Vem um homem. O palco, vazio, não se revela na mistura de elementos que mostra. Poderá ser tanta coisa. E o homem ali vai, despachado, de mala na mão. Pousa a bagagem e tira a camisola, depois as calças. Despe as meias, retira as cuecas. Da mala, onde vai arrumando a roupa, retira uma espécie de fralda e uma coroa de espinhos; cada uma posta no respetivo lugar, abre os braços e crucifica-se no vazio, no cimo de uns sapatos de salto alto.
É só isto. Para ser, basta parecer, fingir. Naquele palco, o homem que se despe em frente de todos fá-lo para se vestir outro, para se transfigurar, despedir da personalidade terrena e encenar outro papel. Como ele farão mais desses seres sepulcros e de mente rançosa que se vestirão para serem, nos buracos do bordel, quem não são na vida.
No ensaio de imprensa, que aconteceu na semana passada, Nuno Cardoso (1970) fez questão de mostrar "as cenas em que se veem três clientes de um bordel". No palco estão montadas várias camadas, numa sucessão de grades e planos que dialogam com a atualidade.
A perversidade da carne vem a par da revolução que impõe um novo sistema, composto pelos clientes desse mesmo bordel — e até o novo palácio é o bordel, onde "só vão pessoas que querem exercer as suas taras como figuras de estado", explica Nuno Cardoso, que é também o diretor artístico do Teatro Nacional de São João (TNSJ).
Num jogo de dissimulação, "a gente nunca sabe nesta peça se isto é verdade ou a fingir", resume o encenador, que pega no texto escrito por Jean Genet em 1956 (e encenado por nomes como Piscator, Blin, Strehler ou Brook).
"Daí a interpretação — e mesmo a maquilhagem e os figurinos", acrescenta, "optarem por uma espécie de Expressionismo grotesco, para não se perceber bem se é a fingir, se é uma brincadeira de crianças depravadas, se é verdade, se é o que quer que seja."
No ano em que o edifício sede do São João está a comemorar o centenário, a peça de Genet encaixa na trilogia que inclui "A morte de Danton" e "Castro", ambas já apresentadas em 2020.
"Esta peça articula-se bastante com 'A Morte de Danton' [de Georg Büchner]”, afirma Nuno Cardoso. "Isto é uma reflexão sobre a forma como o sistema imaginado na 'Morte de Danton' cai sobre si mesmo, sob o peso das máscaras que transporta".
A escolha de "O Balcão" acontece porque "a peça é sobre o fingimento, sobre um momento em que as máscaras, o fingir que é bispo já chega para ser bispo — e num conjunto de realidades que estão presentes no nosso quotidiano reforçam muito essa sensação: desde esta coisa dos 'factos alternativos', das realidades alternativas que sustentam discursos populistas, do desinvestimento no que é factual, como a ciência, por exemplo, levam a que mentiras sejam usadas de uma forma descarada para conseguir o protagonismo, o poder e os votos".
"O caso dos Estados Unidos é o mais gritante, mas por aqui temos um palhacito do Chega que está a enganar a angústia das pessoas e dos votos que colhe; temos um discurso de pessoas que são máscaras, que são clientes de bordel — e que um bocadinho por toda a Europa, por todo o mundo, vêm com este discurso do homem forte e dizem enormidades — falsas — e de alguma forma estão a minar (e nós sem reagirmos) o nosso bem comum", denuncia Nuno Cardoso, em conversa com os jornalistas.
"Não imaginam que Bolsonaro poderia ser um cliente deste bordel?", questiona o encenador. "Ou se, por exemplo, Donald Trump não foi a um destes bordéis na Rússia?", continua."Isso preocupa-nos muito e foi o que nos levou a escolher este texto no fim deste percurso, passando pela 'Morte de Danton', pela fratura que é a revolução, pela 'Castro', uma reflexão sobre o que é a vontade, o amor, o poder, um resgate da palavra e do português, mas também uma visão sobre a nossa identidade para chegarmos a esta realidade caótica, apimentada pelas redes sociais e pela velocidade frenética da desinformação em que vivemos."
"E não basta só fingir para sermos políticos: basta fingir que somos boas pessoas para sermos boas pessoas — não há esforço, simplesmente compra-se", lamenta o encenador. "Foi isso que nos levou a escolher isto".
Entretanto, "a infeliz calamidade que nos assaltou a meio do percurso" obrigou a repensar (e a reler) tudo. A covid-19 trouxe-nos "à situação em que estamos agora e só sublinhou este tipo de discurso, este tipo de urgência, porque na angústia em que vivemos, acossados a tentar ser resilientes e a dar a volta por cima, há muita gente que se sente maltratada, isolada, e que, portanto, pode cair no discurso destes vigaristas sem escrúpulos que pegam nisto como oportunidade e que minam o nosso estado de direito", acusa.
"Em Portugal acho que já acordámos um bocadinho a tempo, coisa que não aconteceu em muitos outros países", afirma, porém, Nuno Cardoso, que, no manual de leitura desta peça lamenta os colegas que "sucumbiram ao mal-estar e deram em neo-liberais" depois do encontro com a literatura vermelha na faculdade. "Felizmente, safei-me."
Recorrendo ao elenco "quase residente" do TNSJ, Nuno Cardoso encena o grotesco e usa-o para colocar no palco os discursos que correm desenfreados nas ruas. O cenário, de F. Ribeiro, com desenho de luz de Filipe Pinheiro, "é uma espécie de sobe e desce, de jogo de xadrez, de elevações e contraponto, fechado, preso ali", no fundo do palco, ilustrando a metáfora: "quem assim é, quem transporta estes preconceitos, quem transporta este ódio está preso em si mesmo”.
Afonso Santos, Joana Carvalho, João Melo, Maria Leite, Mário Santos e Rodrigo Santos foram “apresentados” no início deste ano enquanto o grupo de atores que iria dar vida ao elenco “quase” residente do Teatro São João. Assinalando a sua estreia em março com “Castro”, a produção própria que marcou o arranque das comemorações do Centenário do edifício-sede da Instituição, a companhia tem vindo a participar em diferentes atividades como workshops, ações com o público e iniciativas online. Desta feita, em “O Balcão” juntam-se ainda os atores Ana Brandão, António Parra, Margarida Carvalho e Sérgio Sá Cunha.
Os homens sujos que sujam as mulheres
Genet coloca a cena num bordel. Numa casa onde os homens usam as mulheres para se fingirem o que não são, onde arrancam o prazer próprio do corpo alheio. "Esse tipo de violência contra a mulher é, também, uma causa e um sintoma de toda esta podridão — e ali isso está evidenciado", conta Nuno Cardoso.
Um homem quer ser general e usa uma prostituta como cavalo. Outro quer ser bispo e faz do bordel igreja para os sermões entoados de calças caídas. Outro ainda quer ser juiz e faz da berraria sentença. Estes homens (cuja virilidade vem minada pelos saltos altos e pelas meias de vidro, ainda associadas ao sexo feminino).
Porém, no xadrez do alterne, não são só eles quem move as peças. "Quem tem o poder, estranhamente, são elas, apesar de se fingirem de vítimas", revela o encenador. "Eles têm medo do que elas podem fazer; eles são umas pessoas bacocas."
"Não me parece que na altura do Genet a questão de género tivesse sido premente — ainda não vivíamos numa sociedade que tivesse evoluído o suficiente para isso —, mas ele é uma figura muito específica, muito fraturante. O Genet escreve do lado do mal: em todas as cenas ele diz 'isto é no mal e no mal não se pratica o mal'", conta o encenador. Em todas as peças do dramaturgo francês há "essa espécie de morbidez, ele suscita os pecados todos para falar santamente do sítio mais pecaminoso possível", afirma Nuno Cardoso, que com Ricardo Braun é responsável pela dramaturgia, a partir da tradução de Regina Guimarães.
O meta-teatro e a meta-atualidade
Assim posto, fingir e encenar parecem o mesmo pedido. A quem entra numa sala de teatro (ou de cinema) é pedida uma confiança e uma crença: estes atores são estas personagens. Mas a vida pública não merece a mesma fiabilidade: ninguém devia à urna de voto selecionar caricaturas, desenhos grotescos do homem perfeito, mas os atores, os corpos por baixo das máscaras.
Genet escrevia com esse olhar sobre o próprio teatro, essa meta-teatralidade, como quem desenha um desenho com um desenho, quem diz, dizendo, o que é dizer. E Nuno Cardoso transporta esse ideário para o palco do São João, jogando o teatro como xadrez.
A culpa do espetáculo grotesco pode ser culpa da pandemia — "estou há tanto tempo em confinamento que se calhar passa um bocadinho por isso" —, mas desempenha o seu próprio papel narrativo, ainda que Nuno Cardoso acautele: "estamos a trabalhar em contrarrelógio, numa situação muito difícil que nos levou a parar algumas vezes, a reformular".
"A encenação é pesada e exatamente na cor oposta à 'Castro' — A 'Castro' é toda em branco, esta é toda em preto". Nessa "Castro" (estreada online quando ainda a doença era novidade), Nuno Cardoso foi buscar o português do século XVII ao original de António Ferreira (1528-1569) e pô-lo a ser dito numa casa arranjada com móveis do Ikea — nunca deixará de ser desconcertante ouvir Afonso IV falar de roupão numa cama Trysil.
"Uma pessoa é sensível aos tempos em que vive, às vezes até de forma inconsciente." E o próprio Jean Genet deixou isso sublinhado na peça. "Isto é tudo um ajuste de contas com as pessoas que naquela altura estavam à frente dos destinos da República Francesa e que naquele momento estavam a ocultar, face a um discurso positivo, nacionalista, a caminho da União Europeia, o colaboracionismo de Vichy, como se isso não tivesse existido", explica Nuno Cardoso.
"Aqui, não. Agora é um bocadinho o discurso anti-solidário, o discurso contra as minorias, o discurso contra os imigrantes, o discurso contra os ciganos, o discurso contra o Estado em si mesmo, o discurso que está pejado de mentiras, está pejado de oportunismo e de desfaçatez — vivemos num momento em que talvez o crime não tenha sido tão hediondo como foi a Segunda Guerra Mundial, mas em que os comportamentos são bastante mais grotescos e bacocos e isso suscita-me repulsa — e se calhar essa repulsa está bastante patente na encenação", que sublinha o obscurantismo, a escuridão mental, a podridão dos homens.
Com "O Balcão", o jogo é feito de espelhos. Certamente, os retratados não estarão nas cadeiras do teatro a reconhecer-se na sujidade em palco — e, se estiverem, nem é certo de que deem conta de que são eles quem se satisfaz no corpo alheio, não se podendo eles próprios ver no reflexo. Mas vendo os outros, o fingimento desaba. O bispo vai nu, o vigarista vai despido, os Venturas, os Bolsonaros e os Trumps vão reduzidos ao que são: máscaras.
"O Balcão", de Jean Genet, encenado por Nuno Cardoso, estreou esta terça-feira no Teatro Nacional de São João, no Porto, onde fica em cena até sábado, 21 de novembro. O crítico e dramaturgo Jorge Louraço Figueira vai conduzir a conversa pós-espetáculo, agendada para sexta-feira, 20 de novembro. A récita do dia seguinte irá contar com tradução simultânea em Língua Gestual Portuguesa. O preço dos bilhetes varia entre os 7,50 e os 16 euros.
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