José Pinhal faleceu em 1993, vítima de um acidente de viação. Deixou para trás três álbuns, editados em cassete, e uma ausência da memória coletiva. Coletiva? Não: ainda havia quem se lembrasse. Melhor, havia quem o tivesse descoberto, muito mais tarde. É o caso de Paulo Cunha Martins, que descobriu duas dessas cassetes num apartamento, no Porto, corria o ano de 2001. Palavra puxa palavra, amigo aconselha amigo, as canções de José Pinhal acabaram no YouTube e deixaram muita gente curiosa. Quem era aquele homem que cantava coisas como bola de cristal mentia ou tu és covarde de verdade?
Avancemos. Em 2016, os José Pinhal Post-Mortem Experience juntam-se para tocar numa festa de aniversário do seu guitarrista, João Sarnadas, também conhecido por Coelho Radioactivo. As canções ganham vida própria. Nos idos anos 80, eram escutadas em arraiais populares, a sonoridade era (e é) para ser dançada e apreciada nesses meios onde o elitismo é coisa que não existe, trocado que foi pela pura e simples celebração. Pelas mãos do grupo formado por Sarnadas, Bruno Martins, David Machado, José Cordeiro, José Pedro, Nuno Oliveira e Tito Santos, é escutada em festivais de verão mais ou menos dedicados à música alternativa, como este mesmo em Ponte de Lima.
Como é que um homem se torna num fenómeno post mortem? Que peso tem essa morte prematura na apreciação global da música de um artista? Estaríamos hoje a falar de José Pinhal, dedicaríamos hoje artigos a José Pinhal, teríamos nós José Pinhal no britânico “The Guardian” caso ele ainda fosse vivo? A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. Mas neste caso não se trata de pesadelo. Neste caso nem sequer se trata de ressurreição. Trata-se de elevar José Pinhal até à classe dos imortais.
Zé Pinhal, imortal
Grita-se isso mesmo, durante o concerto dos José Pinhal Post-Mortem Experience no Festival Ponte d'Lima: Zé Pinhal, imortal. Pensa-se isso mesmo, quando percebemos que aquelas dezenas de pessoas ali presentes em frente ao palco secundário guardam na ponta da língua letras de canções que existiram, em alguns casos, muito antes de terem nascido. Tem-se a certeza disso quando um grupo de cinco, seis pessoas passa pela zona de restauração do festival, todas elas com t-shirts brancas, a cara de José Pinhal estampada.
Perguntamo-nos se “fenómeno” será mesmo a palavra certa. Um fenómeno é momentâneo. José Pinhal é imortal, já o dissemos. Pela perseverança dos seus fãs, José Pinhal saltou da relativa obscuridade para algo que já muita gente reconhece. Também nos perguntamos se post-mortem fará sentido – se é imortal não morreu de facto. “Pela facilidade da coisa, não vamos agora mudar o nome da banda”, explica-nos João Sarnadas ao balcão da Tasca das Fodinhas (sim, isso mesmo), em Ponte de Lima, onde o grupo esteve para uma sessão fotográfica e uma entrevista. “Corríamos o risco de ficar uma coisa, assim, polémica. Já é relativamente polémica...”.
De que forma? “É um tributo. Temos de ter algum respeito pela coisa. Mencionares o nome da pessoa já falecida no nome do projeto... Não se pensou que pudesse haver descendentes que pudessem levar a mal”. Há descendentes: uma filha e respetivos netos. Não levaram a mal. “Estão muito contentes. Estivemos com eles recentemente. Sentem que, finalmente, o pai/avô atingiu um patamar que, se calhar, precisava de atingir em vida”. E tanto o atingiu que, algures no IP2, perto de Vila Velha de Ródão, alguém decidiu grafitar numa das proteções laterais de cimento o verso da canção de José Pinhal que mais tem batido: tu não prendas o cabelo.
Mosh, crowdsurf e até um circle pit em 'Porém Não Posso'
Madalena trabalha na produção do festival e foi a correr para o palco secundário assim que soou essa mesma canção. “É sentimento, é emoção”, diz-nos. “Nós temos ouvido muito esta música nos últimos tempos. Dá energia para o resto do festival”. Madalena correu como muitos outros assim que os primeiros sons emanaram do palco, batida disco anunciando a chegada da Post-Mortem Experience. Bruno, o vocalista, vestido de branco, como o próprio Pinhal outrora. Lembramo-nos dele nos Equations, banda math/hardcore que desapareceu mais cedo do que o que se desejava, e tudo aquilo poderia parecer estranho se não soubessemos estar na presença de gente que gosta verdadeiramente de música, seja ela alternativa ou popularucha. Menos estranho pareceu quando o público desatou a fazer tudo aquilo que se testemunha num concerto de hardcore: o mosh, o crowdsurf, até um circle pit em 'Porém Não Posso'.
Nem os problemas com o som travaram o bailarico que já faz parte da experiência José Pinhal. A imortalidade tudo perdoa. Dúvidas houvesse, houve um momento, após a apresentação da banda por parte de Bruno, em que a música foi abaixo e as luzes do palco se apagaram, culpa de um gerador intrometido. Isso machucou, de alguma forma, a atuação? Nada. Porque o público presente desatou, ele próprio, a entoar os versos de José Pinhal, transformando o que era um óptimo concerto em algo de transcendental, o segundo exato em que artista e fãs estão em plena comunhão. Qualquer outro artista seria forçado a pedir desculpas, teria que encarar multidões a afastarem-se para ir buscar mais cerveja ao bar. José Pinhal e os Post-Mortem Experience provocam esse efeito simbiótico.
O problema seria resolvido e o grupo voltaria à eletricidade. Teria sido absolutamente perfeito, deífico, se tivessem por ali ficado, um coro enorme a subir a escadaria da imortalidade. Teria sido o momento mais bonito de um concerto em Portugal em 2023 e um passa-palavra do Festival Ponte d'Lima para o futuro: estavas lá quando toda a gente cantou no meio do escuro? Foi menos que perfeito, foi maravilhoso. E foi algo que nem Legendary Tigerman (que não sabe dar maus concertos, demonstrando-o uma vez mais aqui) nem Aron (trapper espanhol que interpretou Ander em “Élite”, da Netflix) conseguiram ter. A vida não dura muito pouco, afinal: durará enquanto houver quem se lembre.
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