A culpa é daquele riff.
Logo ao início. Aqueles quatro acordes repetidos por seis vezes, as duas primeiras agindo como rastilho. O troar elétrico – antecipado por uma bateria espancada – que anuncia o devir, ground zero para uma geração que, alguém dizia, vivia no fim da história. Claro que ninguém se lembrou de perguntar a essa mesma geração se sentia vivê-lo, ou se queria viver nele. Se o tivessem feito, tanto numa questão como na outra a resposta seria impreterivelmente negativa. A Geração X, apática, cínica, encontrava aqui o hino que dizia não querer, o grito de guerra contra uma máquina que lava sangue com lixívia e enfeita esse gesto com flashes de máquinas fotográficas e lacinhos a dizer “Hollywood”: Here we are now / Entertain us.
Desde que foi editada, 'Smells Like Teen Spirit' já foi alvo de artigos de jornal, análises sociológicas e políticas, teses de mestrado. Já foi tocada, em todo o mundo, por milhares, milhões de aspirantes a guitarristas. Já foi remisturada, reciclada, revendida, reapropriada, renegada. Já foi alvo de memes. E, apesar de tudo isso, continua a mover-se – porque o riff continua lá, a anunciar um espírito revolucionário que, durante brevíssimos meses, conseguiu concretizar-se em vitória. Um espírito difícil de matar, ainda que o tentem embalar como a uma pastilha elástica, à qual se recorre para tirar um qualquer sabor aziago da boca. Porque quem o escuta sente, e não por nostalgia, que a promessa é possível.
Quando “Nevermind”, impulsionado pelo sucesso de 'Smells Like Teen Spirit', chegou a número um nas tabelas de vendas dos Estados Unidos, a jornalista Gina Arnold encarregou-se de soltar a palavra que se encontrava guardada nas goelas de tantos: «Ganhámos». Foi preciso algum tempo, foi preciso construir meios de produção culturais que não fossem reféns do capital, mas a vitória era deles. Dos punks, dos “alternativos”, da Geração X, dos jovens, de uma América que não se revia em Reagan e que sabia que debaixo das pedras da calçada, longe da ilusão neoliberal, existia a praia. Que a identidade do vencido, daquele que perdeu o primeiro posto, tenha sido a de Michael Jackson (rapaz treinado desde criança para singrar na indústria do entretenimento, eventualmente consagrado “Rei da Pop” – e por isto leia-se “Rei do Mainstream”) só lhe conferiu um tom poético.
Temos vindo a assinalar 1991 como o ano em que tudo o grunge mudou mas, se quisermos ser precisos, é o ano em que tudo 'Smells Like Teen Spirit' mudou – não é à toa que, trinta anos após o seu lançamento e o de “Nevermind”, 'Smells Like Teen Spirit' continua a ser apontada como a melhor canção rock de sempre (por uns), a melhor canção de sempre (por outros) ou a canção mais icónica de sempre (por mais). Sem 'Smells Like Teen Spirit', e sem desprimor para as bandas que abriram caminho para os Nirvana, não falaríamos de grunge com a reverência que tendemos a prestar-lhe. Sem ela, os eternos rivais Pearl Jam poderiam ser “apenas” uma banda de culto e não uma das maiores bandas rock do mundo. Sem ela, não haveria tantas lágrimas após a morte trágica de Chris Cornell. Sem ela, a flanela e os pares de Doc Martens seriam hoje apenas um anacronismo, uma moda semelhante à do disco. E pensar que tudo começou com um grafito numa parede.
Aqui estamos, entretenham-nos
Antes de chegarem a 'Smells Like Teen Spirit', os Nirvana tiveram que trilhar um percurso semelhante ao de tantas outras bandas punk: tocar em bares manhosos para meia dúzia de pessoas, editar um single por uma editora independente, trocar de baterista umas quantas vezes, viajar pelo país numa carrinha suada e lançar um disco. “Bleach”, de 1989, e que hoje é colocado (injustamente, dir-se-ia) em terceiro plano quando comparado com os dois álbuns que se lhe seguiram, quando os Nirvana já faziam parte da “indústria”, vendeu o suficiente para que passassem a ser tidos como uma promessa. Mesmo sem o apoio da Sub Pop, a editora que colocou Seattle, e o grunge, nos mapas. Algo que muito irritou Kurt Cobain. «Nós não apostávamos muito em anúncios para os Nirvana», admite o cabecilha Bruce Pavitt em “Everybody Loves Our Town”. «A nossa aposta era na Sub Pop enquanto editora», e não num grupo em particular.
Apesar de tudo o que já se escreveu sobre si, Kurt Cobain continua a ser uma personagem difícil de decifrar. Vivia numa espécie de limbo entre o querer manter acesa a chama punk, mantendo-se independente e desafeto à cultura de massas, e o querer ser o mais conhecido possível, apenas pela qualidade das suas canções. Ser um ídolo, sem o ser: o ícone perfeito, portanto, para uma Geração X avessa a ícones. A Sub Pop não seria a sua porta de entrada para o mainstream, e Cobain sabia-o. «Ele queria ser grande», afirma Danny Goldberg, presidente da Gold Mountain Entertainment e homem que geriu a carreira dos Nirvana, no mesmo livro. «Comprometeram-se connosco logo na primeira reunião. A dada altura, perguntei-lhes se queriam continuar na Sub Pop. O Kurt, que se tinha mantido calado até então, respondeu definitivamente que não».
Não é como se Kurt, ou os Nirvana, tivessem que procurar muito. Em 1990, as grandes editoras já tinham Seattle debaixo de olho, e a cidade via-se invadida por vários caça-talentos, à procura de outros Mother Love Bone (que assinaram pela PolyGram em 1988) ou de outros Soundgarden (que se juntaram à A&M no ano seguinte). A presença dos amigos e mentores Sonic Youth na Geffen, onde gozavam de um estatuto impensável para uma banda de matriz independente – podiam fazer o que lhes desse na gana, incluindo contratar outros artistas – pesou na decisão final dos Nirvana. «De todas as editoras que analisámos, a Geffen parecia a mais fixe», explica Dave Grohl em “Nirvana: The Biography”, biografia do grupo escrita pelo jornalista e amigo Everett True. «Ao menos não eram velhos gordos com charutos na boca, a pensar no dinheiro que fazia o MC Hammer».
Pode dizer-se que Grohl, que nas décadas que se seguiram ao fim dos Nirvana deixou de ser “o baterista” para passar a ser “o gajo mais fixe do rock” e o líder de uns tais Foo Fighters, salvou de certa forma o grupo. Antes de Cobain se “apaixonar” pelo seu estilo, quando Grohl ainda tocava nos Scream, os Nirvana entregaram as baquetas aos seguintes nomes: Aaron Burckhard (1987-1988), Dale Crover (1988 e 1990), Dave Foster (1988) e Chad Channing (1988-1990). Na ânsia de impedir que o seu projeto se transformasse numa paródia de “This Is Spinal Tap”, e de dar às suas canções a sonoridade que tinha na sua cabeça, Cobain recrutou Grohl assim que soube do fim dos Scream. «O Kurt viu-o a tocar e disse: “é de um baterista assim que precisamos”», conta Craig Montgomery, engenheiro de som, em “Everybody Loves Our Town”.
Grohl, que na bateria é homem de bater, mais que de tocar, agiu desta forma como o complemento perfeito às canções que Kurt andou a compor durante boa parte do verão de 1990, quando os Nirvana fizeram uma pausa das estradas. «Lembro-me de os ver no Off Ramp e de parecerem uma banda completamente diferente», diz Jeff Ament, dos Pearl Jam, em “Grunge Is Dead”. «Até hoje penso que o Dave Grohl foi o motivo pelo qual eles foram tão bons, tanto como o Kurt. O Kurt era um poeta, e tinha um jeito incrível para compor melodias, mas o Dave deu-lhes aquela força toda». O supracitado verão foi a época mais prolífica de Cobain no que à composição diz respeito; tanto, que a sua mais famosa vem desse período. Nomeadamente, de agosto de 1990.
Sem luz é menos perigoso
A história engloba garrafas de whisky Canadian Club, um edifício que se fazia passar por uma clínica de aborto (era, na verdade, um local onde era dito a jovens adolescentes que iriam para o inferno caso abortassem) e Kathleen Hanna, mulher que ajudou a dar voz às riot grrrls. Certa noite, juntamente com Cobain, Hanna propôs-se contar a verdade às jovens sob a forma de um grafito: "Pessoal, esta clínica é falsa". Não avesso ao choque, o líder dos Nirvana acrescentou: "Deus é gay". Práxis feita, continuaram a embebedar-se noite fora até acabarem no apartamento de Cobain, onde Hanna pegou num marcador e, antes de adormecer embrutecida, escreveu numa das paredes da casa a frase que mudaria os anos 90. «Seis meses depois, o Kurt liga-me a perguntar se me lembro dessa noite», relata a artista em “Everybody Loves Our Town”. «Disse-me que tinha escrito uma cena bastante fixe na parede dele, que ele queria usar num verso de uma canção. Desliguei e pensei: “como raio é que ele vai usar O Kurt cheira a Teen Spirit num verso?”».
Juntas, as palavras teen spirit, ou “espírito adolescente”, remetem para uma ideia de rebelião ou revolução – a mesma ideia que Cobain teve ao lê-las durante aqueles seis meses. O que ele não sabia é que Hanna não estava a ser particularmente poética ou política, nessa noite: estava, isso sim, a troçar dele e do facto de o seu corpo cheirar a “Teen Spirit”, marca de desodorizante usada à altura pela sua namorada, Tobi Vail, também das Bikini Kill. A história importa? Claro, mas a poesia importa muito mais – e se hoje há quem entoe a letra de 'Smells Like Teen Spirit' a plenos pulmões, não será com um par de axilas perfumadas em mente.
A frase teve tanto impacto em Kurt que, semanas antes de começar a gravar “Nevermind”, decidiu compor um tema em torno dela. «Estava a tentar compor o expoente máximo de uma canção pop», explicou à “Rolling Stone” em 1994. «Basicamente, tentei plagiar os Pixies. Admito. Recorremos ao sentido que eles têm de dinâmicas, de passarem de algo suave e sossegado para algo pesado e barulhento». Ao mostrar 'Smells Like Teen Spirit' aos colegas, a canção tinha pouco mais que o riff principal, que Cobain descreveu como “cliché”, comparando-o ao trabalho dos Boston; quando o baixista Krist Novoselic o apelidou de “ridículo”, Cobain obrigou-os a tocá-lo durante hora e meia.
(Em 1992, já grandes, os Nirvana reconheceram as semelhanças – não confundir com “plágio” – entre 'Smells Like Teen Spirit' e 'More Than a Feeling', dos Boston, durante um concerto no festival de Reading, de forma bem-humorada.)
Dessa hora e meia, o salto para cinco dos minutos mais importantes da história do rock n' roll foi relativamente rápido. A 17 de abril de 1991, os Nirvana deram um concerto no OK Hotel, em Seattle, juntamente com os Fitz of Depression e as Bikini Kill, onde apresentaram 'Smells Like Teen Spirit' pela primeira vez ao mundo. «Eu estava no soundcheck com a Susie [Tennant, da Geffen], e o Kurt quis ensaiar uma canção nova. Tocaram-na do início ao fim, e ficámos a olhar uns para os outros, a pensar: “Que foi ISTO?”», conta Carrie Montgomery, irmã de Craig, em “Nirvana: The Biography”. Não foi a única a ficar de boca aberta, nessa noite. Jonathan Poneman, da Sub Pop, sentiu o mesmo frémito. «Lembro-me de pensar, quando a começaram a tocar, que era uma ótima canção. Quando chegou ao coro, foi como se o tempo tivesse parado durante um segundo. Toda a gente a pensar que tinha sido um dos melhores que ouviu em toda a vida», narra. «A reação foi instantânea. O público ficou maluco».
Uma palavra suja
'Smells Like Teen Spirit' acabaria a ser gravada em estúdio, em maio, juntamente com as demais canções de “Nevermind”. Algumas das composições eram recentes, mas outras provinham de uma sessão anterior, de 1990, gravada quando Chad Channing fazia ainda parte da banda. A produção estava a cargo de Butch Vig, que os Nirvana escolheram em 1990 por sugestão de Bruce Pavitt, e o qual mantiveram mesmo depois de assinarem por uma major. «A primeira coisa que eles tocaram, no primeiro dia de ensaios do “Nevermind”, foi a 'Smells Like Teen Spirit'», recorda o produtor em “Everybody Loves Our Town”. “Caí de boca. Era enormíssima, ruidosa. Pus-me a andar de um lado para o outro, de tão fixe que era. Meti-os a tocá-la umas três ou quatro vezes».
“Nevermind”, que nos seus primórdios começou por se chamar “Sheep” [“ovelha”], com direito a marketing imaginário por parte de Cobain («Porque tu queres não ser; porque toda a gente é»), demorou apenas um par de semanas a ser gravado – nada mal para um disco que viria a mudar o panorama musical que forma tão indelével. Conforme conta Charles R. Cross na sua biografia de Kurt Cobain, “Mais Pesado Do Que O Céu”, «o maior problema das sessões foi a procrastinação de Kurt, que ainda não se tinha decidido quanto às letras da maioria dos temas».
“Stay Away”, por exemplo, ainda tinha como título “Pay to Play”, em referência à prática imoral de alguns donos de salas de espetáculos, que exigiam de bandas novas o pagamento de um determinado valor para que estas pudessem lá tocar. Fora isso, os Nirvana mostraram-se altamente profissionais, trabalhando entre oito a dez horas por sia. «Não ouve grandes discussões», lembra Butch Vig em “Nirvana: The Biography”, «mas eu sabia quando estava a abusar. Por vezes, [Kurt] pousava a guitarra e afastava-se do microfone, e eu sabia que não iria conseguir mais nada dele [nesse dia]».
A capa de “Nevermind” foi pensada nessa mesma altura. Na sua génese está um documentário sobre partos na água, que Cobain viu então. Num dos seus cadernos, o vocalista e guitarrista apontou uma ideia: um bebé a perseguir uma nota de dólar, presa a um anzol. O fotógrafo Kirk Weddle foi contratado pela Geffen para a concretizar, e o seu trabalho resultou numa das imagens mais icónicas dos anos 90 – que, à altura e tal como agora, causou polémica pelo facto de o pénis do bebé, Spencer Elden, estar bastante visível na fotografia. Temendo as críticas, a Geffen procurou censurar a imagem, mas Cobain protestou, dizendo-lhes que só o aceitaria se a editora colasse um autocolante sobre Elden com a mensagem «se se sentem ofendidos com isto, devem ser pedófilos no armário».
O álbum foi remisturado em agosto, por sugestão de Gary Gersh, A&R da Geffen; a editora não tinha ficado agradada com o trabalho de Vig, e queria que alguém polisse as canções. Andy Wallace, que havia trabalhado em “Seasons In The Abyss”, dos Slayer, foi a primeira escolha de Cobain, forçado pelos seus “patrões” a alterar o curso sonoro de “Nevermind”. «Na altura, Kurt concordou com essa diretiva, embora mais tarde afirmasse que isso fez o disco soar “adocicado como a merda”», escreve Charles R. Cross. De facto, os membros dos Nirvana não se sentiram confortáveis com o resultado final, longe daquilo que tinham em mente. Para Grohl, a bateria passou a soar «demasiado digital», ao passo que Krist só queria despachar o disco; até Chad Channing entrou na discussão, dizendo em “Nirvana: The Biography” que “Nevermind” «não é um disco grunge». «É a porra de um disco rock. É o que acontece quando chegas às grandes editoras. Querem que tudo soe impecável e límpido, perfeitinho. E isso chateia, porque retira alma à música».
Traz os teus amigos
Apesar de terem assinado contrato com uma grande editora, os Nirvana ainda se viam como parte integrante do underground norte-americano, mesmo que esse underground já os visse com outros olhos. Como Calvin Johnson, da K Records, que em 1991 organizou um festival para bandas independentes – o International Pop Underground Convention, em Olympia –, deixando de fora os Nirvana, quando poucos meses antes estes teriam sido a atração principal. Por seu turno, a Geffen não depositava no trio quaisquer esperanças de sucesso planetário; o seu objetivo era o de vender tantas cópias de “Nevermind” quantas os Sonic Youth haviam conseguido com “Goo”, ou seja, perto de 250 mil.
Não estranha, portanto, que a Geffen não tenha apostado por aí além na promoção de “Nevermind”. Ou que não o tenha feito antes de 'Smells Like Teen Spirit' chegar aos subúrbios brancos, com a ajuda de um vídeo realizado por Samuel Bayer, e da omnipresente MTV. O cenário, de um ginásio de liceu – onde Cobain, e tantos jovens como ele, foram infelizes – invadido pela anarquia adolescente, ressoou por entre os membros da Geração X. «Eu queria fazer o melhor vídeo de todos os tempos, e eles nunca tinham gravado um vídeo para uma grande editora», conta o realizador em “Everybody Loves Our Town”. «Gravámos das dez da manhã às onze da noite. Os [extras] foram recrutados de um concerto dos Nirvana na Sunset Strip, e estavam a provocar a banda. Era eu contra eles, e perdi. O Kurt odiou-me no final... Não estava contente com a edição. Fiquei contente quando tudo terminou».
No espaço de semanas, 'Smells Like Teen Spirit' ganhou alta rotação na MTV, e o furacão Nirvana começou a tomar forma, ao mesmo tempo que cópias promocionais de “Nevermind” iam sendo passadas de mão em mão. «Tínhamos cassetes promocionais do “Nevermind” e do “Badmotorfinger”, dos Soundgarden, na redação», lembra Grant Alden, da revista “The Rocket”. «O álbum dos Soundgarden era bom, mas havia algo de especial no disco dos Nirvana. As pessoas entravam na redação e perguntavam se podiam fazer uma cópia». Tal levou a que, na véspera do lançamento do disco, a 24 de setembro, os Nirvana tivessem à sua espera «uma leal base de fãs», como escreve Charles R. Cross.
Ainda sem imaginar a fama que os aguardava, os Nirvana partiram em digressão pela Europa, na companhia dos Sonic Youth, imortalizando-a no filme-documentário “1991: The Year Punk Broke”. «Eles queriam, genuinamente, ser grandes», explica o produtor Don Fleming em “I Found My Friends”, história oral dos Nirvana compilada por Nick Soulsby. «Essa era a parte divertida de os ver em concerto, à altura. Eram uma banda que se divertia a tocar uns com os outros, que desfrutava das amizades que ia fazendo. Acho que significou muito, para eles, ter os Sonic Youth como mentores e patrocinadores. Deu-lhes muita confiança, que não teriam tido de outra forma».
A 13 de setembro, a Geffen organizou uma festa de lançamento de “Nevermind”, em Seattle, de onde os Nirvana acabaram expulsos após iniciar uma guerra de comida (motivados, claro, pelo muito álcool). Foi, provavelmente, o seu último grande momento punk em público; dois dias depois, o grupo chocaria de frente com o seu próprio sucesso, durante uma sessão de autógrafos na Beehive, uma loja de discos local. A editora esperava cerca de 50 fãs; nesse dia, vislumbraram mais de 200 adolescentes à espera na fila, às duas da tarde, por um evento que começava às sete. Os Nirvana acabariam por dar um concerto de 45 minutos, com a Beehive a abarrotar.
«Kurt ficou perplexo com a proporção de tudo aquilo», lê-se em “Mais Pesado Do Que O Céu”. «Observando a multidão, viu cerca de metade do círculo musical de Seattle e dezenas de amigos seus. Irritou-o particularmente ver duas ex-namoradas – Tobi e Tracy [Marander] – a dançar ao som das canções. Até essas pessoas íntimas faziam agora parte de uma plateia que ele se sentia pressionado para satisfazer». Tal retrato pode soar romanceado, mas o argumento principal mantém-se: nem Kurt Cobain nem os demais Nirvana estavam preparados para o sucesso, e o que se lhe seguiu prova-o.
Estúpidos e contagiosos
Para Krist Novoselic, esse concerto na Beehive foi o momento em que os Nirvana deixaram de ser a mesma banda. «O Kurt passou a resguardar-se», diz em “Nirvana: The Biography”. Logo depois, 'Smells Like Teen Spirit' atinge a posição número 27 nas tabelas de vendas da Billboard, e as rádios, que se recusaram inicialmente a tocá-la por não saberem onde enquadrar a canção (É punk? É rock? É alternativo? E que raio está ele para ali a dizer?), viram-se inundadas por pedidos de jovens ouvintes para que o fizessem. A 24 de setembro, “Nevermind” chega às lojas, com um número irrisório de cópias produzidas – 46.251 –, que esgotam num ápice, para surpresa geral de todos os envolvidos: Geffen, Nirvana, colegas de profissão. Só os fãs acreditavam no poderio do grupo. «“Nevermind” teria ido mais além, se a Geffen estivesse preparada», afirma Charles R. Cross.
Não só não se preparou ao nível do lançamento físico, como não se preparou no que à sua apresentação ao vivo dizia respeito. Ainda em setembro, os Nirvana voltaram à estrada para a digressão em torno de “Nevermind”, marcada em pequenos clubes e salas de espetáculos ao invés dos estádios que os Nirvana começavam a merecer. «A banda estava orgulhosa do disco, e o disco era incrível, mas ninguém sabia o que iria provocar», diz Craig Montgomery em “Grunge Is Dead”. O grupo viu-se apanhado no meio de um turbilhão que não entendia, e isso levou a momentos desagradáveis, como aquele ocorrido em Dallas, onde Cobain agrediu um segurança durante um concerto. Ver gente à porta das salas, sem conseguir entrar porque os bilhetes se encontravam esgotados, também o frustrou. Só na Europa, onde as salas eram maiores, os Nirvana encontraram alguma paz.
«Ficámos todos espantados com a rapidez com que o “Nevermind” se tornou num sucesso», admite Danny Goldberg em “Nirvana: The Biography”. «Pensávamos que tínhamos em mãos um disco espetacular, que ia ser grande dentro do mundo do rock alternativo – grande como os Pixies, ou como os Jane's Addiction». De facto, não existia até então nenhum caso como o dos Nirvana, de alguém que do mundo alternativo salta imediatamente para o do mainstream e da pop. E isso começou, também, a valer-lhes aquela acusação que ninguém do primeiro meio gosta de ouvir: vendidos!. Existe um relato dessa altura de um encontro entre Cobain e dois jovens, que o acusaram de ter «matado o punk». Sem resposta à mão, o músico limitou-se a ficar deprimido.
Com “Nevermind” a trepar as tabelas – em dezembro, estava na 9ª posição – os media mainstream começam a voltar-se para Seattle, numa tentativa de explicar o fenómeno (o que se admite) ou de sugá-lo (o que se aceita menos). Depressa surge outra palavra, hype, que mais tarde até deu título a um documentário sobre a cena de Seattle. «A imprensa não escrevia artigos sobre Seattle da mesma forma que o fazia sobre Atlanta, ou Minneapolis», afirma Gillian G. Gaar, da “The Rocket”. «Deixou de ser apenas sobre a música. Era sobre um estilo de vida, onde toda a gente bebe café e veste flanela. Foi de loucos, e isso deixou algumas pessoas horrorizadas».
Em “Our Band Could Be Your Life”, Michael Azerrad vai mais longe, escrevendo que o sucesso de “Nevermind” traduziu o momento em que a geração baby boomer deixou de ter domínio absoluto sobre a cultura. «O que há de divertido é que o disco era um compêndio da música que a indústria vinha ignorando ao longo dos últimos dez anos», diz, citando-o como uma mescla das sonoridades de nomes como os Black Flag, Hüsker Dü, Dinosaur Jr., Pixies ou Melvins, produzido de forma a agradar às massas. Corey Rusk, dono da editora independente Touch and Go, afirma no mesmo livro que “Nevermind” «mudou tudo». «Esse disco dá início ao interesse, no mínimo superficial, da América mainstream à música independente», explica.
Superficial, porque no fundo o que essa América queria era uma fatia do bolo. 'Smells Like Teen Spirit' e “Nevermind” davam lucro, e se os Nirvana o conseguiram, porque não os seus pares ou os seus sósias? «Antes, toda a gente ficava feliz por tocar, não estava a tentar ser famosa ou a querer ser uma estrela rock», conta Duane Bodenheimer, dos Derelicts, em “I Found My Friends”. «Depois dos Nirvana tudo mudou. Parecia que havia bandas que estavam [em Seattle] só para obter um contrato discográfico». E não é como se os Nirvana ou as demais bandas grunge não tivessem sido avisadas: antes deles, já outras subculturas haviam sido feridas pelo capital, como os hippies.
Recusa, recusa, recusa
A pressão chegou aos Nirvana sob a forma de alcoolismo, no caso de Krist Novoselic, que passou a beber três garrafas de vinho por noite, e de heroína, no que a Kurt Cobain diz respeito – ainda que o seu vício se alimentasse, também, dos problemas de estômago de que sofria, e que só se apaziguavam, segundo o próprio, com uma injeção dessa droga. Mesmo Grohl, cara nova apanhada no meio dos holofotes da fama, não escondia sentir alguma claustrofobia. O sucesso que Cobain tanto desejava tinha-lhe chegado envenenado, e o músico passou a distanciar-se daquilo que o rodeava. «Transformámo-nos em idiotas porque desprezávamos o sucesso», disse a Michael Azerrad. «Embebedámo-nos mais vezes e destruímos mais instrumentos que o normal. Decidimos ser um bando de imbecis abusivos. Queríamos tornar as vidas das pessoas miseráveis».
Esse sentimento de desprezo, por parte de Cobain, ia de encontro às expetativas da Geração X da qual se tornara, sem o querer, porta-voz. 'Smells Like Teen Spirit' era o hino de uma geração que não queria um hino; fazia portanto sentido que o seu maior ícone rock também não quisesse ser um ícone rock. «Quando estás sob os olhares do grande público, não tens como escolher não ser violado vezes sem conta», afirmou em entrevista à revista “Flipside”. «Vão sugar-te todo o sangue, até te sentires exausto».
Mas talvez o maior problema de Cobain não tenha sido a fama, e sim o ter-se tornado numa mercadoria, vendida e exportada. «Cobain sabia que era apenas mais uma peça do espetáculo», afirma Mark Fisher em “Capitalist Realism”. «Sabia que nada funciona melhor na MTV que um protesto contra a MTV, que todos os seus movimentos eram um cliché previamente ensaiado, que percebê-lo era em si mesmo um cliché». Por outras palavras, sabia que aquilo que era vendido como rebelião não passava de uma moda tão passageira como qualquer outra, de um rebuçado entregue às massas para que não reclamem muito.
“Nevermind” pode, dessa forma, ser visto de duas formas: como o momento em que o underground chegou ao mainstream, e como o momento em que o mainstream devorou o underground. O sucesso dos Nirvana significou, para muitas bandas independentes, uma maior dificuldade em arranjar concertos, já que tiveram de passar a competir com grupos igualmente pequenos, mas que recebiam apoios das grandes editoras. Gina Arnold pode ter gritado vitória, em janeiro de 1992, quando o álbum chegou por fim ao cobiçado primeiro lugar. Mas, como escreve Nick Soulsby em “I Found My Friends”, «para a maior parte das bandas não existiu revolução; o mainstream não pegou no punk, pegou numa versão que não precisava de um aviso parental».
Antes de uma digressão pela Austrália e Japão, marcada por discórdias entre os elementos do grupo e problemas com a droga – e pela crescente divisão do mundo em duas facções, uma com Kurt Cobain e Courtney Love e a outra com todos os outros –, os Nirvana apresentaram-se no programa de televisão “Saturday Night Live”, momento em que, se dúvidas existissem, a sua entrada no mainstream estava consumada. «Os managers de Kurt rezavam em privado para que o vício dele não os envergonhasse ou fizesse descarrilar o seu progressivo sucesso financeiro», escreve Charles R. Cross.
A sua participação foi tida como um sucesso, e nem 'Smells Like Teen Spirit' faltou à festa. Era engano; Cross relata que, nessa mesma noite, Cobain sofreu uma sobredose de heroína, e Steve Manning, ex-funcionário da Sub Pop, narra em “Grunge Is Dead” o sentimento ambíguo vivido por muitos aquando dessa presença dos Nirvana na televisão: «Achei que era a coisa mais fixe que já tinha visto, mas também estava um pouco triste, porque aquela coisa que tinha sido só tua tinha acabado. De repente, os teus pais sabiam quem eram os Nirvana. Antes disso, os Nirvana eram aquela coisa em que os teus pais não te queriam ver envolvido». Daí para a frente, para o bem e para o mal, nada mais seria o mesmo. O rock “alternativo” tinha chegado para ficar. O problema era filosófico: será que “Nevermind”, os Nirvana e o grunge eram verdadeiramente “alternativa”, se tinham uma grande indústria a trabalhar pelo seu sucesso? Nem Kurt Cobain, que tragicamente pôs termo à vida no auge da sua fama, soube responder. Caberá quiçá aos fãs – aos milhões que ainda hoje se sentem inspirados por “Nevermind” – decidir se esta foi de facto uma revolução ou só um desejo fugaz.
Mas talvez a resposta esteja naquele riff.
Ao longo de 2021, o SAPO24 publica uma série de artigos focados no grunge, fenómeno e género musical que atingiu o seu apogeu há precisamente trinta anos: “1991: E Tudo o Grunge Mudou”. Acompanhe-nos nesta viagem.
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