Não se trata de uma seara, não foi feita num segundo, não resulta de um fenómeno da natureza, mas a Acreditar é como uma espécie de semente que tem feito vários “puffs” ao longo dos anos. Juntamente com outros pais, Ansfriede Zwaagstra, holandesa de “carne e osso” e a viver em Portugal há 36 anos, é uma das fundadoras desta associação de pais e amigos de crianças com cancro, que este ano completa 25 anos. Recordemos a história da Acreditar em 10 “puffs”, regados com a experiência daqueles que fazem o dia-a-dia da associação e, em particular, da Casa Acreditar de Lisboa.
Primeiro “puff”: 1993, o ano em que a semente germinou
“Não havia informação para os pais e para as crianças. Não havia nada para esclarecer o que era o cancro infantil. Nós sentíamos na pele o que gostaríamos de ter”, explica Ansfriede.
Este foi o ponto de partida: um grupo de pais, praticamente todos com filhos com cancro, reuniu-se com o objetivo de criar uma rede de entreajuda e de melhorar as condições dos tratamentos nos vários hospitais de oncologia pediátrica do país. “Não havia espaço para as crianças brincarem. As salas de espera eram todas uniformes”, descreve a também gestora da Casa de Lisboa.
Um ano depois, a Acreditar constituiu-se enquanto associação e criou os quatro núcleos que ainda hoje existem: Norte, sediado no Porto; Centro, em Coimbra; Sul, em Lisboa; e Madeira, no Funchal.
Uma semente com germinação sincronizada a nível internacional
Ainda não tinha passado um ano e já a Acreditar estava a ter um papel internacional. A associação foi, em 1994, uma das organizações fundadoras da International Confederation of Childhood Cancer Parent Organisations (ICCCPO; Confederação Internacional de Organizações de Pais de Crianças com Cancro), hoje em dia Childhood Cancer International (CCI; Confederação Internacional de Cancro Infantil).
“A constituição foi feita por seis países, mas um ano depois já éramos 20”, conta Ansfriede. E agora são 188, de 96 países nos cinco continentes.
Nas reuniões anuais da confederação, a organizações tomam conhecimento do que se faz nos outros países. “Tirámos de lá muitas ideias. Praticamente tudo o que temos é resultado destas reuniões: ideias sobre recolha de fundos, escolaridade, apoio emocional, apoio psicológico, tratamento ambulatório, cuidados paliativos... Tanta coisa”, explica.
Puff! A semente virou livro
“Uma das primeiras coisas que fizemos foi pegar numa brochura inglesa, que falava sobre o cancro infantil e [explicava] em que é que consistiam os tratamentos, os efeitos secundários, etc. Adaptámos e traduzimos para Portugal. Foi o primeiro livro que publicámos”, recorda Ansfriede, referindo-se a “Um Livro para os Pais”, lançado em 1995. Atualmente, a Acreditar já conta com mais de 15 publicações.
A partilha de informação sobre a doença oncológica, e no cancro infantil em particular, é quase sempre colocada no topo das prioridades. Patrícia Luz, coordenadora do núcleo sul e ela própria com a experiência pessoal de acompanhamento próximo a um familiar com doença oncológica, chega a afirmar: “Não são necessariamente as experiências de doença e de morte que são perturbadoras. O que às vezes é perturbador é o não viver bem estas experiências”. E, nesse sentido, Patrícia Luz sublinha que a informação é um elemento essencial para trazer “alguma estabilidade emocional”.
Quando as sementes se fixam, geram-se raízes, laços e redes de afeto
“Por ser mãe de uma criança com cancro, por ter passado pelo mesmo, consigo perceber, minimamente, o que os pais sentem”, afirma Ansfriede. Na Acreditar, está presente, sob muitas formas, a ideia de que as redes de partilha fazem mesmo a diferença. Talvez por isso uma das primeiras valências a ser criada (em 1995) tenha sido precisamente a do apoio emocional, de pais para pais. Nestes grupos de pares, que ainda hoje existem, “partilha-se um importante testemunho de esperança, otimismo e solidariedade. Amenizam-se medos e angústias”, conta-nos a organização num dos relatórios de atividades.
As sementes têm-se multiplicado
Sob o lema “a generosidade humaniza”, a associação retrata os voluntários como “rostos empáticos e sorridentes que chegam sem pressa, e que se mostram disponíveis para a brincadeira mais solta ou para o desabafo mais apertado”. A descrição não é apenas institucional. Sandra Sampaio, voluntária na Casa Acreditar de Lisboa, partilha que, nas suas visitas semanais, “é sempre difícil ir embora, porque a brincadeira nunca acaba”. Também Paula Nunes, professora voluntária do projeto Aprender Mais, gosta de se dedicar com flexibilidade: “Venho à hora marcada, mas saio sem hora, sem pressas”.
Ao longo dos 25 anos de história, já foram organizados mais de 80 cursos de formação e, por ano, estiveram envolvidos em média cerca de 700 voluntários, distribuídos pelo trabalho nos hospitais, no domicílio, nas três Casas Acreditar e no projeto Aprender Mais.
“O cancro é uma passagem” e a escola uma semente do futuro
As crianças que estão em tratamento têm muitas vezes de abandonar as aulas. A Acreditar defende que investir na escolaridade é “apostar no futuro da criança” e deixar uma mensagem também: “O cancro é uma passagem”, afirma, segura, Ansfriede. A associação alertou o ministério da Educação para a necessidade de haver escolas nos hospitais e, logo em 1998, foi lançado o projeto “Tele-aula”, um protocolo para que as crianças possam assistir às aulas através de videoconferência — ainda hoje isso é possível. Um ano depois, entrou em funcionamento a Escola do Serviço de Pediatria do IPO de Lisboa. Atualmente, para além das escolas dentro dos hospitais de oncologia pediátrica, o projeto Aprender Mais, lançado em 2007, faz chegar o apoio escolar, com a ajuda de voluntários, às crianças que estão nos seus domicílios ou nas Casas Acreditar.
Puff! Quando um edifício abandonado se transforma num lar para mais de 800 famílias
Acordar às 5h da manhã. Fazer uma viagem em jejum. Ir para as análises às 9h e comer às 10h. Esperar pela consulta das 14h. Fazer o tratamento. Regressar e estar na cama não antes das 22h ou 23. Esta pode ser a experiência de uma criança com cancro que viva fora dos centros urbanos onde há hospitais de oncologia pediátrica, descreve Ansfriede. Para acolher as famílias que estão nestas circunstâncias e evitar que às crianças seja exigido um esforço para além do da própria doença, a Acreditar construiu casas junto dos hospitais. A primeira Casa, a de Lisboa, abriu portas em abril de 2003, depois de a associação ter transformado um edifício abandonado num prédio de quatro andares, com 12 quartos, salas para crianças, adolescentes e adultos, terraço e outros espaços comuns. Por lá já passaram mais de 800 famílias, incluindo o famoso “bebé-recorde” e seus pais. Todos os que vivem fora da região de Lisboa podem lá ficar enquanto a criança estiver em tratamento. O único critério é que sejam encaminhadas pelos serviços sociais do hospital. Para além da Casa de Lisboa, há também uma Casa em Coimbra, inaugurada em 2010, com capacidade para 20 famílias, e outra no Porto com 16 quartos, aberta em 2017.
Também há “puffs” legislativos
Um dos princípios da Acreditar é trabalhar na promoção de leis que contribuam para garantir a qualidade de vida dos cuidadores e das crianças e dos jovens que estão em tratamento. Em 2009, por exemplo, foi publicada uma lei (n.º 71/2009, de 6 de agosto), no âmbito da oncologia pediátrica, impulsionada pela Acreditar, que criou um regime especial pela proteção da parentalidade, apoio especial educativo, comparticipação para tratamentos e apoio psicológico. “Foi criada a nosso pedido, com o nosso esforço e com o nosso apoio na revisão”, esclarece Margarida Cruz, diretora-geral da Acreditar.
Embora ainda sem resultados práticos, um outro tema em que a associação tem estado a trabalhar é o das licenças dos pais que acompanham os filhos quando estes ficam doentes. A Acreditar defende, por um lado, que os pais devem receber 80% da remuneração de referência, em vez dos 65% em vigor atualmente, e, por outro, que o prazo da licença devia ser alargado a todo o período da doença, ao invés do limite atual de quatro anos, explica Margarida Cruz.
A Acreditar faz ainda parte do grupo que tem estado a trabalhar na criação de um Estatuto do Cuidador Informal, cujas medidas, incluindo a criação de benefícios sociais e fiscais, regimes laborais especiais e direito a descanso, estiveram recentemente em discussão no Parlamento. Na passada quinta-feira, dia 30 de maio, foi dado mais um passo neste sentido: o Bloco de Esquerda, o PS e o PCP chegaram a acordo para a criação do Estatuto, num texto que prevê a possibilidade de os cuidadores que deixam de trabalhar poderem continuar a ter uma carreira contributiva, entre outras medidas.
Barnabés: Depois dos espinhos do diagnóstico, as espigas de esperança
O nome “Barnabé” foi herdado de um livro infantil e adotado pela Acreditar em 1998. Barnabés são crianças e jovens que viveram ou estão a viver uma doença oncológica. Lucas, por exemplo, é um Barnabé “chato”. Quem o diz é ele, acrescentando que é chato “no bom sentido”. Hoje com 28 anos, recebeu o primeiro diagnóstico aos quatro. Desde aí, já teve seis recaídas. Recupera sempre, e otimismo não lhe falta. É “chato”, diz, porque lembra o medo da recaída, mas também porque leva sempre a melhor.
Os Barnabés que já passaram pelos tratamentos encontram-se com as famílias quando estas recebem a devastadora notícia do diagnóstico. Eles são a prova de que é possível ultrapassar aquele que é muitas vezes o pior período da vida. São a cara da esperança, uma "almofada" que ampara depois do choque do diagnóstico, diz Lucas.
Muitos dos Barnabés acabam por ficar ligados à Acreditar como voluntários. Para além de participarem nas atividades de convívio, em reuniões e encontros, desenvolvem ações de sensibilização e luta pelos direitos das crianças e jovens com cancro.
Os “puffs” do amanhã
Ao fim de 25 anos ainda há por onde a semente continuar a germinar? Com certeza! Um dos próximos rebentos é o alargamento do apoio a jovens até aos 25 anos — atualmente, a Acreditar trabalha com jovens até aos 18 anos. Os 18-25 são "uma faixa que está um bocadinho perdida", comenta Patrícia Luz, coordenadora do núcleo sul. “Muitas vezes ainda estão dependentes dos pais”, mas na realidade já “são considerados adultos”.
“Isto vai ser muito trabalhoso”, antecipa, porque implica a articulação com os serviços de adultos dos hospitais. Se reportar uma situação num serviço de pediatria “é a coisa mais fácil do mundo”, no caso dos adultos “as situações são mais que muitas”.
Outro “puff” que está para breve é o da expansão da Casa de Lisboa. As instalações vão ser ampliadas e, em vez de 12 famílias, a associação vai passar a conseguir acolher 32. Depois da cedência da propriedade pela Câmara Municipal à Acreditar em 2017, aprovada por unanimidade em assembleia municipal, só falta o projeto ser aprovado para as obras começarem — “espero que no outono”, diz Ansfriede. O objetivo é que no final de 2020, início de 2021 a nova Casa esteja pronta.
Ao fim destes 25 anos a trabalhar todos os dias com um tema que tinha tudo para fazer murchar a alma, o tom com que Ansfriede conclui é muito representativo do ambiente que se vive na Acreditar e na Casa. “Cada um de nós está a fazer um trabalho útil. No meio desta confusão, desta tristeza, a Acreditar tem sempre uma resposta positiva. Levanto-me todos os dias com muito prazer de ir trabalhar. Isto é a minha sorte. It's my pleasure!”, exclama Ansfriede, que ainda solta umas frases em inglês, principalmente quando a emoção lhe preenche a voz.
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