Como a “Rainha do Fado”, a quem chamaram cantora do regime, se relacionou com a ditadura, financiou a resistência a
Salazar e sobreviveu às acusações do pós- revolução. "Amália, Ditadura e Revolução, a História Secreta", de Miguel Carvalho, revela documentos oficiais, designadamente um registo dos serviços centrais da PIDE com o pedido de bilhete de identidade de Amália Rodrigues, de 1957, e um relatório de 1939 que incluía o nome da fadista na denominada "Organização Comunista no Fado".
É ainda revelada uma carta do arquivo de Oliveira Salazar, “até hoje inédita”, que Amália Rodrigues lhe escreveu dias antes da inauguração da atual ponte 25 de Abril, em 1966, e na qual, escreve o jornalista Miguel Carvalho, a artista "se derrete de orgulho pátrio e elogios ao destinatário".
Cruzando depoimentos recolhidos para esta investigação, factos históricos, depoimentos de arquivo, recortes de imprensa e várias entrevistas de Amália Rodrigues, a investigação junta pontas soltas sobre as relações políticas e privadas da fadista
Com um olhar jornalístico, entre o regime e a resistência, cruzando as histórias de quem teve oportunidade e o privilégio de conviver com a fadista, Miguel Carvalho quis mostrar que Amália não perde o seu "lado divino" mesmo quando resistimos à tentação de "colocá-la acima da espécie humana". "Por muito que ela tenha tido uma voz dos deuses", salienta em conversa com o SAPO24.
O livro é publicado a cerca de um mês da passagem de cem anos sobre a data de nascimento de Amália Rodrigues.
INTRODUÇÃO
Como Amália me aconteceu
E La Nave Va (1983), desconcertante filme de Fellini cuja ação decorre a bordo de um luxuoso navio, é o relato de uma viagem destinada a dispersar as cinzas da “maior cantora de todos os tempos” à volta da ilha onde nasceu.
Durante a navegação, cada passageiro reclama a posse da verdade definitiva sobre a vida da extinta “voz dos deuses”.
Juram conhecê-la melhor do que todos os outros, alardeiam intimidade, detalham e retalham-lhe a existência e a carreira.
Uns desesperaram a tentar compreendê-la. Outros presumiram tê-la desvendado.
E, no entanto, “para além do mito da cantora”, havia nela, segundo uma personagem, uma menina muito sensível e sozinha. “Quantas definições, quantas palavras, quantas histórias escreveram sobre ti. Mas nunca disseram quem realmente eras.”
Quem foi realmente Amália Rodrigues?
A ideia de escrever sobre ela acompanhava-me desde a sua morte.
Amadureceu nesses dias de elogios fúnebres e pelos anos fora, à boleia da polifonia de testemunhos e umas quantas revelações, a fazer lembrar o ambiente vivido no navio de Fellini. “Todos temos Amália na voz”, cantara António Variações, com propriedade. E todos pareciam reivindicá-la.
Eu, que chegara ao canto daquela mulher aí pelos meus 14 anos, através do saxofone de Rão Kyao (Fado Bailado), senti-me, com o tempo, fascinado pela “estranha forma de vida” que se escondia atrás do palco, das luzes e dos holofotes, à margem dos enredos do voyeurismo e dos sentimentos de posse em torno da figura pública.
A Amália que me interessava era a da mulher e das circunstâncias políticas que viveu.
A história de como atravessara dois regimes e vencera invejas artísticas e preconceitos ideológicos até ao final da vida e para lá do século que foi o seu.
A ditadura namorou-a, exportou-a, e Amália, verdade seja dita, não se fez rogada. Mas ela guardava também os segredos das existências incertas e vacilantes. Por isso, soube iludir vigilâncias e amarras, acudindo a opositores e resistentes ao regime, financiando famílias de presos políticos e cantando versos de autores proibidos, resgatando-os do silêncio e da perseguição.
A democracia, sobretudo após a revolução de 25 de abril de 1974, não lhe foi meiga. “Eu simbolizava a noite e o Zeca Afonso o dia”, disse ela, amargurada, recordando esses tempos de libertação coletiva para um povo, mas de martírio para os seus dias, acusada de colaboração com a polícia política e vassalagens ao regime deposto.
Amália Rodrigues sobreviveu a silenciamentos, calúnias e ataques, e até mesmo à sua morte antecipada – e do próprio fado –, tantas vezes proclamada.
Embora pouco estudada pela academia, muito se escreveu sobre o percurso artístico da voz inalcançável de Portugal no Mundo, elogiada por nomes tão diversos como Jorge Luis Borges, Gonzalo Torrente Ballester, Nélida Piñon, Leonard Cohen, Édith Piaf ou Caetano Veloso. Sozinha, encarnava as vozes de todos os povos. Era, na visão poética de José Carlos de Vasconcelos, “uma fantástica criatura de música e palavras, que voava amarrada ao nosso chão e ao nosso destino”.
No meu caso, sempre me seduziu a figura de Amália Rodrigues para além da carreira artística e das molduras onde tantas vezes a encaixaram.
Mesmo não tendo ela uma biografia política – era, no princípio e no fim, uma artista superlativa –, creio que Amália “reclamava” há muito um olhar, neste caso jornalístico, sobre o seu percurso à luz do Estado Novo, da revolução e da construção democrática, até por todas as clandestinidades e histórias marginais esquecidas e ignoradas em função da construção do mito.
Amália Rodrigues transcende-nos.
Consciente das qualidades e atavismos do seu povo, ao qual pertencia “sem orgulho nem pena”, cantou-o nas suas introspeções, melancolias e pessimismos. Nele, apreciava a lucidez, mais dramática do que trágica, entre a “dúvida constante e um certo tipo de inquietação”. Selvagem como um cardo, paradoxal, misteriosa e contraditória, seguiu a intuição, “mãe de todas as inteligências”, sem se considerar indispensável. “Posso não prestar para nada, mas sou verdadeira”, dizia, certa do esquecimento que, afinal, nunca viria.
“Cada um de nós viu e amou nela, necessariamente, coisas diferentes e, confundindo a imagem com a realidade, discutimo-la muitas vezes com base nesses estereótipos redutores que continham, cada um deles, pedaços da verdade, mas nunca toda a verdade”, escreveu o musicólogo Rui Vieira Nery. Para Joaquim Sarmento, membro do PCP na clandestinidade e antigo deputado do PS, Amália não era de direita, nem de esquerda, mas “simultaneamente suserana e povo”. Por isso, na sua voz “se encerra o paraíso dos justos e inocentes e o cadafalso dos condenados, mescla de aristocratas, de rufiões, de burgueses, de operários que saltam os andaimes da sorte, o luar entornado das prostitutas e de todos os marginais”, mas também “o poder e a corte deste, o contrapoder e a sua ambição enrolada”.
Mais do que atribuir-lhe uma moral heroica, ética universal ou pertença a qualquer entidade coletiva – o que seria ridículo tendo em conta a sua personalidade –, esta investigação jornalística pretendeu, tanto quanto possível, iluminar as brumas do percurso sussurrado do “heterónimo feminino de Portugal”.
A definição cunhada pelo poeta David Mourão-Ferreira assenta no que nela existiu “de raça e de graça plebeias, definitivamente imunes a todos os vírus de vulgaridade” ou “de genuína cepa aristocrática, mas tão livre e tão forte que nem cabe na moldura das árvores”.
Amália Rodrigues é ainda hoje uma obra aberta, onde cabemos todos, sem divinizações. “Como todas as figuras tornadas mitológicas em vida”, a fadista era, no feliz retrato de Clara Ferreira Alves, “um ser imperfeito”, humano, “ao contrário do que nos querem fazer acreditar as sucessivas canonizações”. E várias vezes se cai ainda na tentação de colocá-la um patamar acima da espécie humana, incensando-a ou tornando-a intocável.
Luxo de uma ditadura, idolatrada por um povo tolhido nos seus sonhos, Amália foi, no pós-revolução, vítima da desinformação e de trincheiras assanhadas, típicas de tempos convulsos.
Por preconceito, inveja e oportunismo, tornou-se, durante os primeiros meses de liberdade, vítima de ataques, calúnias, mentiras e meias-verdades que hoje nos habituamos a ver difundidas noutras plataformas, de forma refinada. Ela podia ter-se defendido com argumentos de peso. Podia ter trazido a terreiro diversos nomes, circunstâncias e episódios para escudar-se de monstruosidades. Mas a tudo resistiu, certa da sua arte, da sua condição e da passagem do tempo que tudo repõe no seu lugar.
Não o fez em silêncio, é certo, mas nele adormeceu e preservou verdades, figuras e ocorrências que só a dignificam e se tornaram incómodas para outros.
Amália foi acusada de ser “a Princesa da PIDE”, de se ajoelhar à ditadura, e, como sabem aqueles que com ela lidaram de perto, nunca se libertou desse desgosto.
O facto de, em 2019, ter sido vetada a atribuição do seu nome a uma rua no Sul do Luxemburgo por causa das suas alegadas afinidades com a ditadura remete-nos para a importância de desvendar facetas segredadas, desconhecidas ou esquecidas sobre a cantora. O tema gerou controvérsia entre a comunidade portuguesa naquele país e é revelador do muito que falta contrastar sobre a figura de Amália Rodrigues, para lá dos consensos sobre a sua dimensão artística.
Humanizar Amália e dessacralizá-la, usando as ferramentas do jornalismo, as únicas que conheço, é a minha forma de tentar trazê-la para um lugar onde todos possamos rever-nos nela. Santificada, mitificada ou execrada, a figura de Amália já foi adaptada a todas as narrativas e “religiões”, consoante os casos, os interesses e as épocas. Realidade, imagem e devoção confundem-se, mas Amália representa, acima de tudo, uma categoria e cultura à parte, não moldável.
Um enorme caudal de entrevistas, fontes, documentos e geografias permitiu-me aproximar a lupa sobre esta mulher que foi “a voz do povo” e seguiu o seu coração independente e livre pensamento, sem receio de se negar ou contradizer. Em vez de a divinizarem, as suas atitudes e gestos clandestinos talvez revelem, isso sim, as costuras e a profunda humanidade do seu ser.
Muitos dos entrevistados e protagonistas deste livro nunca tinham falado sobre esta temática. A geração que, na maioria, não viu nem conheceu Amália Rodrigues para além da voz merece que lhe seja contada, sem preconceitos nem liturgias, as outras histórias desta mulher transcendente, minada por controvérsias e estereótipos. “O canto de Amália”, lembrou-nos, em tempos, Caetano Veloso, “mantinha Portugal vivo e pairava acima de Salazar e da Revolução dos Cravos.”
Recordemos, a propósito, e de uma vez por todas, as palavras do poeta David Mourão-Ferreira: “Amália teria sido inevitavelmente quem é fosse qual fosse a época em que vivesse, fosse qual fosse o regime ou a ideologia dominante sob que tivesse nascido e desabrochado.” Não teve bandeiras, nem assumiu compromissos políticos e é completamente descabido atribuir-lhe a afeição por uma ideologia. Não era esse o seu universo.
Tal não significa, como se comprovará nestas páginas, que fosse indiferente à condição do seu semelhante ou se distanciasse de certos e constantes apelos.
Continuo a acreditar que o jornalismo pode e deve contribuir para uma aproximação à verdade. Uma verdade, ao mesmo tempo, simples e complexa. E se algo se pode concluir acerca de Amália Rodrigues é que ela nunca correspondeu a outra entidade coletiva que não fosse o povo português.
Não há uma Amália a preto e branco, uma Amália de trincheira.
Amália não é pertença de nenhuma capelinha, de nenhum regime.
Amália não obedece a qualquer moldura onde a queiram meter.
Perceber isso, a sua relação íntima com o povo, é a maior homenagem que lhe podemos fazer.
Amália, ser imperfeito e controverso como a vida, dispensa canonizações. Monumento artístico e humano, reivindicada contra ou à boleia da sua vontade, não é, ainda assim, intocável. Por isso, olhar Amália Rodrigues para além da carreira artística, da sua música, do “boneco” e dos caixilhos onde a quiseram meter foi um dos propósitos desta investigação. Tendo sempre presente o que ela disse de si própria numa entrevista de 1976 – “Sempre aguentei as consequências de ser livre” –, saibamos também assumir as consequências de ouvi-la, conhecê-la e revelá-la no que nos legou de talento, poesia, rasgo, humanidade e superação.
Amália aconteceu-nos de forma diferenciada. Mas, queiramos ou não, habitamos o seu coração indomável, aquele fado, aquele poema e aquele momento, entre a maldição, o desencanto, a ternura ou a libertação. “Tenho qualquer coisa em mim de Portugal, que as pessoas sentem”, dizia. Nela estamos e estaremos todos. Mesmo aqueles que ainda não a descobriram por infelicidade, distração ou preconceito.
Devemo-nos, e ao futuro, uma Amália Rodrigues plural, onde todos possamos rever-nos, sem fanatismos, habitando o seu canto, versos e humanidade, do Abandono à Primavera, da Fria Claridade à Gaivota, com novas e velhas roupagens. Sem rasuras nem evangelizações, mas conscientes, ainda e sempre, do privilégio que foi tê-la e que é ouvi-la, ainda hoje, por dentro de nós.
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