A galáxia pop é por vezes estrada para verdadeiros cometas, que vindos não se sabe de onde povoam os céus com o seu brilho incandescente, deixando um rasto de magia à sua passagem. Os exemplos são imensos e o mais recente é Rosalía, nascida na Catalunha há 25 anos, que com “El Mal Querer”, álbum de 2018, se transformou num nome fundamental dentro das mais recentes tendências musicais. Há coisas inescapáveis, e o seu nome é uma delas.
O caso não é para menos. Criada em seio flamenco, Rosalía começou por gerar algum burburinho aquando da edição de “Los Ángeles”, disco de 2017 no qual trabalhou canções tradicionais do género. Faltava-lhe só a internacionalização, a qual conseguiu com o supracitado “El Mal Querer”. A raiz flamenco continua lá mas encontra, agora, outras expressões: R&B, hip-hop, eletrónica, o que de moderno e popular existe. Partindo de uma linguagem de base, construiu todo um novo sistema, um novo método; pensou mais além, num novo século, quando as regras da pop exigem o imediatismo.
“El Mal Querer” pode não ser imediato. Precisa de umas quantas escutas, até que o percebamos na íntegra. De certa forma, Rosalía é em muito semelhante ao “nosso” Conan Osiris, que parte do fado e encontra toda uma série de expressões idiossincráticas, vivas, e que também não foi (e em certos meios continua a não ser) entendido à primeira. A espanhola logrou-o, até porque também conhece as pessoas certas – como James Blake, com quem colaborou recentemente em 'Barefoot in the Park', canção que hoje foi incluída no alinhamento do seu concerto.
Musicalmente, Rosalía não mostrou quaisquer falhas. A voz estava no sítio certo, a batida era certeira, as palmas que a acompanhavam adicionavam uma ternura bonita àquele flamenco do século XXII, do qual é para já princesa. Porém, falta-lhe algo para ser rainha, não só do flamenco como da pop no geral: falta-lhe um espetáculo cénico que lhe faça juz, algo que seja trabalhado com afinco e que reúna ao mesmo tempo efusividade e graciosidade, algo que não seja apenas um grupo de dançarinas vestidas de branco, acompanhando a música. O que lhe faltou em cenário sobrou em canções como 'Bagdad', que vai buscar a melodia à clássica 'Cry Me a River', de Justin Timberlake, 'Con Altura', tema gravado com J Balvin, e 'Malamente', com a qual fechou um concerto onde a única prova que deu foi a de que precisa – e irá, certamente – crescer como a grande estrela pop que parece destinada a tornar-se.
Talvez pudesse aprender algo com Erykah Badu, tirando os naturais tiques de diva pop, como um atraso de 35 minutos ou o facto de não permitir a captação de imagens do seu concerto. A autora de “Baduizm” (1997), um dos mais importantes álbuns do R&B dos anos 90, apresentou-se como uma verdadeira feiticeira africana, começando por agradecer ao público a sua paciência e encantando com temas como 'Out My Mind, Just In Time', onde a música soul e o jazz se encontram com os ritmos do hip-hop para criar uma sonoridade perfeita para um final de noite.
Ainda assim, não deverá existir uma professora melhor que Neneh Cherry, a maior das mulheres que este sábado se apresentaram no NOS Primavera Sound. A cantora sueca não aparenta ter cedido um milímetro ao peso da idade (55 provectos anos), dançando em palco como um dínamo e navegando por entre o hip-hop, a soul e o dub jamaicano, numa enorme mescla negra e plena de groove. O concerto quase esteve em risco, a julgar pelas suas palavras (andou de avião em avião e até perdeu uma mala, contou), mas acabou por ser um dos melhores da noite, com o desvario quase techno de 'Deep Vein Thrombosis' e a clássica '7 Seconds', que gravou com o senegalês Youssou N'Dour, a revelarem-se gigantes.
O NOS Primavera Sound pode continuar a ser “o festival do indie rock” para muitos – e é por isso que houve tantas vozes a maldizer a presença de J Balvin –, mas esses terão ficado em casa ou noutras zonas do recinto durante a atuação dos históricos Guided By Voices. No palco Seat, foram poucas centenas aqueles que decidiram ver de perto a mestria de Robert Pollard e seus comparsas, que prometeram despejar 36 canções em 90 minutos (não foi possível contá-las a todas para o confirmar). Se a música apela à nonchalance típica de quem já foi um jovem “alternativo”, a dada altura torna-se mais interessante tentar perceber como é que os Guided By Voices e Pollard, que já não é nenhum jovem, respiram perante tamanha avalanche. Foi a sua estreia em Portugal, e foi tudo o que precisávamos.
Outros históricos, os Shellac, decidiram fazer uma surpresa aos festivaleiros e atuaram na zona de restauração presente no recinto, naquela que foi a segunda atuação em três dias da banda residente do festival. Tocando pouco depois da hora em que as portas se abriram ao público, os norte-americanos voltaram a puxar pelo ruído e pelo rock em estado minimal, com guitarra, baixo e bateria em perfeita sintonia. Houve ainda espaço para algumas conversas com os fãs e para pedidos vindos da assistência (sendo que 'Prayer To God' foi um deles, mas foi rejeitado). Até Alan Sparhawk, voz e guitarra dos Low, e que chegou àquela hora ao Parque da Cidade, ficou embevecido a ver o concerto.
Os Shellac acabariam por abrir o apetite para os Viagra Boys, um dos nomes mais interessantes do panorama rock atual (já com algum culto a girar à sua volta), que despejaram um pós-punk sujo e completo com saxofone perante plateia escassa. Sebastian Murphy, vocalista literalmente tatuado da cabeça aos pés, foi rebolando pelo palco e tragando uma garrafa de vodka enquanto gritava palavras relacionadas com desporto (essa canção em particular chama-se 'Sports'), numa fina ironia que serviu para criticar a masculinidade de quem só liga ao desporto (os Viagra Boys assumem-se feministas, sem rodeios), além de outros temas presentes no seu disco de estreia, "Street Worms". Disse ele que sentia "em Woodstock, em 1992". Não houve Woodstock esse ano, mas fica o registo. Jorge Ben Jor, pouco depois, trouxe o sol do Brasil ao Porto e descarregou clássicos atrás de clássicos, como 'Jorge da Capadócia' e 'A Minha Menina', perante um público claramente fiel e conhecedor das suas melodias; houve até quem empunhasse, orgulhosamente, um disco de vinil do músico.
O NOS Primavera Sound regressa em 2020 ao Parque da Cidade do Porto, entre os dias 11 e 13 de junho, e já há um nome oficialmente confirmado: o dos históricos Pavement, que aqui darão um de dois espetáculos que têm agendados para esse ano.
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