiores e mais importantes manifestações por ações contra o aquecimento global, contra a destruição da natureza, foram lideradas por adolescentes”, destacou.
Na opinião da jornalista, pela primeira vez na história, há uma inversão: “Não são os adultos que protegem as crianças, são as crianças desesperadas pela inação dos adultos”.
Para a ativista, é preciso começar a viver na emergência e isso não é o que está a acontecer.
“Eu acho que o capitalismo, ao nos converter em consumidores, ele sequestrou o nosso instinto de sobrevivência, que qualquer organismo, qualquer ser vivo, diante de uma ameaça, imediatamente reage. E nós, não. Então eu acho que é esse o pânico dos adolescentes que se movem”.
Usando uma metáfora, a autora entende que estes jovens olham para a inação dos adultos como quem vê uma casa em chamas e um adulto sentado, no único lugar que ainda não está a arder e precisa de ser convencido a enfrentar o fogo e a não se deixar queimar.
O que a preocupa são negacionistas, e não os políticos, porque esse é um “negacionismo calculado” - eles “sabem perfeitamente o que está a acontecer”. Por isso, preocupante é o negacionismo que afeta a população.
Preocupada com a ascensão da extrema-direita um pouco por todo o mundo, Eliane alerta para a mentira que este movimento prega: É “uma mentira confortável" que promete o regresso a “um passado que nunca existiu”.
Por outro lado, um político e um partido que digam a verdade vão dizer que “o mundo vai piorar, que quem tem privilégios vai precisar de perder privilégios, que a gente vai precisar mudar radicalmente o modo de vida, e já”.
“Em quem vota? Nós precisamos de votar em quem diz a verdade, e fazer comunidade para enfrentar esses comedores de mundos”.
Eliane Brum fez viagem de "dentro para dentro" para resgatar a vida com palavras
Editado na coleção de não-ficção literária da Companhia das Letras, “Meus Sentimentos” é o primeiro livro publicado em Portugal da escritora, jornalista e documentarista Eliane Brum, a repórter mais premiada do Brasil.
A memória, a palavra e a escrita são primordiais nesta obra confessional, em que a escritora faz uma viagem “de dentro para dentro”, depois de uma reportagem marcante, que a fez sentir que a escrita não era suficiente para resolver problemas, e a deixou paralisada, sem conseguir mais escrever, como contou em entrevista à agência Lusa.
“Então esse livro, ele é um livro que volta p’ra dentro, que vai p'ra dentro de mim, para resgatar essa tessitura que, por um momento - como acontece algumas vezes na minha vida, [esta] não foi a única -, tinha rasgado e eu não conseguia mais enxergar esse bordado. E aí, eu precisei escrever, precisei voltar lá”, afirmou, explicando que sente que foi a palavra e este livro que a salvaram e a fizeram voltar a escrever.
Ao longo deste breve livro, desfilam lugares e personagens que habitaram principalmente a infância da escritora, como a casa onde vivia, o peso da irmã morta, a relação com os familiares, os jardins das tias, a importância das novelas de rádio, a gravidez na adolescência, a entrada no mundo dos livros, os primeiros escritos ou o índio que se hospedou em sua casa.
O regresso à infância narrado no livro é desprovido da magia e encantamento que habitualmente a literatura lhe associa, porque para Eliane essa ideia “da infância como um lugar de felicidade” é um mito que “faz muito mal”.
“Da infância, somos todos sobreviventes”, escreve a autora, explicando: “E eu acho que é isso, a gente cria uma vida também conforme os sentidos que a gente vai dando para aquilo que a gente viveu, especialmente na infância. Mas eu acho importante a gente poder falar que a infância é bastante aterrorizante, é a nossa estreia no mundo”.
E voltando às palavras, a escritora afirma que ao escrever sobre a menina que fizeram a mulher em que se tornou, vai entender a mulher que é, acrescentando que “estava tudo ali, entrelaçado”, mas o desenho não era visível no momento, só voltando atrás conseguiu ver.
Eliane Brum intitulou de “Meus desacontecimentos” um livro em que narra acontecimentos, uma expressão que adotou ainda antes de se ter tornado jornalista, mas que reforçou depois, quando percebeu que o seu interesse sempre esteve em histórias que não seriam noticia.
“Sempre foi essa a minha curiosidade. Então, quando me tornei jornalista, muitas vezes me davam pautas [agendas] de acontecimentos e eu ia p’ra rua e encontrava outra coisa que estava atrás, ou estava do lado, ou estava nos bastidores que me interessava muito mais”.
Esta foi uma luta do seu começo nas redações – recorda -, mas as histórias que levava eram “boas histórias” e com “muita briga” foi conseguindo o seu espaço, até ganhar, após 11 anos de profissão, uma coluna de reportagem no jornal em que trabalhava, “que se chamava justamente “‘A vida que ninguém vê’”.
Como relata no livro, Eliane escolheu “buscar os invisíveis, os sem-voz, os esquecidos, os proscritos, os não contados, aqueles à margem da narrativa”, e passou a apresentar-se como uma repórter de desacontecimentos.
“Então, a ideia é que não existem vidas comuns, toda a vida é extraordinária. O que acontece às vezes é que os olhos são domesticados, e os olhos da gente, de nós, jornalistas, não podem ser domesticados, então eu me interesso muito mais pelo que ‘desacontece’ do que pelo que acontece. Fiz isso toda a minha vida de jornalista”.
E aquilo que inicialmente era instinto tornou-se uma “ação política” dentro do jornalismo, mas também a sua forma de se movimentar.
Em 36 anos de jornalismo, Eliane Brum já ganhou mais de 40 prémios nacionais e internacionais de reportagem, trabalhou 11 anos como repórter do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e dez como repórter especial da Revista Época, em São Paulo. Desde 2010, exerce como ‘freelancer’, colaborando, entre outras publicações, como El País, The Guardian e The New York Times.
O primeiro prémio ganhou-o na faculdade, onde cursou jornalismo acidentalmente, para fugir à matemática de Informática, por uma reportagem que escreveu sobre todas as filas por que as pessoas passam, desde que nascem, até morrer.
Para Eliane, o jornalismo nela nasce de “gostar de escutar histórias e de gostar de habitar o corpo dos outros”, mas a paixão pelo jornalismo, o momento em que ganha essa consciência, aconteceu quando foi entrevistar uma prostituta, que encontrou uma vez à noite e com quem combinou uma conversa no dia seguinte no apartamento dela.
A jornalista apresentou-se à hora combinada, mas quem lhe abriu a porta foi outra prostituta, que estava nua. Deitado na cama “estava o cafetão, nu também”. Deixaram-na entrar, sentar-se “no cantinho da cama” e fazer “a entrevista com os dois nus”. Foi a sua primeira entrevista.
“Eu nem me lembro o que eles disseram, mas eu lembro que foi uma entrevista muito ruim, porque foi uma situação... Mas quando eu saí de lá, eu me lembro que eu parei em frente do prédio, eu estava com um bloquinho e uma caneta, e pensei: ‘Com um bloquinho e uma caneta, eu posso entrar em qualquer lugar do mundo. É isso’”.
Eliane Brum é da opinião de que as redes sociais vieram pôr em risco o jornalismo e as próprias sociedades, pelo seu imediatismo, com toda a desinformação, ‘fake news’ e violência que propagam.
Referindo-se às últimas eleições municipais no Brasil, a autora afirmou que estas “mostraram o quanto as redes sociais são importantes para as próprias campanhas politicas e resultados”, de tal forma que “um ‘influencer’, essa nova figura chamada ‘influencer’, saída desse mundo, quase ganhou a prefeitura de São Paulo”, e era de extrema-direita.
“Eu acho que a gente precisa de resistir e a gente precisa criar outros jornalismos, que é o que a gente está tentando fazer; precisa de outras vozes e de outras linguagens”, considerou.
Sobre a forma como as redes sociais vieram escancarar portas, Eliane citou o escritor e jornalista brasileiro Nelson Rodrigues (1912-1980), que dizia que se as pessoas soubessem o que acontece e o que é falado dentro de quatro paredes, ninguém se cumprimentava na rua.
A internet fez com que as pessoas passassem a saber o que diz, o que pensa e a violência de que é capaz aquele vizinho sorridente que dizia bom dia no elevador, afirmou, considerando que “isso tem um efeito na vida, porque quando se tem autorização para ser violento na internet, não é uma violência virtual, é uma violência real, e é obvio que a sociedade muda com isso”.
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