Hello?
Is there anybody in there?
Mas não estava. O mundo parecia, aos olhos de Roger Waters, um vazio imenso e inóspito para onde fora atirado em nome do estrelato, onde em cada esquina uma sanguessuga se dispunha a deixá-lo apenas ossos, onde a verdade havia sido substituída por uma década de luzes e de trips psicadélicas, de histórias sobre loucura e morte, de saudades de amizades passadas, de governos maquiavélicos. O mundo, para Roger Waters, deixara de ser um conforto. Pior ainda: o mundo era-lhe agora desconhecido.
O culpado, o muro. Não um muro físico, mas um muro psicológico, mental, que o escondia numa tentativa de o fazer sobreviver, mesmo que essa perspetiva fosse, a cada dia, menos gloriosa. Waters, e os Pink Floyd, tinham chegado às posições cimeiras a que todas as bandas almejam; mas o resultado, como num pacto faustiano, não veio sem os seus sacrifícios. A perda de Syd Barrett em 1968 fora a primeira. As dívidas excessivas vieram a seguir. O isolamento dos membros do grupo, que progressivamente o deixaram de ser na verdadeira aceção de “grupo”, teimavam em rasgar a pele e os corações. E Waters, que tomou as rédeas dos Pink Floyd na era pós-Barrett, mostrava-se cada vez menos disposto a abrir-se ao mundo, a abrir mão da sua criatividade para a juntar às dos outros.
É certo que este isolamento nos deu obras ainda hoje canónicas dentro do rock: “Dark Side of the Moon” (1973), “Wish You Were Here” (1975) e “Animals” (1977) são peças fundamentais para perceber o quão revolucionários foram os Pink Floyd, e Roger Waters, dentro da história do género. Mas também nos deu uma outra, dolorosa, por se assemelhar tanto ao diário que o baixista poderia ter mantido ao longo dessa década de 70, sob a forma de uma alegoria: “The Wall”.
A história começa com o muro e o muro começou a ser construído muito antes dos Pink Floyd. Em 1944, com apenas cinco meses de idade, Waters perderia o pai na II Grande Guerra, durante a chamada Operação Shingle, na Itália, onde mais de 43 mil soldados Aliados perderam a vida. O trauma cresceria durante a infância e seria figura omnipresente ao longo de quase toda a sua vida. Um trauma que depressa se transformaria num sentimento de traição. Eric Fletcher Waters, o pai, tinha-se declarado objetor de consciência no período da Guerra, mudando as suas posições pacifistas mais tarde e juntando-se ao exército britânico. A traição sentida está precisamente nisso: no facto de Eric ter abandonado os seus ideais, apenas para, em última análise, morrer.
Não foi a única traição. No final dos anos 70, os Pink Floyd estavam no topo do mundo – nem a explosão punk os conseguiu tirar do pedestal – mas o sucesso, como comprovado vezes sem conta, é uma faca de dois gumes. Mais discos e mais concertos esgotados significavam mais pessoas, mas não necessariamente uma compreensão da mensagem (filosófica, política) que os Pink Floyd e Waters tentavam fazer passar. Os britânicos tinham uma audiência, mas esta era surda. E o ponto de ebulição foi atingido em 1977, durante um concerto no Estádio Olímpico de Montreal, parte da digressão “In the Flesh”, na qual os Pink Floyd tocaram pela primeira vez em estádios.
«Odiei, porque [os concertos] se tinham transformado num evento social, e não numa relação normal e controlada entre músicos e o público. As filas da frente gritavam, abanavam, não prestavam de facto atenção ao que ouviam. Quem estava mais atrás, não conseguia ver nada...»
A alienação sentida entre Waters e público, derivada desta mesma ideia – que parece soar tão verdadeira ainda hoje... – levou o músico a fazer algo que até então seria impensável: cuspir num dos seus próprios fãs, uma espécie de equivalente musical do famoso pontapé de Eric Cantona num adepto do Crystal Palace. E, ao contrário do que pensavam os punks de 1977, sempre dispostos a escarrar para o palco, a saliva não era de todo um elogio. Waters terminava a construção do seu muro, a antítese da ideia de humanidade: ela não existe se nos isolarmos dos humanos. Mas havia que deitá-lo abaixo, voltar a subir à tona de água para respirar.
O primeiro passo, de forma algo paradoxal, foi o de reconstruir esse muro, musical e literariamente. “The Wall” é sobretudo a história de Roger Waters e de como ele foi sofrendo até não aguentar mais, ao longo da sua carreira. História essa que é personificada por Pink, artista rock que vê o pai morrer na Guerra, que sofre bullying por parte dos seus professores primários, que se torna numa estrela amante de todo o tipo de deboches e que se isola do mundo em agonia misantropa, imaginando-se fascista e genocida, até um julgamento criado na sua própria cabeça o levar a descobrir que (ainda) há verde na Terra.
Já nos Pink Floyd, havia o vermelho: em 1978, as finanças do grupo estavam de tal forma sumidas que era necessário compor imediatamente um disco. Culpa do Norton Warburg Group, empresa de gestão financeira a quem os britânicos haviam confiado o seu dinheiro e que o perdeu em diversos investimentos de risco. Não fosse por “The Wall” e os Pink Floyd poderiam muito bem decretado falência e terminado logo ali, há 40 anos. Mas compô-lo poderia ser uma tarefa complicada sem alguém que lhes mostrasse o caminho. E esse alguém foi o produtor Bob Ezrin, que havia trabalhado com nomes como Alice Cooper ou Lou Reed e que ajudou a banda, e Waters, a encontrarem-se.
O resultado é uma das obras mais densas da carreira dos Pink Floyd, e o disco a que commumente associamos a expressão “ópera rock” (mesmo que “Tommy”, dos Who, o preceda em dez anos). Uma hora e vinte minutos de magia e soberba musical, agrupando vários estilos distintos: rock espacial ('In the Flesh?'), pós-rock antes de o termo ser cunhado ('Another Brick in the Wall, Part 1'), disco ('Another Brick in the Wall, Part 2'), abordagens folk ('Mother'), ópera propriamente dita ('The Trial') e, claro, o lamento elétrico de 'Comfortably Numn', onde os solos de guitarra de David Gilmour tomam a dianteira e elevam todo “The Wall” ao estatuto de culto.
Para além do som, a imagem – não só a que era criada em cada ouvinte com recurso aos poemas de Waters, mas também a que, em 1982, chegou aos cinemas pela mão de Alan Parker e Gerald Scarfe, com Bob Geldof no papel principal. “The Wall”, o filme, foi três anos após o disco um enorme sucesso a nível da crítica, e quiçá o “culpado” de ainda hoje falarmos da música com tanto respeito e carinho. A fusão perfeita entre todos os modos de criação. Uma obra de arte total.
À altura, nem foi visto dessa forma: muitos críticos insurgiram-se contra o maximalismo e o pretensiosismo da obra (convenhamos que, no final dos anos 70, o punk olhava dessa forma para tudo o que não fosse feito a partir de três acordes), que só começou a ganhar um estatuto canónico nas décadas seguintes ao seu lançamento. Mas o que a crítica não via, via-o o público, que o levou ao número um das tabelas de vendas durante várias semanas. Ao álbum, e à canção que com o passar do tempo granjeou um estatuto ainda maior que o do álbum: 'Another Brick in the Wall, Part 2', que fora do seu contexto passou a ser interpretada por milhões de gargantas por todo o mundo como canção de protesto. We don't need no thoughts control...
Para além de todo o existencialismo presente na obra, e se calhar é essa a sua maior virtude, está o facto de também transmitir uma mensagem de esperança aliada a um conselho precioso: quanto mais nos isolamos do mundo, quantos mais muros construímos, mais abrimos espaço ao ódio quando deveríamos fazê-lo com o amor. O disco termina e começa com uma frase cortada a meio – Não foi por aqui que viemos? – atestando à natureza cíclica dos muros, um loop imenso de depressão e apatia. Mas essas podem ser vencidas, e os muros podem ser derrubados, e as lutas podem ser constantes e eternas para nos lembrar de que estamos vivos. A grande lição de um disco como “The Wall”, relembrando sempre que um muro físico nos tolda o senso comum (seja em Berlim, seja em Israel, seja nos Estados Unidos), é a de que a fragilidade e o medo existem para serem vencidos. 40 anos depois, não olvidemos essa mensagem.
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