Percorremos as estreitas ruas da (anteriormente) pacata vila de Paredes de Coura e deparamo-nos com o mesmo, em todas as esquinas e vitrines: cartazes diversos anunciando festas em honra de Santo ou Santa, promessas de fogo-de-artifício, as presenças confirmadas de conjuntos regionais e menos regionais, publicidade a gastronomia vária. Sente-se na pele que a povoação está viva. Existe uma nobre ideia de reencontro, com quem partiu e voltou durante o querido mês de agosto, para rever rostos familiares cuja distância só é encurtada pelo telefone ou pela internet. Os crucifixos servem aqui como bússola.
Não há Cristo na música dos Fleet Foxes, mas há essa sensação de familiaridade e do corte com a saudade. Havia-a de uma certa solidão, no segundo EP (“Sun Giant”, 2008) e no primeiro álbum (homónimo, idem), potenciada pela magia eremita de canções como 'White Winter Hymnal', onde o silêncio de montanhas vestidas de gélido era apenas quebrada pelo vislumbrar de uma raposa (as mesmas que coabitam nas freguesias adjacentes a Paredes de Coura). Eremita não o sendo; há coros, há música escrita em bando, há uma fogueira a crepitar e a dar as boas-vindas a quem quer que por lá passe.
Essa aldeia, essa montanha e esse outono/inverno de abraços abateu-se sobre o chamado Couraíso, no segundo dia do festival. Havia a expetativa de tentar perceber como funcionaria a música dos norte-americanos num ambiente bucólico e verdejante, tornado estreito por um rio frio onde o sol se banhou insolente. Tínhamo-los visto, um ano antes, no NOS Alive, num grande centro urbano, onde nos limitámos a sonhar com o calor dessas povoações menores. Esta noite, experienciámos verdadeiramente esse sonho. Que começou em toada mais ou menos rock, com 'Grown Ocean':
In that dream I'm as old as the mountains
Still as starlight reflected in fountains
Os Fleet Foxes apresentam-se em palco como uma banda da aldeia, um grupo de amigos que se juntou para fazer música por entre o vinho e o mel correndo. Sete, ao todo, sem grandes trejeitos de rockstar ou sem a auréola de plástico que pontifica sobre tanta boa banda. A única coisa que aqui há é excelentes intérpretes e canções maravilhosas. Nada mais que isso; nada de modas, modinhas ou modorras. E por falar em canções maravilhosas: 'Ragged Wood', que podia ser título para um livro de Herberto Hélder, nascesse este em Seattle.
Como prova de tudo isto, eis que o vocalista Robin Pecknold reconhece um rosto familiar, um estrangeiro que chegou a sua casa após a ausência: um jovem que terá estado presente nesse supracitado NOS Alive. O reencontro aquece o coração, amolecendo-o de amor quando, no final, esse mesmo jovem recebe nas mãos o casaco do artista e amigo que ali esteve à sua frente, em palco. Poderia perfeitamente ter acontecido o inverso, já que, segundo explicou o próprio, Pecknold e banda estiveram retidos em Amesterdão e só chegaram ao Minho três horas antes do espetáculo em Coura.
Quem mais chegaria até ali a sorrir após ter apanhado uma seca descomunal num aeroporto? Só mesmo uma banda como os Fleet Foxes, que não precisaram de muito para vencer a gigantesca competição que é um festival de música, onde cada artista tenta superar o próximo. Num concerto em modo best of, saudou-se 'Fool's Errand', 'Mykonos' e 'Third of May / Ōdaigahara', e ergueram-se os braços bem alto, como se viu alguém fazer nos ecrãs laterais, quando os Fleet Foxes se despedem com uma perfeita tempestade elétrica a encerrar 'Helplessness Blues'. Foi bonito? Não, foi incrivelmente belo.
E foi-o mesmo tendo a forte concorrência do lado mais sujo do rock n' roll, que esteve em grande expressão ao longo da tarde/noite de concertos. No palco principal e antes dos Fleet Foxes encontrámos uma das nossas grandes estrelas rock, Paulo Furtado – ou Legendary Tigerman – a apresentar perante uma vasta plateia o blues estonteante que lhe conhecemos há anos. 'Black Hole', tema presente em “Misfit” (2017), o seu último álbum, deu o mote para aquela que seria uma apresentação feérica e que pareceu, a dada altura, vir a acabar em anarquia pura.
Isto porque o português não conseguiu esconder a sua indignação com... alguma coisa. Imaginamos que com o som que se ouvia das colunas, visto que, a dada altura, Tigerman explica sarcasticamente ao público que a sua banda estava «super generosa com o feedback»..., mas também com o amor: pelo mundo, pelas pessoas, pelo rock n' roll – ESPECIALMENTE pelo rock n' roll, que foi entoado sem parar durante o final apoteótico com 'Twenty First Century Rock N' Roll', com o Homem-Tigre abraçado pelas filas da frente (não sem antes lhes pedir, encarecidamente e com alguma ameaça pelo meio, a guitarra que lhes havia atirado pouco antes). Já mil vezes nos cruzámos com ele em festivais e salas de espetáculos por esse Portugal fora, e continuaremos a querer fazê-lo por outras mil.
Também soberba, e não menos suja, foi a atuação dos britânicos Shame, que regressaram a Portugal para apresentar os temas do seu álbum de estreia, “Songs Of Praise”. No seu pós-punk ruidoso há espaço para tudo: riffs cortantes, momentos mais dançáveis entre os Joy Division e os Happy Mondays e versos cantados em regime stream of consciounsess. Ainda mal o concerto havia começado e já o vocalista Charlie Steen se havia lançado para o meio do público, pelo qual puxaria ao longo de todo o set. E este, naturalmente, correspondeu com o crowdsurfing que se pedia, sentindo a mesma adrenalina dos Shame (especialmente a do seu endiabrado baixista) nas veias.
Ao longo de uma hora, os britânicos foram uma gigantesca patada na apatia. Tal como os portugueses FUGLY, que abriram o palco secundário com os temas de “Millenial Shit”, álbum editado este ano. Naquela que foi a sua primeira vez em Paredes de Coura enquanto artistas (já por ali estiveram várias vezes, como melómanos), os FUGLY deram ao público um garage punk estonteante e suado, onde até coube uma interpolação de 'The Real Slim Shady', clássico de Eminem, longas jams elétricas e a confirmação total de que o rock, em Portugal, está bem vivo e recomenda-se. Basta abrir os olhos e os ouvidos.
Num filme mais pop, encontrámos os X-Wife no palco principal a debitar 'On The Radio', ainda hoje a sua melhor canção, juntamente com os temas que compõem o seu novo álbum, homónimo. Acompanhados por um mini-coro feminino, a banda portuguesa teve ainda tempo para saudar nuestros hermanos galegos com uma canção em espanhol, deixando todos os outros a dançar ao som do seu enérgico dance-punk. Menos dançáveis, os Japanese Breakfast mostraram uma pop sonhadora e cheia de reverb ao início da noite, quando já muitos apostavam em encher não os palcos mas as zonas de restauração. Ainda assim, aquele ruído e resquícios da era espacial, completos com uma batida motorika a fazer lembrar os Stereolab, serviram para nos amolecer depois da crueza dos Shame. E, mais tarde, foi a pequena gigante Surma, a apresentar as suas canções eletrónicas, quem encheu as medidas dos presentes, ainda que tenhamos ficado com a clara sensação de que, dados os degraus da escada evolutiva que já galgou, a leiriense tivesse ficado melhor no palco principal. Talvez para a próxima?
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