Quando estou?

Na floresta, a meio da noite, a mulher perde-se no tempo.

Quando estou?

Sabe ainda como se chama, reconhece o hotel lá ao fundo, mas continua à deriva pelos anos. Vê as luzes rotativas de um carro militar, em 1975, a neve a cair na serra, décadas antes, e um cortejo fúnebre num dia de novembro.

Quando estou?

Uma neta senta-se no baloiço pendurado no ramo de um carvalho.

Quando estou?

O marido chega tarde a casa. Não, o marido pega-lhe ao colo depois do casamento.

Quando estou?

Ouve novamente o tiro de uma arma, a única coisa que une o passado, o presente e o futuro.

Por fim, sabe quando está.

Tinha três filhos e, na noite do disparo, perdeu um deles.

1970

Numa manhã de temporal e maus agoiros, Maria Luísa deixou a filha de três anos numa casa fechada à chave. Não era por acaso que os seus camaradas usavam o verbo mergulhar quando passavam à clandestinidade. Naquela vida, a imersão sem reservas implicava que o Partido tivesse precedência sobre qualquer relacionamento que pusesse em risco a lealdade dos funcionários. Nos últimos anos, Maria Luísa passara fome, sede, frio, sono, fadiga extrema, dormira ao relento, caminhara centenas de quilómetros, cortara todo o contacto com a família, abdicara da sua identidade ao ponto de quase esquecer quem era. Na última vez que estivera num consultório médico, na hora de preencher a ficha, não conseguira lembrar-se do seu nome de batismo, nem sequer do falso, que mudava sempre que trocavam de morada.

Começou a descer a rua. Uma cúpula de nuvens baixas oprimia as ruas estreitas de Évora, havia séculos garroteadas pelas muralhas. Maria Luísa concentrou-se nos obstáculos do percurso. Quanto mais sofresse e abdicasse pela causa, maior seria a premência de um triunfo do comunismo. Nas piores adversidades, reforçava-se a fé doutrinária. Seria um absurdo desistir após tudo o que já tinha sofrido. Havia que converter as perdas na certeza que originava os epitáfios dos mártires e os bordões dos guerrilheiros:

Liberdade ou morte
Derrota após derrota até à vitória final
Prefiro morrer de pé a viver de joelhos

Dobrou a primeira esquina, e uma bota resvalou nas pedras da calçada. Concentrou-se na dor da queda, nos dedos esfolados, no cotovelo a inchar. O vento e a chuva açoitavam-lhe a cara. A roupa pesava-lhe no corpo magro. Cada entrave era uma medalha futura. De novo em pé, cerrou maxilares e punhos, para atravessar a borrasca e executar o plano. Em cada rua que transpunha, a fisicalidade do desafio lembrava-lhe o mérito do propósito. Ela deixava a filha sozinha, sim, mas por causa do garoto mascarrado, só pele e esqueleto, que puxava um burro encosta acima, enquanto os filhos dos grandes proprietários esperavam, na cama quente, que as criadas lhes fizessem o pequeno-almoço. Ela deixava a filha sozinha, sim, mas por causa dos homens que todas as madruga- das, nas Portas do Raimundo, rogavam ser escolhidos para os campos, subindo para as camionetas com o servilismo grato de quem se mata a trabalhar para não morrer de fome. Ela deixava a filha sozinha, sim, mas por causa da Luta de Classes, do Materialismo Dialético, da Ditadura do Proletariado.

Pedro Mexia junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 19 de outubro, pelas 21h00.

Poeta e crítico literário, escolheu para a conversa no clube de leitura o livro "A Terra Devastada", de T. S. Eliot.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

Pedro Mexia, da poesia às traduções

Pedro Mexia nasceu em Lisboa, em 1972, e licenciou‑se em Direito pela Universidade Católica. Escreveu crítica literária e crónicas para os jornais Diário de Notícias e Público e também faz traduções; atualmente colabora com o semanário Expresso. Além disso, é um dos membros do "Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer" (SIC Notícias) e mantém, com Inês Meneses, o programa PBX. Foi subdiretor e diretor interino da Cinemateca.

T.S. Eliot e "A Terra Devastada"

A estreia de T. S. Eliot na poesia deu-se em 1915, na revista Poetry, de Chicago, onde saiu um dos seus mais famosos poemas, The Love Song of J. Alfred Prufrock. Este e outros poemas constituíram, em 1917, o seu primeiro livro

Em 1922 surgiu o poema The Waste Land — "A Terra Devastada", na tradução em português —, considerado um dos mais belos e mais importantes poemas do Modernismo.  O tema de The Waste Land é a decadência e fragmentação da cultura ocidental, concebida imaginativamente por analogia com o fim de um ciclo de fertilidade natural. O poema divide-se em cinco partes, que não obedecem a uma sequência lógica, e estende-se por 433 versos. A justaposição de símbolos, imagens, ritmos, citações e sequências temporais, contribuem para a dimensão épica do poema e reforçam a sua coerência artística.

Depois de quatro anos na clandestinidade, lendo panfletos, jornais e livros do Partido, Maria Luísa classificava tudo com o jargão da teoria. Decorara parágrafos das obras do secretário-geral, exilado em Paris, recitando-os enquanto fazia a lida da casa: «Toda a ação do Governo fascista tem sido intensificar a exploração da classe operária, para permitir à burguesia mais lucros e a mais rápida acumulação de capital. Para isso, o Governo põe todo o aparelho do Estado, todo o aparelho repressivo, as armas, as leis, os tribunais, ao serviço do grande capital.»

Naquela cidade do interior, a PIDE tinha substituído a Inquisição, mas preservara o costume das delações. Quando Maria Luísa para ali se mudara, o companheiro Alfredo oferecera-lhe o romance de um professor que ensinara no liceu local, e ela tinha sublinhado algumas frases:

Évora mortuária, encruzilhada de raças, ossuário dos séculos e dos sonhos dos homens.

e

Em Évora, não se podia ter mais do que a quarta classe, nem menos de trezentos porcos.

Ali, havia clubes exclusivos para homens, mansões com muros altos e senhoras que mal saíam de casa, pedintes nas portas das incontáveis igrejas, o contraste entre as bebedeiras desgraçadas dos pobres, caídos numa valeta, e o alcoolismo festivo dos herdeiros varões, como aqueles que abrandaram a carrinha ao lado de Maria Luísa, quando ela já cruzara as Portas de Aviz numa manhã de tempestade.

«Queres boleia?», perguntou-lhe o que ia no lugar do pendura. Levava a espingarda de caça entre as pernas. Tinha feições que, em criança, extasiavam as senhoras, mas cuja inocência fora desfigurada pelos copos e noitadas nas casas de putas em Espanha.

«Não, obrigada», disse ela, sem o olhar, apertando mais, sobre o peito, o xaile que lhe cobria a cabeça.

«Estás toda molhadinha», disse o que conduzia, mais velho e mais gordo, talvez o pai ou o tio do outro. Soltou o fumo do cigarro pelas narinas, rindo da própria piada. «Não sabes que é má edu- cação não olhar para as pessoas quando falam contigo?» Os perdigueiros, na caixa aberta da carrinha, romperam num escarcéu de latidos. O motorista aproximou mais o veículo de Maria Luísa. «Para a canzoada ficar neste estado, é porque a fêmea deve estar com o cio.»

Ela afastou-se para a berma, entrou pelo campo adentro, ainda ouviu: «Estás com falta de peso em cima, ó mal fodida do caralho, se fosse Natal, oferecia-te uma cartucheira de piças.» Maria Luísa não olhou para trás, o apagamento era crucial para a fachada da clandestinidade. Levava o cabelo preto sempre apanhado e coberto, a mulher modesta que tinha de passar despercebida. Vestia-se como uma dona de casa da província, de tal maneira calada e cabisbaixa, quando entrava na mercearia, que as calhandreiras da rua julgavam ver nela o trauma de um marido que lhe chegava a roupa ao pelo.

Caminhou pelo campo, a cada passo afundando-se mais, a lama a encher-lhe os canos das botas. A certa altura, ficou presa, os pés enterrados na viscosidade. Sentiu-se apanhada numa armadilha. Imaginou os homens na carrinha a atiçar os perdigueiros que a arrastariam com os dentes até aos donos. Seria devorada como uma perdiz, ou uma criada, ou uma amante por conta, no aparta- mento que eles tinham em Lisboa e a que chamavam picadeiro, porque ali cavalgavam as montarias extraconjugais.

Maria Luísa olhou para trás e, vendo apenas a neblina que tudo escondia, escutou o motor da carrinha a ganhar em distância o que perdia em ruído. Procurou desenterrar as botas alentejanas, masculinas, dissonantes do disfarce porque lhe endureciam a figura. Cortadas, cosidas e ensebadas pelas mãos de um sapateiro do Partido, Maria Luísa calçava-as como se envergasse a farda de um antepassado do Exército Vermelho. Alfredo, companheiro de vida e de clandestinidade, sabia como aquelas botas apaziguavam o conflito de Maria Luísa. Ela queria ser do povo, estar com os trabalhadores e com tudo o que brotava da terra e do labor físico. Não havia dúvida de que servia os interesses dos operários e dos camponeses, mas os seus gostos — do chá inglês aos filmes americanos — não lhe permitiam ser igual a eles.

Tentou resgatar as botas, caindo na lama uma e outra vez, vencida pela sucção do lamaçal que não lhas queria devolver. Amaldiçoou os donos daquelas terras ao abandono, sentiu-se espoliada, como as mulheres que trabalhavam à jorna ou as crianças que serviam como criadas. Voltou a puxar as botas, desta vez com raiva, já não a ideóloga de um mundo melhor, mas a castigadora daqueles que o espatifavam.

Inicialmente apoiante da corrente do Partido que não defendia a luta armada, esperando antes o levantamento das massas populares para derrubar o regime, Maria Luísa impacientava-se agora com a inconsequência da clandestinidade a distribuir cópias do Avante!, quando havia onze anos que a revolução se afirmara em Cuba. Fosse a família imperial russa, executada numa cave, ou o guardia civil que a ETA matara no País Basco, não havia movimento

de libertação que não eliminasse uns quantos inimigos. Se até na Bíblia, que ela bem conhecia do colégio de freiras, «destruíram tudo o que havia, matando à espada homens e mulheres, novos e velhos», porque não passar também no fio da espada os caçadores que a humilharam, os proprietários do terreno que lhe ficara com as botas, os ministros fascistas instalados no Terreiro do Paço?

Distraída a efabular vinganças, não se deu conta do colosso negro que despontava do nevoeiro. Primeiro, os cornos, depois, o promontório musculado do cachaço, meia tonelada de mitologia. O touro estacou a poucos metros de Maria Luísa. Ela sentiu o tropel do pavor no batimento cardíaco, a penugem eriçou-se nos braços, a boca secou e as pupilas arregalaram-se. Sem dar por Maria Luísa, o touro soltou um esguicho amarelo, ao mesmo tempo que largava uma bosta fumegante. Milhões de soldados tinham mor- rido a defender a mãe Rússia dos nazis, milhares de jovens com- batiam, naquele momento, o imperialismo nas selvas de África e da América Latina, mas Maria Luísa acabaria anónima e descalça, capitulando numa poça de mijo e merda de boi.

O bicho voltou a desaparecer no nevoeiro, mais interessado na erva do que em sabotar revoluções. Maria Luísa deixou as botas, para retomar a missão, e, ao ver ao longe o convento do Espinheiro — onde o rei Dom Sebastião fizera as suas preces antes de liderar a primeira grande catástrofe do império colonial —, começou a contar os paus da cerca de arame até encontrar aquele cuja base ela tinha rodeado com pedras na noite anterior: o sinal combinado, segundo os procedimentos do Partido, para anunciar a Alfredo que o regresso a casa era seguro.

Livro: "Revolução"

Autor: Hugo Gonçalves

Editora: Companhia das Letras

Data de Lançamento: 9 de outubro de 2023

Preço: € 19,95

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Naquela manhã, contudo, deixara de o ser. Maria Luísa recebera a visita de um homem que se apresentara com salamaleques de vizinho, tentando farejar o interior da casa. Fizera perguntas acerca do marido ausente, que ainda não vira e que estava curioso por conhecer. Em que trabalhava? Gostava de ciclismo? É que repa- rara numa bicicleta no quintal das traseiras. Quando voltava, afinal, o marido da senhora? Pois bem, se precisasse de ajuda, no que fosse, mudar uma bilha de gás, companhia nos serões solitários, ali o tinha, «um criado ao seu serviço».

Por causa desse homem suspeito, ela deixara a pequena Nádia sozinha em casa e estava encharcada pela chuva, com os pés nus e feridos, removendo as pedras que dispusera na véspera ao redor do pau, agora com o fim de avisar Alfredo de que não voltasse para casa.

No caminho de regresso, imaginou a filha levada pela PIDE, entregue num orfanato, revivendo o pânico de quando Nádia se perdera na praia e, em vez de aplicar na busca da criança a mesma frieza com que contrabandeava as maquetes das publicações do Partido, Maria Luísa tivera de implorar ajuda a outras mães para a encontrar.

Os filhos eram o ponto mais fraco dos militantes, e o Partido sugeria que fossem entregues à família ou enviados para uma escola na União Soviética. Maria Luísa, que sempre cumprira os procedimentos dos funcionários clandestinos com uma disciplina irrepreensível, tinha-se julgado capaz de conciliar a maternidade e a causa. Enganara-se. Alfredo bem a avisara: em algum momento, teria de optar entre os ideais e a filha. Se não o fizesse, alguém o faria por ela.

Entrando na casa de três divisões, Maria Luísa procurou Nádia sem a encontrar. Ofegante e sem foco, desabou na sala mínima. Dali tinha uma linha de visão direta para o único quarto. Reparou numa massa escura, debaixo da cama. Uma amálgama de roupas oscilava com uma cadência que, de tantas noites a dor- mirem juntas, ela reconhecia como a sua própria respiração. Nádia embrulhara-se num xaile da mãe, escondera-se entre as tábuas do chão e as ripas do estrado. A alegria de Maria Luísa, ao descobri-la, tinha um espinho cravado: filha de uma funcionária do Partido, Nádia estava condenada ao secretismo patológico, nunca brincaria na rua com as outras crianças, viveria em casas temporárias, com cortinas fechadas e medo das visitas.

Maria Luísa quis enfiar-se debaixo da cama com a filha, ficar ali aninhada. Mas a fuga era mais urgente do que um abraço. Deixou-a dormir e despejou a papelada do Partido no fogo da salamandra da cozinha. Em cima da bancada, jazia a loiça suja, os ovos, a farinha, o açúcar e a manteiga para os quais havia poupado tanto, espremendo o pequeno salário com o qual deveria governar a penúria do lar. O que horas antes fora um quadro de felicidade matinal, mãe e filha alinhando ingredientes e utensílios de cozinha, preparando-se para receber Alfredo com um bolo, era agora uma natureza-morta de quinta categoria.

No quarto, Maria Luísa pegou em alguma roupa e limpou as feridas dos pés com um pano molhado. Preparava-se para calçar umas meias de lã, quando bateram à porta. Do lado de fora, alguém disse:

«Bom dia, vizinha, sou a esposa do Carlos, que esteve aqui ainda há pouco. Vi o fumo a sair da chaminé e, olhe, já que tem o fogo ateado, pensei trazer-lhe umas castanhas para assar.»

Na cozinha, Maria Luísa ouviu o estalido do trinco e a porta a abrir, a voz da mulher invadindo a sala.

«Olá, pequenota, a tua mãe está?»

Maria Luísa saiu da cozinha e viu Nádia com a mão na maça- neta, sorrindo para a mulher. A voz amigável não coincidia com o cenho inquisitorial. De cabelo oleoso, a vizinha tinha o género de magreza que a sabedoria popular atribuía aos maus fígados. Uma mulher acerca de quem se contavam boatos sobre o esfaqueamento das bolas chutadas pelos miúdos para o seu quintal. Os olhos revelavam um desdém pela pobreza da casa: nenhum sofá ou fotografia, nenhum bibelô ou naperom. O nomadismo da clandestinidade tornava-se mais fácil com pouca carga. Em cima da mesa, estava apenas a caixa de madeira, almofadada por dentro e coberta por um vidro, que abafava o martelar da máquina de escrever em que Maria Luísa redigia os seus artigos, uma invenção atribuída ao secretário-geral do Partido, após alguns correligionários terem sido denunciados pelo barulho que faziam a datilografar noite fora.

Num piscar ressentido de olhos, a curiosidade da mulher-cadáver transferiu-se do estranho objeto para a beleza e juventude de Maria Luísa. O tom alterou-se: «Então, és tu que te andas a meter debaixo do meu homem?» Empurrou o alguidar das castanhas contra a barriga de Maria Luísa. «Não tens vergonha, sua mula, com o marido fora e uma criança em casa? Deves achar que és a primeira a quem ele dá a volta.»

Não era possível que a PIDE instruísse as suas agentes naquele tipo de tática. Só podia tratar-se de uma mulher amargada pelo desamor, em quem as infidelidades do marido tinham desencadeado um caso de paranoia. Maria Luísa sentiu compaixão por ela. Não eram irmãs na mesma guerra? Não tinha o secretário-geral escrito que as portuguesas estavam condenadas «aos tachos, aos filhos e à Igreja»? Que a sociedade se organizara «de forma a fazer da mulher uma escrava do marido»? Que, «na generalidade, o casamento era mais arrumação do que amor»? Não era o próprio Partido um microcosmos desse atraso, sendo grande parte das clandestinas analfabetas e arredadas do trabalho político, em favor de montar uma casa e manter as aparências?

Um violento chapadão na cara estilhaçou a piedade de Maria Luísa. A mulher empurrou-a contra a bancada, fazendo cair os ovos e o pacote de açúcar para o bolo. «Putinha, agora vais ver como elas te mordem.» Uma declaração de intenções literal. A vizinha fincou os dentes num braço de Maria Luísa, que, usando a outra mão, apa- nhou a primeira arma ao seu alcance: o raspador de tigelas que os portugueses tinham batizado com o nome do ditador avarento e inimigo do desperdício. Com o cabo de madeira do salazar, Maria Luísa atingiu a cabeça da mulher uma e outra vez. Rasgou-lhe o couro cabeludo. Fraturou-lhe a cana do nariz. Desalojou-lhe dois dentes.

Durante anos, e apesar da generalizada falta de sentido de humor dos camaradas de luta, ela haveria de contar como Salazar salvara uma comunista em apuros. Mas, naquela manhã, era a vio- lência, não a comédia, que melhor descrevia o que se passava na cozinha. Maria Luísa tinha andado quilómetros descalça, julgando que a Polícia estaria prestes a capturá-la e que Nádia seria levada. Os anos na clandestinidade haviam sido quase sempre o tédio das lides domésticas, a vigilância sem folgas dos captores — ninguém saía ileso de tanta disciplina e renúncia; podia até dizer-se que, atacada por uma criatura ensandecida, ela tinha agido em legítima defesa. Mas a forma como Maria Luísa espancou a mulher diante da filha, deixando-a inconsciente e desfigurada, também era um indício de algo mais do que as suas circunstâncias. Além de salvar a pele, Maria Luísa acreditava aniquilar assim dinastias inteiras de reis, magnatas, latifundiários, e, mesmo assim insatisfeita, só pararia quando algo dentro de si, algo de que não podia livrar-se, fosse destruído também.

Fugiu de Évora para a margem sul do Tejo. Por uma nesga das cortinas, via, no outro lado do rio, a colina lisboeta que tantas vezes tinha subido e descido pela mão dos avós. Era como estar do outro lado do espelho da sua infância. Em criança, quando ainda não fora construída a grande ponte que receberia o nome do ditador-raspador de cozinha, Maria Luísa fantasiava acerca da vida além do Tejo, um território distante e exótico, que ela acreditava ser o Brasil onde o pai desaparecera. E agora, mulher adulta, que ali chegara com Nádia para se refugiar numa casa de apoio do Partido, a Margem Sul nada tinha dos exuberantes trópicos, era apenas um conglomerado de estaleiros, gruas e chaminés industriais que enferrujavam a paisagem campestre. Da janela do quarto-esconderijo, Maria Luísa procurou a menina que tinha sido, lá longe, no início da década de 1950, na casa de Lisboa onde a mãe a deixara para ir trabalhar num hotel em Sintra.

O avô Xavier tentara mitigar a distância entre mãe e filha, abrindo diante de Maria Luísa um atlas de capa dura. E se Lisboa parecia tão perto do Rio de Janeiro, no mapa-múndi, como estava de Sintra, no mapa da Estremadura, talvez o Brasil fosse mesmo no outro lado do Tejo, naquelas encostas que o Sol sobrevoava da nascente à foz, debaixo de um céu com as cores quentes dos países da América do Sul no atlas.

O avô Xavier explicava que o céu e o Sol eram os mesmos nas duas margens do rio, e que podiam ser vistos de inúmeros lugares, provando que havia sempre mais de um prisma para o mesmo objeto. A neta, porém, achava que o céu e o Sol deveriam ser mais bonitos nesses sítios chamados prismas, uma vez que o pai tinha preferido o Brasil e a mãe desandara para Sintra, onde talvez as outras crianças não se rissem de Maria Luísa, como faziam no Bairro Alto, quando ela dizia que o pai se chamava Incógnito. Estava escrito na certidão de nascimento:

Maria Luísa Alegria Filha de:
Pai Incógnito
& Antónia Alegria

Fechou as cortinas e olhou para Nádia, que dormia num divã. Estavam num refúgio a prazo, a típica casa de apoio, cujos donos, um casal de médicos, antifascistas na sombra, não eram do Partido, mas recebiam militantes doentes ou em trânsito.

«Temos de tirar-te daqui», disse o controleiro do Partido, que ali a escondera e, um dia depois, a fora buscar. Sempre de olho na porta, era um desses homens que, assim que entrava numa casa, começava logo a estudar a trajetória de fuga.

«E o Alfredo?», perguntou ela, voltando a olhar para a filha.

«Junta-se a ti mais tarde.»

Detentor de uma indiscernibilidade de feições, o controleiro desaparecia numa pequena multidão enquanto um polícia esfregava um olho. A banalidade tinha-lhe permitido evitar a prisão ao longo de vinte anos.

«Sais agora do país e voltas daqui a uns tempos. Mas não podes levar a garota.»

Viajaram durante a noite, o controleiro ao volante do automóvel, Nádia no banco de trás, enrolada numa manta, a cabeça deitada no colo da mãe. Maria Luísa sentia-se parte de um eterno retorno, de um vaivém inescapável: ia fazer com a filha aquilo que a mãe lhe fizera dezanove anos antes.

Por cautela, o controleiro estacionou no mato. Teria de caminhar alguns quilómetros, tardando pelo menos um par de horas antes de regressar com uma resposta. Deixou instruções para que Maria Luísa e Nádia permanecessem dentro do carro. Ela não achou prudente estar parada numa caixa de metal enfiada na vegetação. Temia as consequências dos seus atos, em Évora: tinha confundido um adúltero com um bufo da PIDE, impedira Alfredo de voltar e espancara uma mulher civil, expondo a casa clandestina às autoridades. Como poderia o Partido proteger alguém com- prometido depois de tamanha incompetência? E se o controleiro não a tivesse levado ali para resolver a custódia de Nádia, mas para eliminar o problema que Maria Luísa criara?

Abriu a porta e ouviu o rumor da serra de Sintra. Pássaros, insetos, água galgando as pedras. Conhecia aquele território como a palma da mão da criança que ali crescera, dias e dias à solta, dona de esconderijos e pontos de vigia, movendo-se por veredas, carreiros de cabras, encostas, cruzando-se com raposas e coelhos, nunca se perdendo no caminho de volta.

Julgando-se mais segura no meio do mato, saiu do automóvel e foi atrás da melodia de um riacho, onde lavou as ramelas dos olhos de Nádia. De joelhos, cercada pelos troncos das árvores, sentiu na nuca a desproteção dos executados com um tiro de pistola à queima-roupa. Olhou para trás, não viu ninguém. O rigor das ações na clandestinidade e o medo da captura haviam feito dela uma pessoa desconfiada, que temia muito mais do que a PIDE. Ponderou se as suas características de militante exemplar, que obedecia sem questionamento, não serviriam também o Partido na hora de se livrar dela. Afinal, deixar Nádia em segurança, antes do salto para o estrangeiro, era o melhor pretexto para convencer Maria Luísa a deslocar-se a um lugar ermo, onde seria punida pelo fracasso na defesa da casa de Évora, que pusera em risco a missão do companheiro.

Desconfiar do Partido era, só por si, um crime de traição. Tal como as freiras do colégio lhe tinham ensinado que se podia pecar em pensamento, também com pensamentos se podia trair o Partido.

Tentou afastar as suspeitas, ser fiel como sempre havia sido, aproveitar a harmonia com a Natureza da serra. Encheu a concha da mão com água do riacho para dar de beber à filha, mas não lhe saía da cabeça que Manuel Domingues também fora fuzilado em harmonia com a Natureza, num pinhal em Belas. Lembrou-se dos nomes de Manuel Lopes Vital e de Aurélia Celorico, as outras vítimas da suposta purga iniciada pelo Partido após as delações que tinham originado a terceira prisão de Álvaro Cunhal, o secretário-geral. Lembrou-se de uma rubrica do Avante!, intitulada «Traidores à classe operária».

José Jubileu, empregado na empresa vidreira da Foutela (Figueira da Foz), é um autêntico lacaio dos patrões e, portanto, inimigo dos seus colegas de trabalho, a quem tem prejudicado inúmeras vezes.

Deixando Maria Luísa ali, com a filha, talvez o controleiro estivesse a testar a lealdade dela, averiguando quantos dias esperaria sem pensar em purgas, sem imaginar o seu nome nas páginas do Avante!

Maria Luísa Alegria, parte da camarilha salazarista abundantemente auxiliada pelos serviços de espionagem norte-americanos, espalhou a confusão e traiu o povo português.

Se um erro em Évora e uma noite mal dormida a deixavam tão insegura, que aconteceria caso a PIDE — os verdadeiros inimigos — a largasse num calabouço? Recordou a indefetibilidade do comunista Militão Ribeiro, que morrera esquelético, no anticlímax de uma greve de fome na penitenciária de Caxias. Lembrou-se de Fidel Castro, que, traído por um colaborador ao desembarcar em Cuba, perdera setenta camaradas para o fogo dos aviões inimigos, vivendo dois anos na selva com os onze sobreviventes. Lembrou-se dos habitantes de Leninegrado, que aguentaram a selvajaria do cerco nazi durante 872 dias. Como podia ela desrespeitar tais sacrifícios, deixando-se abalar pela propaganda fascista que inventava as purgas no Partido? Tudo mentira, veneno da víbora imperialista americana e dos seus lacaios na Europa. Mesmo que tivessem morrido uns quantos na Cuba de Fidel ou na União Soviética de Estaline, não seriam um pequeno preço a pagar pela grandiosa recompensa da revolução? Lenine tinha sido categórico:

«Nem um só problema da luta de classes foi alguma vez resolvido sem violência.»

Maria Luísa pegou em Nádia ao colo e iniciou o caminho de volta ao carro, crente de assim contribuir para o esforço do Partido: fazer o que lhe mandavam, não contestar, assumir que a revolução podia nem sequer acontecer no seu tempo de vida, sem que isso a inibisse de lutar.

Numa das casas clandestinas onde tinham vivido, Alfredo dissera-lhe:

«Se o Partido nos pedir todos os dias para desapertarmos um parafuso de manhã e o voltarmos a enroscar ao cair da noite, é isso que fazemos, entendes? Não temos de saber se o parafuso fará cair uma ponte e evitar a invasão imperialista, ou se apenas prende a dobradiça da porta da casa de banho de uma fábrica onde os nossos camaradas produzem mais parafusos. Lembra-te que a revolução é muito maior do que tu. És uma pequena peça. És um parafuso. E, sempre que duvidares da utilidade do parafuso, o equívoco é teu, o Partido não se engana.»

Maria Luísa entrou no automóvel e bateu com a porta, decidida a ser o parafuso. Não sairia dali até ao regresso do controleiro. Se tivesse comprometido a missão de Alfredo, pagaria por isso. Caso a quisessem além-fronteiras, sem uma pista do que lhe pediriam em seguida, ela assinaria um documento em branco. Se fosse indispensável, como decretara o controleiro, deixar Nádia em Sintra, com a avó materna, que ainda não conhecia a neta, ali estava Maria Luísa pronta a servir a causa.

Para se limpar dos crimes de pensamento, disse baixinho um ato de contrição:

«O Partido não se engana. Quem diz o contrário é fraco e con- trarrevolucionário.»

Olhou para Nádia e reconheceu-se: as longas pestanas que pareciam asas de corvo a vincar a imensidão dos olhos; o mesmo negrume no cabelo escorrido, que, no colégio de freiras, valera a Maria Luísa a alcunha de Apache. Viu-se na tira do retrovisor, a sobrancelha franzida, um radar em permanente auscultação, um pasmo pelo mundo, que os outros confundiam com petulância e pendor para julgamentos precipitados. Naquele reflexo, encon- trou ainda as feições da sua mãe e deu-se conta de que tinha os mesmos vinte e quatro anos de Antónia, quando esta a entregara aos avós Alegria, no Bairro Alto. Sentiu pela mãe a afinidade das mulheres que arriscavam uma escolha, em vez do conformismo. Sentiu algo próximo do perdão, mãe e filha encadeadas no tempo, confluindo uma para a outra.

Uma armada de nuvens barrou o passo ao Sol, a serra ensombreceu e, minutos mais tarde, o silêncio foi atacado pelo motor de um carro na estrada, portas a bater, interjeições de homens, braços a afastar o mato. Maria Luísa não esperou, como tinha prometido a si e ao Partido. O parafuso, afinal, tinha vontades. Pegou na filha e fugiu.

Liberdade ou morte.

Era difícil correr com uma criança ao colo, ter um segundo coração a pulsar fora do peito, protegê-lo até à morte porque lhe dera a vida. Pensou esconder a filha e seguir adiante, atraindo para si os captores, só que Nádia choramingou, assustada, e Maria Luísa voltou a pecar em pensamento: caso estivesse sozinha, não a apanhariam, os filhos eram uma fragilidade, como avisava o Partido. Nádia pesava-lhe, os braços tremiam, as coxas queimavam, uma pontada de exaustão perfurou-lhe os pulmões. Na mente em deban- dada, apareceu-lhe um ensinamento do avô Xavier: «Os cavalos estafam, não fazem pausas para descanso, correm até rebentar.» Em criança, Maria Luísa ficara perplexa e triste, sem saber se os cavalos eram heroicos ou suicidas. Agora, entendia que a Natureza não era uma escolha. Também ela correria até se estafar.

Derrota após derrota até à vitória final.

Precipitou-se para o muro de uma quinta, com vidros espeta- dos no cimento, um arame farpado improvisado pelos caseiros com as garrafas de vinho bebidas pelos patrões. Pousou a filha e tirou o casaco, dobrando-o de forma a cobrir os cacos laminados. Sentou Nádia no casaco sobre o muro.

«Salta.»

Os ombros da filha anunciavam uma vaga de choro, as vozes dos homens perpassavam o mato e, antes que Nádia pudesse virar-se para trás, Maria Luísa empurrou-a para o outro lado.

«Corre», gritou a mãe.

O primeiro tiro foi para o ar e apagou todos os barulhos da serra. Ela não levou as mãos ao alto nem fechou os olhos ou se prostrou.

Prefiro morrer de pé a viver de joelhos.