Seja através de abordagens inovadoras ou defeitos de caráter que se tornam virtudes quando se trata de investigar crimes, são inúmeras as séries que apresentam os consultores enquanto estrelas nas investigações, frequentemente mais competentes do que os próprios polícias e detetives. O seu trabalho é obviamente romantizado, especialmente quando as personagens em causa são civis com profissões em nada relacionadas com a luta contra o crime, de escritores a padres ou jogadores de xadrez. O que os une a todos é a capacidade de análise.
Um dos mais recentes exemplos é o de Harley Carter – da série homónima, que estreia a 5 de setembro, às 22h30, no AXN –, uma personagem subversiva num universo que costuma encarar os consultores como indivíduos brilhantes mas atormentados. É que Carter, corporizado por Jerry O’Connell, não passa de um ator de televisão que interpreta um detetive, pensando que isso lhe dá competências para se equiparar à força policial que acompanha. Este cenário inverosímil e satírico expõe os exageros de como se abordam os consultores policiais neste tipo de formatos. No entanto, não custa compreender que existem civis com que as autoridades contam para resolver crimes. Mas será tal e qual o que vemos na TV?
Pedro (nome fictício), agente da Polícia Judiciária (PJ), confirma o recurso a figuras externas, já que este corpo de investigação, apesar de contar com muitas áreas de expertise, socorre-se de “técnicos próprios” em “casos muito especiais”. Estes podem ir desde peritos forenses para realizar autópsias específicas, esquemas financeiros baseados em sistemas complexos que requerem “técnicos de entidades como a SIBS” ou até “casos especiais de pintura renascentista ou arte sacra, onde às vezes há peças tão específicas que só alguns peritos é que sabem avaliar”. Relativamente a este último cenário, o agente recorda-se de um episódio em que ele e os colegas apreenderam uma peça desaparecida durante anos em que “julgávamos que era uma cópia, mas o técnico confirmou que era o original!”
No entanto, os moldes em que estas figuras civis cooperam nas investigações são muito distintas das que se vêm nas aventuras televisivas. Nas séries estamos acostumados a ver psicólogos, médicos ou técnicos forenses lado-a-lado com as autoridades, na fila da frente a envergar o colete à prova de balas no momento derradeiro da detenção de um suspeito. Pedro aponta tudo isso como sendo “ficção”, já que os consultores não participam assim tanto na investigação, muito menos vão para o terreno.
Às vezes é a PJ que recorre a peritos de determinadas áreas, noutros são civis que pretendem cooperar com as investigações. Em qualquer um dos casos, a colaboração nunca é espontânea. Qualquer regime de parceria, adianta Pedro, tem de ser sempre “inspecionado pelo Ministério Público” e “autorizado pelo juiz”, sendo que, quando são civis a querer participar, tal “é solicitado pelo MP e validado por um juiz, protege-se a identidade dessas pessoas, e está determinado pela lei de que forma é que as pessoas podem colaborar”.
Técnicos e não agentes
Esta realidade bem menos excitante do que as aventuras perfumadas em séries de entretenimento é corroborada por José (nome fictício). Psicólogo clínico e forense, é a sua segunda área de especialidade, “centrada na avaliação”, a que as autoridades costumam recorrer, pois dá esclarecimentos “sempre que há necessidade do tribunal na área da psicologia”. Esses pedidos são invocados “quando uma pessoa tem risco de perigosidade ou uma perturbação de personalidade”, explicando que no fundo se faz “a avaliação de uma pessoa, de um agressor ou de uma vítima para avaliar o dano psicológico”.
Apesar de ser costumeiro ver psicólogos e psiquiatras a participar em investigações retratadas em séries, José desaba alguns mitos, nomeadamente quanto ao papel que estes profissionais realmente desempenham. O psicólogo adverte para o facto de que os membros da sua classe não participam diretamente no trabalho policial, mas sim ajudam “enquanto elementos de prova pericial para os tribunais tomarem uma decisão”. Por outro lado, confirmando o que Pedro referiu no que toca à colaboração com as autoridades, José revela que esta não pode ser feita de forma informal ou espontânea, pois está determinado no Regime Jurídico das Perícias Médico-legais que “que todas perícias têm de ser solicitadas ao Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses”. Ou seja, o processo é centralizado e só acontece “após despacho judicial, ou seja, há uma entidade judicial que determina a perícia, não é a polícia que pede essa avaliação”.
Aquilo que José sente ser a maior diferença entre as competências de um psicólogo forense na ficção e na vida real é que “um psicólogo não é um investigador criminal nem inquire o arguido”, sendo essa uma “competência de um órgão de polícia criminal”. Ao invés, o psicólogo defende que o trabalho que lhe compete é o de “conduzir uma entrevista forense para recolher a informação para a perícia, não uma inquirição”. Tal como os técnicos forenses e de medicina legal – que, ao contrário do que as séries podem dar a entender, não são polícias – os psicólogos “gravitam em torno da investigação criminal, mas não a fazem”.
Não quer isso dizer que a ideia do psicólogo que acompanha investigações criminais ou que é mesmo polícia – presente em séries como “Mentes Criminosas”, “Lie To Me” ou “Cracker” – seja completamente fantasiada. Apesar de, na televisão, o trabalho do psicólogo ser “ficcionado em termos de celeridade e de objetividade, porque as coisas às vezes não são pretas nem brancas”, José recorda que em países como o Canadá ou os Estados Unidos da América, aplica-se uma área chamada “psicologia investigativa”. Esta baseia-se na “aplicação dos conhecimentos da psicologia à investigação criminal para delimitar suspeitos ou perfis, ou para, em função do perfil que temos à frente, perceber qual é a melhor estratégia de abordagem de entrevista”.
Em Portugal, contudo, “não há essa tradição”, o que se deve tanto à “ausência de recursos humanos” como ao “desconhecimento das potencialidades disponíveis”. Essas carências, aliás, já forçaram a PJ a pedir ajuda externa. Pedro aponta o caso do Estripador de Lisboa, o serial-killer que assassinou três mulheres na capital entre 1992 e 1993, e que obrigou a PJ a convidar “uma equipa de psicologia forense do FBI” apoiar a investigação, já que a organização policial não teria “experiência com os chamados serial-killers” e essa agência norte-americana “tem muitos anos a lidar” com este tipo de crime.
Uma realidade romantizada
Chegamos então à conclusão que o trabalho dos consultores policiais é altamente romantizado em relação às suas representações em séries ou filmes. Isso não surpreende, se tomarmos em conta que grande parte da perceção que temos da atuação da polícia resulta daquilo que consumimos através da cultura popular. A verdade é que os ditames do entretenimento obrigam a dispensar parte do realismo para tornar a história interessante. Como admitiu um comissário de polícia à BBC, falando sobre a forma como se retrata o trabalho policial em conteúdos de entretenimento, “se o episódio desta noite fosse uma hora a recolher um depoimento e depois duas horas de preparação dos ficheiros para o tribunal, suspeito que não tivesse muitos espetadores.”
E não há melhor exemplo do quão díspares são as representações quando Pedro nos diz que o seu tipo de detenção preferida é colocar-se “ao lado do alvo na rua e quando ele dá por si já tem três ou quatro inspetores ao lado e não pode fazer nada”. Uma abordagem bastante afastada do paradigma do tiroteio e da perseguição automobilística que, podendo acontecer é o “pior possível”, pois a “melhor ação é sempre a preventiva, porque não queremos correr o risco de alguém morrer enquanto estamos a fazer prova”, ou seja, no momento em que se tenta apanhar os criminosos no ato. Fazê-lo de forma arriscada “é ficção”.
No entanto, apesar de no fundo sabermos que o que vemos nas séries é um exagero e sermos capazes de compreender que uma pessoa dificilmente sai incólume de um carro que capotou cinco vezes, há cenários onde as linhas se esbatem. Casos onde isso tem sido notório vão desde a perceção de taxas de sucesso desmesuradas nas investigações da polícia até ao polémico “Efeito CSI”, já debatido e rebatido, que crê que os jurados têm expetativas irrealistas quanto à infalibilidade das provas de que necessitam para julgar um caso em tribunal. Pedro é perentório ao afirmar que “tudo é mais fácil na televisão” e que “é glorioso quando a investigação corre bem, mas não é glamoroso nem é agradável”. “Não temos bolas de cristal”, refere.
Não tem, contudo, mal nenhum ser fã de séries policiais (ou viciado, como é bem mais comum). É preciso é ter a noção de que grande parte do dia-a-dia da polícia envolve papelada e processos morosos, ou, como Pedro o apelida, “trabalho de sapa, que não é glamoroso mas que dá garantias.” A atividade real da polícia, necessária e vital à sociedade, dá “má televisão”, aborrecida e demasiado próxima da vida quotidiana. No fundo, é possível afirmar que o que muitas vezes o público procura quando vê séries ou filmes de ficção é um escape, diversão, ou até alguma satisfação moral em ver os maus da fita a serem derrotados pelos bons.
São esses os pilares de uma série como “Carter”, que abandona o lado soturno e sombrio do mundo do crime por um mais divertido. O cerne da narrativa apresenta Harley Carter, um ator que apesar do sucesso da sua série de detetives, sofre um esgotamento devido a estilo de vida intenso de Hollywood. Apesar de ainda ter duas séries para fazer no seu contrato, Carter abandona a Califórnia e retorna à sua pequena cidade costeira no estado de Ontário, no Canadá.
Ao chegar, inicia-se uma aventura que o emparelha com dois dos seus amigos de infância: uma agente da polícia e um trabalhador de uma bomba de serviço. Sendo um ator que fez de detetive perante uma comunidade crédula, Carter é feito consultor policial, usando esse estatuto para resolver crimes verdadeiros enquanto investiga o desaparecimento da sua mãe, 25 anos antes. Este é o cenário para uma série policial de cariz mais ligeiro, onde Carter perverte toda a lógica do consultor especialista, não sendo mais do que um ator otimista em fazer as suas falsas credenciais de polícia valerem no mundo real. Aqui não há pedidos judiciais, requerimentos ou papelada, apenas aventuras com observações espirituosas e casos insólitos. Consultores verdadeiros ou a brincar, o mundo sabe conviver bem com os dois.
Carter estreia dia 5 de setembro, às 22h30, no AXN.
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