Mariza é Mariza, Amália é Amália. A comparação, que já assume entender, diz, porém, ser injusta. Para Amália.
Em comum têm apenas o “querer representar a cultura de um país e de um povo, e de ter o maior orgulho em fazê-lo”. Ponto.
Gravado entre o Rio de Janeiro e Lisboa, “Mariza canta Amália” não é um disco de fados. É um álbum composto por dez dos mais emblemáticos temas de Amália, de “Barco Negro” a “Estranha Forma de Vida”. Um disco desejado “há muitos anos”, que é editado no ano em que Mariza completa 20 anos de “percurso” e quando se comemora o centenário do nascimento de Amália Rodrigues (1920-1999). “Ao cantar Amália continuamos a mantê-la viva, a fazer com que faça parte da banda sonora das nossas vidas e a manter uma história”, lembra.
Num ano também ele atípico, marcado por uma pandemia, Mariza assume as saudades do palco e deixa um apelo: “não nos deixem morrer, nós precisamos de trabalhar como qualquer pessoa”.
E já agora, se ouvisse o "Povo que Lavas no Rio" cantado pela Adele diria que era um fado?
“Amália na minha idade era uma senhora, olho para mim e não me sinto uma senhora”
100 anos do nascimento de Amália, 20 anos de carreira da Mariza. É coincidência este disco sair agora?
Este disco já tinha sido pensado há muitos anos, sempre disse que o faria. E em vez de ser só uma ideia na minha cabeça, começou a fazer sentido. Já me sentia preparada, com alguma maturidade, na altura ideal — pelos meus vinte anos de percurso e pelo centenário do aniversário. ["Marisa canta Amália"] tem como referência um disco em que Sinatra canta António Carlos Jobin, um disco intemporal. Sempre que o oiço fico com a sensação de que de aquela música pode ser ouvida por qualquer geração, em qualquer parte do mundo, e em qualquer época. E este disco também é intemporal, pode ser ouvido hoje ou daqui a cinquenta anos, por qualquer geração.
A demora deste disco esteve de alguma forma relacionada com o rótulo que muitas vezes lhe colaram, o de ser “a nova Amália”?
Não... Hoje, passados tantos anos, entendo quando as pessoas fazem essa comparação. A princípio não entendia, e fazia-me imensa confusão. Hoje entendo. Mas, ao mesmo tempo, sinto que não seja justo. Não seja justo para com Amália, para com a sua memória, para com tudo aquilo que nos deixou. Até porque somos cantoras em séculos diferentes, somos artistas com vidas completamente díspares. E para mim é isso que faz um cantor, a sua vida, o seu lado pessoal, as suas experiências. Vão moldando a forma como cada um vai dando a sua arte. Por aí, acho que nem sequer tem comparação. Depois, temos personalidades que não têm nada a ver uma com a outra.
Porque é que diz isso? O que é que vos diferencia?
Eu nunca convivi com a Amália, pelo que não lhe posso dizer que tenha conhecido a sua personalidade. Sei do que me é dado a conhecer e o que é público. Mas acho que somos mesmo diferentes. Não estou a ver Amália de cabelo curtinho e loiro, com tatuagens, com jeans, de ténis. Vou fazer 47 anos daqui a uns dias; a Amália na minha idade era uma senhora, olho para mim e não me sinto uma senhora. Talvez por ter um filho pequeno — outro termo de comparação, a Amália não teve filhos.
Agora, sendo sincera, temos em comum o facto de querer muito cantar em português, de querer representar a cultura de um país e de um povo, e de ter o maior orgulho em fazê-lo. Temos em comum termos pisado os maiores teatros de todo o mundo, e as honrarias... Talvez seja das artistas portuguesas com mais honrarias.
“Não sou tão sortuda em ter um Oulman como Amália teve, que se dedicava a ela de alma e coração, que só compunha e respirava Amália”
Não é a primeira vez que grava Amália. “Barco Negro” [“Fado em Mim”, 2001] é o único dos dez temas que já tinha incluído num dos seus discos. Porquê voltar a ele?
O primeiro tema que conheci na voz da Amália foi o "Barco Negro”, tinha eu 16 anos. Conheci Amália muito tarde. Obviamente que conhecia já muitos temas, mas nunca cantados pela sua voz. No fado vadio, onde me movimentava — os meus pais tinham uma pequena taberna —, muitas pessoas cantavam fados da Amália. Ouvi muitas vezes o "Lágrima" ou o "Povo que Lavas no Rio", mas não conhecia a Amália. Hoje temos os telemóveis e as plataformas digitais, naquela altura não. Vivia-se dentro do bairro, ouvia os discos que as vizinhas punham e o fado que se fazia na rua, na taberna dos meus pais e nas coletividades.
A primeira vez que o ouvi estava a andar na Baixa com os meus amigos. Fiquei muito curiosa e perguntei a um senhor quem era. Respondeu-me “Amália” com uma cara de como quem diz 'esta mulher saiu de onde?'. Cheguei a casa e disse logo ao meu pai: descobri Amália. O meu pai sempre ouviu poucas vozes femininas, eu sou das poucas — vá-se lá saber porquê…
O "Barco Negro" ficou-me na cabeça e, mais tarde, quando faço o meu primeiro disco, cantei-o à minha maneira, conforme entendi a história. Canto-o, até, de uma maneira completamente diferente. Vinte anos depois sabe muito bem poder revisitá-lo, já sem a inocência que tinha e já conhecendo os cantos à casa. Estou a dizer isto, mas foi dos temas mais difíceis de cantar neste disco. O Jaques [Morelenbaum] fez uns arranjos que me iam matando [risos].
“Há um lado egoísta quando faço os meus discos. Não faço a pensar no que é que vão pensar, no que é que vão gostar ou no que é que vão ouvir. Faço para mim. Canto o que gosto, canto o que sinto. Essa é a minha verdade”
Qual foi o critério de seleção dos restantes temas?
Vou ser sincera: cheguei ao Brasil [o disco foi gravado, em parte, no Rio de Janeiro] e tinha quase trinta temas.
Desconfiava que a resposta passasse por aí.
São muitos temas, queria muitos temas. E o Jaques dizia-me que não, ainda para mais num disco com orquestra. "Não pode, não pode...". Foi uma batalha, mas a escolha recaiu nos temas que melhor conheço, que fazem parte do nosso imaginário, da banda sonora das nossas vidas e, fazendo sempre jus ao seu legado, do repertório da Amália. Mas também pelas melodias, porque o Jaques apaixonou-se muito pelas melodias. A maior parte destes temas são do Alain Oulman.
“Sinto que muita gente se debate se eu sou ou não sou fadista, se canto ou não canto fado... Acho é que as pessoas deviam entender que sou uma cantora e que gosto de cantar”
Jaques Morelenbaum é o seu Oulman?
Não, o meu Oulman será o Tiago Machado. Que fez o "Gente da Minha Terra", e mais poemas que eu lhe desse ele faria. Mas eu tenho alguns Oulman's. O Tiago, o Mário Pacheco, o Jorge Fernando. Não sou tão sortuda em ter um Oulman como Amália teve, que se dedicava a ela de alma e coração, que só compunha e respirava Amália. Ainda não tenho esse dom, infelizmente. Mas gostaria. O Jaques é o meu maestro de eleição, a pessoa que me fez sentir que trabalhar em estúdio tinha uma lógica, uma razão de ser. Eu odiava estar em estúdio até ao meu segundo disco.
Os meus Oulman são o Tiago, o Mário Pacheco, que me dá temas maravilhosos, o Jorge Fernando, que produziu o meu primeiro disco e que me deu o “Chuva", o Boss AC, que me deu "O Melhor de Mim". Nestes vinte anos tenho tido sorte; não foram fáceis, mas têm sido, e são, maravilhosos.
Amália ‘ousou’ cantar Camões e foi ‘castigada’ por isso. Sentiu em algum momento que foi alvo de críticas por ter ‘ousado’ cantar alguém?
Não posso dizer que seja uma artista egoísta porque dou muito, e tento dar o máximo que posso. Mas há um lado egoísta quando faço os meus discos. Não faço a pensar no que é que vão pensar, no que é que vão gostar ou no que é que vão ouvir. Faço para mim. Canto o que gosto, canto o que sinto. Essa é a minha verdade. Obviamente que há sempre críticas, mas nunca senti que devia cantar fulano e não beltrano. Sinto, por exemplo, que muita gente se debate se eu sou ou não sou fadista, se canto ou não canto fado... Acho é que as pessoas deviam entender que sou uma cantora e que gosto de cantar. Mas também deviam entender que da minha parte, sempre que for possível, vou primar por fazer boa música, ter bons poetas, ter bons músicos e fazer bons concertos. Essa é a minha forma de estar nesta arte, não sei fazer mal feito. Já dizia Duke Ellington: "só existem dois tipos de música, a boa e a outra". Eu tento fazer a boa.
Ainda antes dizia que a sua personalidade era diferente da da Amália. No limite do que conheço, deixe-me dizer que sinto que essa resposta podia ser dada por ela.
Nunca conheci a Amália, e era um grande sonho. Quando acabada de cantar no “Sr. Vinho", todas as noites, dizia à Maria da Fé: amanhã vou levantar-me cedo. Amanhã vou levantar-me cedo — porque nunca me levanto cedo, a não ser em tournée ou por causa do meu filho —, vou chegar na porta da Dona Amália, bater, ela vai abrir e vou-lhe pedir: "Ó Dona Amália, deixe-me conhecê-la e ensine-me a cantar". Nunca aconteceu.
E arrepende-se?
Não, porque acho que não era para ser. Acredito que as coisas acontecem quando têm de ser. Se nunca o fiz, não era para acontecer.
O disco foge um pouco ao ambiente do fado mais tradicional. Não queria colar-se aos arranjos para a voz de Amália?
Tenho uma forma de cantar muito própria e durante estes vinte anos acho que já toda a gente o percebeu. Não quero ser a nova Amália nem a próxima, sou a Mariza. Já me fiz como artista, não preciso de estar debaixo do braço ou da asa de ninguém. De querer ser ou deixar de ser. Eu sou eu, mas sempre fui. Obviamente que todas as pessoas têm as suas influências. Amália é uma grande influência e ao cantar Amália continuamos a mantê-la viva, a fazer com que faça parte da banda sonora das nossas vidas e a manter uma história. Na história do fado existe um antes e um depois de Amália, tal como como no flamenco existe um antes e depois de Paco de Lucía e no tango um antes e depois de Piazzolla. Há pessoas que marcam, e Amália marcou a história do fado. Acho fantástico poder continuar a manter o nome para uma nova geração. Muitos miúdos não sabem quem é Amália, não fazem ideia. E é bom que conheçam um grande nome da cultura portuguesa e o nome de uma mulher que fez com que o de Portugal fosse ouvido, numa época em que tudo era diferente.
É-se menos fadista se não se cantar Amália?
Isto leva a uma outra resposta. O que está neste disco, "Mariza canta Amália”, não são os fados - E eu tenho imensa pena que as escolas não tenham isto na matéria de História. O fado, esse dossier que a UNESCO aprovou e que faz de nós Património Imaterial da Humanidade, e do qual sou embaixadora, é baseado no fado tradicional. O fado tradicional são músicas que têm entre 100 e 120 anos, que funcionam com uma métrica e cujas melodias podem ser cantadas por qualquer pessoa, e o que pode mudar são os poemas funcionando com a métrica. Neste disco, temos fados musicados; e os fados musicados são melodias. Diz-se que são fados porque foram cantados por uma mulher que cantou o fado durante muitos anos, mas que depois foi buscar melodias. O Alain Oulman não fazia fados e por isso gozavam com a Amália. Hoje as pessoas consideram-nos fados, mas naquela altura não. E não são fados, são melodias maravilhosas que nos foram deixadas. Se ouvisse o "Povo que Lavas no Rio" cantado pela Adele diria que era um fado?
“Sinto muita falta, mesmo muita falta, do palco”
Diria que teria muita curiosidade por ouvir aquele vozeirão cantá-lo.
E se a Adele pegasse numa das suas melodias e pusesse uma guitarra portuguesa, diria que era um fado?
Diria o mesmo, que o queria ouvir.
[risos] Pois é, temos estereótipos na cabeça que às vezes nos prendem.
Ainda os há no fado?
Eu começo com um disco que tem percussões africanas. O "Melhor de Mim" não é um fado, o "Quem me Dera" não é um fado, e o "Gente da Minha Terra" também não é um fado. Obviamente que pertencer a uma cultura é maravilhoso, fazer parte de algo é maravilhoso, mas as pessoas deviam abrir mais a mente e perceber, estudar um pouco mais. Por ter guitarra portuguesa não quer dizer que seja um fado.
Em 2018, quando a entrevistei pela primeira vez, falámos sobre cantar poemas seus. Já se sente mais em paz com essa possibilidade?
Esta coisa do Covid bloqueou-me completamente. Tenho escrito, mas não poemas. Prosas e pensamentos. Está muito difícil escrever; esta pandemia trouxe, não sei explicar, alguma desmotivação. Tenho tido muita vontade de cantar, sinto muita falta, mas não de escrever. Sinto muita falta, mesmo muita falta, do palco, da energia da minha vida normal, de viajar...
“O que nós pedimos é que não nos deixem morrer, nós precisamos de trabalhar como qualquer pessoa. Precisamos que venham aos concertos e que se sintam seguros, porque o que estamos a fazer é com a máxima segurança"
Face ao atual contexto, como olha para o futuro das casas de fado e para o de toda a indústria?
Consigo ter um comentário sobre a indústria da música, não do fado. Não sobre as casas que têm música ao vivo, mas sobre um grupo de pessoas. Desde a pessoa que monta os cabos à que monta o palco, passando pela que faz o desenho das luzes. Uma equipa gigante que faz com que tudo aconteça e que há quase um ano que não trabalha. Não sei como é com as casas de fado, mas sei como é com os espetáculos que, neste momento, estão parados.
Tenho dois concertos agendados, mas este ano iria fazer 110. Até agora fizemos 5. Eu faço a minha agenda com dois anos de antecedência e os meus concertos [internacionais] até outubro de 2021 estão todos cancelados. A vida não está fácil para nós porque nós vivemos disto. Se há um espetáculo, ganhamos dinheiro; se não há um espetáculo, não ganhamos. Esta é a nossa vida, e nunca ninguém disse que não era.
Tenho dois concertos, um no dia 28 de novembro no Campo Pequeno (Lisboa) e outro a 19 de dezembro na Super Bock Arena (Porto). Até agora os espetáculos estão de pé, com toda a segurança possível. O que nós pedimos é que não nos deixem morrer, nós precisamos de trabalhar como qualquer pessoa. Precisamos que venham aos concertos e que se sintam seguros, porque o que estamos a fazer é com a máxima segurança.
É ter fé, esperança, um sorriso no rosto e ver sempre o olho lado do espelho. É bom ter-se uma perspetiva positiva das coisas, nem tudo é negativo. Vamos procurar onde está o positivo disto tudo, no meu lado foi acompanhar mais o meu filho.
O último concerto que dei foi em Viena (Áustria) e, quando saí do palco, chorei. Chorei que nem uma criança. Porque tinha tantas saudades e ao mesmo tempo parecia uma miúda que estava a começar do zero. Além de ser a nossa vida, cantar é o que nos alimenta.
Se escolhesse um fado que servisse de banda sonora a este período, qual seria?
Nunca poria uma música como banda sonora de um universo tão negro.
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