Num dia de fevereiro de 2019, o Manuel entrou no meu quarto e disse:

— Mamã, há um vídeo na Internet de uma pessoa a insultar-te. Posso vê-lo contigo?

O meu filho tinha acabado de completar sete anos. Eu deixara-o criar um canal no YouTube para gravar vídeos enquanto jogasse videojogos. Era privado, ninguém podia aceder. Mas para entrar era preciso escrever o meu nome — e a primeira coisa que aparecia no Google quando ele digitava «Patrícia Campos Mello» era o tal vídeo, com uma fotografia minha ao lado de uma outra do então candidato a deputado federal Alexandre Frota, e a legenda: «VAGABUNDA SEM VERGONHA.»

Vimos juntos o filme de oito minutos. «Desclassificada», «sem-vergonha», «mentirosa», «petista» [1] — esses eram alguns dos termos que Frota usava para me descrever, mostrando fotografias minhas. Tentei explicar.

— Fiz umas reportagens no ano passado, e umas pessoas gostaram, outras não. O fulano do vídeo não gostou, por isso está a insultar-me.

O Manuel não sossegou.

— Mas mãe, ele está a chamar-te «sem-vergonha». Isso é muito grave.

Pensei, pensei, e a única coisa que me veio à cabeça foi uma justificação muito pueril.

— Filho, esse fulano fazia filmes nu. Eu nunca fiz filmes nua. Quem achas que é sem-vergonha?

Cheguei a achar a história divertida, até me ocorrer que qualquer um que procurasse o meu nome no Google ia deparar-se, imediatamente, com aquele vídeo.

Patrícia Campos Mello
Patrícia Campos Mello discursa em 2019 na gala do Comité para a Proteção de Jornalistas, em Nova Iorque, tendo vencido o Prémio Internacional de Liberdade de Imprensa. créditos: Dia Dipasupil / GETTY IMAGES NORTH AMERICA / Getty Images via AFP

Desde 18 de outubro de 2018 que vivo num mundo bizarro. Naquela quinta-feira, publiquei na Folha de S.Paulo, jornal onde trabalho há nove anos, uma reportagem sobre o envio em massa de mensagens por WhatsApp contra Fernando Haddad, na altura candidato do PT à Presidência.

Faltavam dez dias para a segunda volta das eleições, marcadas para 28 de outubro. O artigo trazia à baila a existência de empresários que planeavam contratar agências de marketing para enviar milhões de mensagens e influenciar os resultados.

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O esquema feria a legislação eleitoral brasileira em diversos aspetos. Conforme a lei n.o 13 488/2017, é proibido contratar pessoas ou mecanismos para enviar pela Internet mensagens ou comentários que ofendam a honra ou prejudiquem a imagem de um candidato ou partido. O mais grave, no entanto, era que poderia configurar saco azul indireto.

Como o Supremo Tribunal Federal (STF) entendera em 2015 que só pessoas físicas poderiam contribuir para campanhas, as doações de empresas foram vetadas desde então. E todas precisam de ser declaradas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e constar da prestação de contas dos candidatos.

A notícia caiu como uma bomba e foi usada politicamente pelos dois lados. Com base no artigo, o PT e outros adversários de Jair Bolsonaro pressionaram pela impugnação da sua candidatura. Já os apoiantes do ex-capitão do Exército — que afirmara que as eleições tinham sido fraudulentas e que ele tinha vencido já na primeira volta —, espalharam que o artigo era falso e que a Folha apoiava o candidato do PT.

Mas a coisa não parou por aqui.

A reportagem foi publicada no site do jornal às duas horas da manhã do dia 18 de outubro. Pouco depois, comecei a sofrer um processo de desconstrução nas redes sociais.

Encontraram uma entrevista que eu tinha dado a estudantes da PUC em 2013. Nela, alguém me perguntava sobre a minha posição política. E eu, erro supremo, respondia: «Eu sou uma pessoa de esquerda, sempre votei no PT, mas isso não interfere na minha cobertura jornalística, todos os jornalistas votam em alguém, mas a nossa obrigação é separar isso e não imprimir viés à cobertura.»

Os jornalistas que cobrem política devem obedecer a uma regra de ouro não escrita: jamais revelar o voto. É óbvio que todos nós votamos em alguém, e isso não faz com que assumamos determinada posição política em tudo o que escrevemos. Mas escancarar o voto pode alterar a perceção que se tem sobre o que publicamos e deixa-nos sujeitos justamente a este tipo de ataques — de que seguimos esta ou aquela orientação.

Naquele longínquo ano de 2013 eu não escrevia sobre política nacional. Mesmo assim, não deveria ter feito a declaração, é claro. O erro estava feito.

O vídeo foi editado, nem é preciso dizê-lo, e o excerto de cinco segundos com a frase «Eu sou uma pessoa de esquerda, sempre votei no PT» tornou-se viral. Em poucos minutos eu tinha passado a «putinha do PT», «vagabunda comunista», «jornalistinha comunista» e daí para baixo. Houve uma proliferação de memes com o meu rosto e as legendas «MENTIROSA», «JORNALISTA PETISTA», etc.

Bots, robôs que postam mensagens automatizadas no Twitter e no Facebook, rapidamente sequestraram a narrativa e alavancaram os hashtags #CadêAsProvas e #MarqueteirosDoJair aos trending topics, os temas mais falados nas redes. Começou a circular a fotografia de uma loira ao lado de Fernando Haddad em campanha, com a legenda: «Gente, preste atenção, não é fake news — isto que está acontecendo é sério e realidade o que esta máfia organizada estão [sic] fazendo para continuar no poder... compartilhe, compartilhe, compartilhe — esta é a jornalista Patrícia Campos Mello, que fez matéria contra Bolsonaro na Folha.»

Não era eu. A mulher da fotografia não tinha nenhuma semelhança comigo.

Recebi milhares de mensagens ofensivas no Facebook, no Twitter e no Instagram. Fechei todas as minhas redes sociais. Numa delas, o Facebook, um fulano afirmava: «Se você quer a segurança do seu filho, saia do país. Não é uma ameaça, é um aviso.» O Manuel tinha seis anos.

Piratearam o meu telemóvel. Textos a favor de Bolsonaro foram enviados a partir da minha conta no WhatsApp. Várias mensagens desapareceram (por sorte eu tinha backup de tudo o que importava para o artigo). Em emails, os eleitores de Bolsonaro passaram a ser convocados para aparecer em eventos em que eu participaria. As mensagens traziam data, horário e morada e diziam: «A jornalista petista vai. Vão lá.»

Tive de cancelar tudo durante um mês.

Uma vizinha, que vivia no prédio ao lado do meu, no mesmo complexo de edifícios, abria a janela e gritava, quando eu estava na portaria: «Chupa, petista! Aêêê Bolsonaro!»

Ligaram para o meu telemóvel: «Sua vagabunda petista mentirosa. Vou a tua casa partir-te a cara.»

O jornal resolveu arranjar-me um guarda-costas — na verdade, era mais um motorista, para eu não andar sozinha,
sujeita a levar com uma garrafa na cabeça atirada por algum maluco.

Cobri o conflito na Líbia em Sirte, na linha da frente contra o Estado Islâmico. Fiz coberturas da guerra na Síria, no Iraque e no Afeganistão. Nunca tive guarda-costas. Estava em São Paulo, e precisava de segurança.

Ao mesmo tempo, recebi flores e mensagens de apoio de desconhecidos. «Você é um orgulho para nós, continue na luta», escreveu um grupo de mulheres. Circulavam posts que diziam #SomosTodasPatriciaCamposMello, muitas pessoas mostraram solidariedade.

Em poucos dias, deixei de ser conhecida só no meu meio, por reportagens internacionais de guerra, refugiados e ébola, e passei a ser uma pessoa odiada e insultada. Por outro lado, vi-me elevada a símbolo da luta pela liberdade de expressão e pelos direitos das mulheres.

E a única coisa que eu tinha feito era um artigo. Aquela dinâmica transformou-se num padrão — sempre que eu publicava alguma reportagem incómoda, destapava-se a panela do ódio.

Jair Bolsonaro foi eleito em 28 de outubro de 2018.

No dia 14 de dezembro daquele ano, apanhei um avião para cobrir uma conferência em Doha. Quando desembarquei no Catar, 16 horas depois, descobri que tinha sido tanto condenada como premiada. Fora vítima de duas fake news.

A primeira «notícia» dizia que eu tinha sido condenada a pagar uma indemnização de 200 mil reais ao presidente Jair Bolsonaro, depois de o ministro do STF Luís Roberto Barroso ter concluído que a minha reportagem sobre os envios em massa pelo WhatsApp nas eleições não se teria baseado em provas. A «informação» trazia uma fotografia minha ao lado de outra de Bolsonaro, e fora postada num perfil supostamente oficial do STF — era do STF «oficialanal». É óbvio que ninguém prestou atenção nem percebeu o trocadilho infame. Comecei a ser bombardeada com mensagens e ofensas pelo Twitter e pelo Facebook. O irmão de uma amiga, eleitor do ex-capitão, ligou à irmã, exultante,mal contendo a Schadenfreude, o prazer com a minha desgraça: «E então, de onde é que ela vai tirar esses 200 mil reais, hein?»

Na outra notícia falsa, eu tinha sido eleita a «Brasileira do Ano» da Folha de S.Paulo, por ser «Guardiã da Verdade». A «notícia» fora divulgada num dos muitos perfis falsos paródicos da colunista Mônica Bergamo no Twitter. Tratava-se de uma alfinetada, porque naquela mesma semana a revista Time tinha escolhido alguns jornalistas como «Pessoas do Ano», dizendo que eram guardiões da verdade num mundo onde as fake news e a manipulação de narrativas imperavam. Além dos profissionais que receberam o título, a reportagem citava de passagem outros que andavam a ser ameaçados por escreverem artigos críticos dos seus governos, e eu era um deles.

A Máquina do Ódio
créditos: Quetzal Editores

Era nitidamente um absurdo o jornal nomear personalidade do ano uma pessoa da casa, sem contar que não existe tal honraria. Mas estava lá o meu rosto, o logótipo da Folha, enfim, parecia real. E muitas pessoas bem-intencionadas e bem informadas enviaram tweets, dando munição a bloggers bolsonaristas, que caíram matando em cima da «imprensa tradicional».

Um sujeito que passa a vida no Twitter a elogiar o governo e a ofender metade dos jornalistas e políticos reenviou o tweet da fake news da condecoração dizendo: «O autocentrismo da imprensa brasileira é tamanho que, na ânsia de bajular uma colega de ideologia, Miriam Leitão acredita numa postagem fake (“Monica Bengamo”), não vendo nada de estranho no título de “Guardiã da Verdade” conferido à pretensa agraciada. Mais um vexame!» Não passou muito tempo e o presidente eleito, que naquela época já tinha mais de um milhão de seguidores, replicou o post.

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Em abril o É Desta Que Leio Isto vai misturar duas artes: a literatura e o cinema. Pedro Boucherie Mendes, escritor, cronista e Head of Digital Content e responsável pelos canais por cabo da SIC é o nosso convidado do encontro que se vai realizar no dia 22 de abril, pelas 21h. O livro em destaque será "O Talentoso Mr. Ripley", de Patricia Highsmith, que foi publicado em 1955 e adaptado para cinema em 1999, num filme que tinha Matt Damon no principal papel mas que contava ainda com nomes como Jude Law, Gwyneth Paltrow, Cate Blanchett ou Philip Seymour Hoffman.

As inscrições podem ser feitas através deste formulário. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as indicações para se juntar à conversa.

Resultado: quando entrei no saguão do aeroporto, o meu telemóvel piscava centenas de ofensas e cumprimentos no WhatsApp, no Twitter, no Facebook. E eu não tinha levantado um dedo.

Ou tinha? Coincidentemente, naquela semana, em parceria com o repórter Artur Rodrigues, eu escrevera duas reportagens sobre o papel dos media sociais nas eleições. Numa delas, mostrámos como CPF's [2] e chips de telemóvel eram falsificados para efetuar envios em massa de mensagens políticas por WhatsApp durante as eleições. Na outra, como, mesmo passada a segunda volta, continuavam muito ativos os bots e trolls, também chamados sockpuppets, perfis que são militantes, pagos ou não.

Lembrei-me da história de uma mulher que, prestes a embarcar para a África do Sul para visitar a família, enviou o tweet: «Going to Africa. Hope I don’t get AIDS. Just kidding. I’m white!» («Estou a ir para África. Espero não apanhar SIDA. Estou a brincar. Sou branca!») O voo durou 11 horas. Foi o tempo de a mensagem se tornar viral e virar trending topic. Começaram a pulular agressões: «Espero que sejas despedida e que apanhes SIDA.» Memes com a cara dela. E ela no voo, sem wi-fi. Pormenor: até àquele momento ela só tinha 170 seguidores no Twitter. Justine Sacco era chefe de relações públicas numa empresa de meios de comunicação, acreditem se quiserem. E foi despedida — também pelo Twitter.

Ao contrário da executiva, eu não tinha feito um comentário racista nas redes ou uma piada de mau gosto, nem exteriorizara opinião ou escrevera um texto inconveniente nas redes. Eu tinha escrito uma reportagem.

Ouvi várias fontes — muitas em off, de pessoas que não se queriam identificar, pois quem é que falaria em on sobre financiamento ilegal de campanhas em plena campanha? Mas tinha comigo trocas de mensagens e depoimentos. Saíram outras reportagens, minhas e de outros repórteres, com fotografias, áudios, declarações.

Mesmo depois de o WhatsApp admitir que durante as eleições de 2018 a plataforma servira, de maneira ilegal, para envios em massa, a vontade de enterrar a história prevaleceu no Tribunal Superior Eleitoral. O TSE não ouviu os jornalistas, os donos das agências nem o próprio WhatsApp no início da investigação.

Desde 2018 que se intensificaram os ataques contra a imprensa. Temos cada vez mais uma realidade paralela moldada pelas redes sociais. Com auxílio de bots e trolls, que insuflam vozes mais radicais das redes e contaminam o resto, é possível, num estalar de dedos, transformar uma reportagem em opinião paga pela esquerda, escrita por jornalistas «comunistas». E fazer da Folha de S.Paulo um «jornal financiado pelo PT». Logo a Folha, que revelou a existência do sítio de Atibaia de Lula, o mensalão, e causou a queda do então ministro Antonio Palocci por faturar milhões ilegalmente com uma consultoria.

Não somos os únicos. Nas Filipinas, na Índia ou nos Estados Unidos, políticos recorrem a exércitos de trolls e bots para construir narrativas que os favoreçam. É este o novo mundo em que vivemos: os factos são moldáveis.

Ainda assim, eu pensava que nunca mais iria viver algo tão avassalador como aquele primeiro linchamento virtual. Estava enganada. As coisas iam piorar, e muito.

[1] - Membro ou simpatizante do Partido Trabalhista. (N. do E.)
[2] - Sigla de «Cadastro de Pessoas Físicas». Documento de registo de cidadãos brasileiros ou estrangeiros legais que armazena informações do contribuinte no sistema da Receita Federal. (N. do E.)

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