Foi há 50 anos. 15 de agosto, 1969. Uma quinta com 242 hectares, 70 km a sudoeste de Woodstock, Nova Iorque, enche-se de milhares e milhares de jovens hippies, encantados pelo slogan que definiu o evento que ali teve lugar: «três dias de paz e música». Nem sempre os slogans cumprem aquilo que prometem, mas o festival de Woodstock (o nome ficou, apesar da distância) fê-lo com mestria. Melhor: superou-o. Porque tudo poderia ter corrido mal, muito mal. “Apenas” 200 mil pessoas pagaram bilhete para entrar, mas outras tantas conseguiram-no fazer gratuitamente, após as grades que ladeavam o recinto terem sido cortadas por um coletivo anarquista nova-iorquino. As condições eram nulas. A chuva que se abatia sobre o local transformou aquela outrora pacata quinta num cenário dantesco e enlameado. A comida era escassa e muitos dormiram ao relento, com apenas uma manta como proteção.

Pouco importou. «Três dias de paz e música». Como em nenhum outro momento na história da música, da cultura pop ou sequer da humanidade, meio milhão de pessoas conseguiu juntar-se num sítio apenas para mostrar ao mundo que viver em comunidade é possível, para mostrar à América dos anos 60 que os hippies não eram um bicho papão, prontos a corromper a juventude e a moral cristãs. Meio milhão de pessoas: o número impressiona, sempre. Tudo pela música, e mais do que isso, por um ideal que a cada ano parece desvanecer-se cada vez mais.

Deixemos de lado as memórias e falemos desse motivo suprassumo: o rock n' roll, e não apenas o rock n' roll, também a folk e a música indiana e até o hino nacional norte-americano pela mão elétrica de um dos seus filhos mais resplandecentes, Jimi Hendrix. Deixemos de lado as ideologias e falemos do poder da música, das canções, das letras, dos riffs e do groove e da batida. Deixemos de lado as drogas, a lama, os engarrafamentos caóticos até ao festival, os helicópteros que tiveram de levar os artistas até ao palco, as duas mortes que ocorreram, os nascimentos. Eis uma espécie de playlist de um festival que, mais que mudar as vidas daqueles que por lá estiveram, mudou o mundo. Bem-vindos a Woodstock.

Richie Havens – 'From the Prison'

Coube a Richie Havens a honra de abrir o festival que se tornou lenda por entre os amantes da música. Com alguma sorte – ou azar –, dependendo da perspetiva: as restantes bandas que iriam atuar nesse mesmo dia, como os Sweetwater, que foram mandados parar pela polícia, estavam retidas no trânsito e, devido a isso, o seu concerto foi adiantado. A ideia era a de que tocasse apenas quatro músicas, mas dados os muitos atrasos, e também dada a resposta positiva por parte do público, Havens aumentou o seu set, começando com a contemplação blues de 'From the Prison', a primeira canção de sempre a ser escutada em Woodstock, e que teve direito a bis pouco depois. Assim se dá início a uma história.

Bert Sommer – 'America'

“Pela Estrada Fora”, livro de Jack Kerouac que marcou a geração beat, deu o mote. Iludidos pela promessa de serem livres e isentos de responsabilidades, milhares de jovens norte-americanos (e não só) arrumaram os poucos pertences que tinham (e às vezes até nenhuns) e puseram-se a caminho, rumo a qualquer lado que os afastasse não de casa, mas da anomia da vida em capitalismo. Jovens esses que passaram a ser conhecidos como hippies, que pregavam a paz e o amor (e as drogas), que pregavam o rock n' roll e a tolerância, que olhavam para todo um planeta e não apenas para o seu quintal, quais marinheiros em busca de terras prometidas. Sobre eles, Paul Simon e Art Garfunkel (que recusaram atuar no festival de Woodstock porque preferiram, à altura, concentrar-se nas gravações do seu novo álbum – mal sabiam eles...) escreveram 'America', interpretada em Woodstock por Bert Sommer, cantautor folk que teve como apogeu a participação neste festival e, mais tarde, no musical “Hair”. A história é a de dois apaixonados a percorrer os Estados Unidos, à procura de uma resposta para uma pergunta que nem sabiam que tinham. A história é a de todos aqueles que foram até ao festival, à procura dos seus semelhantes. Ali estava a América; a invisível, a calorosa, a pacífica.

Joan Baez – 'We Shall Overcome'

A década de 60 foi de grandes transformações políticas. A geração que havia nascido no pós-guerra começava agora a despertar para a ação, para o ativismo, para a liberdade. E uma das suas vozes foi a de Joan Baez (recorde aqui a sua passagem por Lisboa, na tour de despedida dos palcos), que se apresentou no festival visivelmente grávida (o seu filho, Gabriel, nasceria em dezembro), e que terminou um concerto de uma hora com um hino da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, 'We Shall Overcome', que começou como um gospel e acabou como êxito pop e canção obrigatória por todos os que defendem algo de melhor. “Iremos vencer”, em tradução livre. Talvez a geração de 60 não tenha vencido, mas inspirou outros tantos a lutar.

Santana – 'Soul Sacrifice'

Em agosto de 1969, Carlos Santana era ainda um desconhecido do grande público. Apenas dois anos antes, haviam-lhe dito que seria “impossível” obter qualquer tipo de sucesso misturando ritmos latinos ao rock n' roll. Mas bastaram esses dois anos para que fosse Carlos Santana, e por arrasto a sua banda, os últimos a rirem-se. Após assinarem contrato com a editora Columbia, os Santana editaram o seu álbum de estreia, homónimo, e atuaram em Woodstock com uma pequena ajuda do seu manager, Bill Graham, a quem foi pedido que ajudasse a organizar o festival, e que só acedeu caso a banda fosse adicionada ao alinhamento. O que poderia ter sido uma simples “cunha” foi um golpe de génio: os Santana encantaram o público e há gravações fabulosas de 'Soul Sacrifice', com aquele ritmo quente e aquele órgão em ebulição, a comprová-lo.

Grateful Dead – 'Turn on Your Love Light'

Os anos 60 também foram de experiências sonoras, muitas delas potenciadas – há que dizê-lo – pelo “mágico LSD”. No que toca a experimentar e a consumir essa mesma substância, os Grateful Dead foram a banda hippie por excelência, gerando um verdadeiro culto à sua volta, os chamados “Deadheads”, que acompanhavam a banda por todo o lado, que gravavam e partilhavam cassetes das suas atuações ao vivo, que viam em Jerry Garcia, vocalista e guitarrista entretanto falecido, um avatar do Divino na terra. Como tal, só poderiam mesmo ter feito parte do alinhamento do festival de Woodstock, tocando longas jams psicadélicas, o tónico perfeito para o que por ali ia sendo consumido, e que terá adocicado tanto os que por ali estavam que a comunidade em redor da quinta – incluindo residentes próximos e autoridades – se espantaram com o seu grau de civismo: diz a história que houve hippies a ajudar carros da polícia, a mesma que noutras situações os perseguiria, a sair da lama; uma telefonista local exclamou que nunca havia visto “tantos jovens a dizer 'obrigado'”. 'Turn on Your Love Light' foi, em Woodstock, a última canção dos Grateful Dead apenas devido a problemas técnicos: os amplificadores não aguentaram tamanha descarga. Acontece...

The Who – 'My Generation'

Depois dos Beatles e dos Rolling Stones, os The Who foram o expoente máximo da “invasão britânica” aos Estados Unidos, nos anos 60. A culpa é de “Tommy”, ópera-rock que apresentaram quase na íntegra em Woodstock, mas principalmente de canções como 'Pinball Wizard' e 'My Generation' – em especial esta última, hino para toda a juventude rebelde desde os anos 60 até hoje. Porque tem ali o início do espírito do no future punk como cantado pelos Sex Pistols: hope I die before I get old... Claro que essa frase surgiu apenas da boca para fora – os Who estão aí, com mais 50 anos em cima, a cantar esta mesma canção. Não que isso interesse para alguma coisa. A juventude não é um número num cartão de cidadão.

Jefferson Airplane – 'White Rabbit'

No livro, Alice perseguiu o coelho branco até ao País das Maravilhas. No mundo real, milhares de Alices perseguiram outros tantos coelhos brancos – leia-se: LSD – até ao País das Maravilhas, dos Sonhos, do que fosse. 'White Rabbit', dos Jefferson Airplane, é não só uma das melhores canções do rock psicadélico como a mais ativista – em relação às drogas – entre as canções de rock psicadélico: alimenta a tua mente, canta Grace Slick. No meio de um festival onde esse tipo de substâncias correu a rodos, e durante um concerto que começou às 8h00 (!) da manhã, não há como não mencionar a interpretação de 'White Rabbit' como um dos grandes momentos de Woodstock.

Joe Cocker – 'With a Little Help From My Friends'

Tal como Simon & Garfunkel, também os Beatles não estiveram presentes no festival (que provavelmente não existiria sem a sua influência, tanto a nível musical como a nível estético – não serão eles, afinal, pais do movimento hippie?). Mas as suas canções foram-se escutando ao longo de três dias, com uma versão em particular a destacar-se, como aliás sempre se destacou: 'With a Little Help From My Friends', na voz cavernosa de Joe Cocker. Só uma pessoa não gostou de o ver em Woodstock: um tal de São Pedro, que fez cair uma trovoada daquelas imediatamente a seguir ao seu set, obrigando o festival a atrasar os concertos do último dia.

Crosby, Stills, Nash & Young – 'Wooden Ships'

Uma das grandes lutas da juventude norte-americana no final dos anos 60 era contra a guerra do Vietname, que fez milhares de mortos entre os seus pares e dividiu profundamente uma América que nunca pareceu estar verdadeiramente unida desde a Guerra Civil. O Vietname foi – e continua a ser – uma ferida aberta no coração do país, que se abriu por completo quando começaram a chegar, em caixões, as primeiras vítimas de um conflito cujo sentido ainda hoje parece não existir. 'Wooden Ships' foi escrita com a guerra em mente e com a possibilidade de um catastrófico conflito nuclear nos horizontes, imaginando como seria o mundo após tamanha demonstração de dor – um medo que estava omnipresente em todas as gerações que passaram pela Guerra Fria. Em Woodstock, onde a larga maioria de festivaleiros se opunha à guerra do Vietname, atingiu um nível de pungência ainda maior, fechando o set elétrico do quarteto formado por David Crosby, Stephen Stills, Graham Nash e Neil Young (antes disso, tocaram um acústico). Mesmo em local de paz e música, ou sobretudo em local de paz e música, havia que pensar nos horrores da guerra para que lutasse pelo seu fim.

Jimi Hendrix – 'The Star-Spangled Banner'

Poema escrito em 1814 por Francis Key, 'The Star-Spangled Banner' tornou-se no hino nacional norte-americano após ter sido fundido com uma velha canção britânica e aprovado pelo congresso, em 1931. Os anos 60 não foram simpáticos para os hippies, que eram muitas vezes acusados pelas forças mais conservadoras de não serem patriotas ou, pior ainda, anti-americanos; a sua filosofia de vida chocava diretamente com os costumes e tradições que vinham dos anos materialistas do pós-guerra. Pelo que a sua interpretação por Jimi Hendrix, em formato rock psicadélico carregado de feedback, foi não só o apogeu do festival (mesmo que, dos 500 mil originais, “só” 30 mil pessoas o tenham assistido in loco) como uma forma de o movimento hippie ou, em geral, a juventude norte-americana deixar um aviso aos seus pais: o de que também eles eram patriotas, e não queriam ver a nação que também era sua afogar-se em escândalos, em guerras, em violações de direitos humanos. Diz assim o poema: Land of the free, home of the brave – e ninguém foi tão livre, tão corajoso quanto eles. Woodstock chegava ao fim com a afirmação suprema: a da liberdade.