Há cerimónias em que críticos e jornalistas relatam que alguém “venceu mas não convenceu”. Não foi o caso da cerimónia dos Grammy, considerados os principais prémios da música, que decorreu esta madrugada em Los Angeles. Adele, a britânica, venceu, e, de forma geral, todos estão convencidos do seu valor. Todos menos a própria que em todos os discursos que proferiu se devotou a Beyoncé, outra grande senhora da noite de ontem, de quem se declarou fã e insistiu que merecia mais.
Aos Grammy, a doce e poderosa Adele levou baladas na sua voz inconfundível. Aos Grammy, a vigorante e igualmente poderosa Beyoncé levou um discurso ousado e crítico. Adele falou de amor, Beyoncé falou, no fim das contas, de política.
Adele venceu nas três principais categorias (álbum, canção do ano e gravação do ano com "Hello”). Foi a segunda vez, depois de conquistar os mesmos prémios em 2012, tornando-se assim a única artista a conseguir este marco e tendo agora na estante 15 Grammys."Não posso aceitar este prémio (...) A artista da minha vida é Beyoncé. O seu álbum Lemonade é tão monumental, tão bem concebido, tão belo e tão cheio de alma. Conseguimos ver um lado de ti que nem sempre nos deixas ver e estamos gratos por isso“. Foi isto que Adele disse ao receber prémio de melhor álbum do ano por "25”. A vencedora fala da vencida, com paixão e com devoção. Não é frequente.
"A forma como me fazes sentir, como fazes com que os meus amigos negros se sintam, é uma força e fazes com que se defendam", sublinhou a vencedora Adele. "E eu adoro-te. Sempre te adorei. E sempre irei adorar", disse emocionada.
"Lemonade" é de facto o disco mais ousado de Beyoncé. Fala das dificuldades e da resistência das mulheres negras, fala da força necessária para superar um pai autoritário, fala de problemas com o marido e de uma longa história de perseguição. Venceu em duas categorias, incluindo melhor álbum urbano contemporâneo por um trabalho em que se aproximou do hip-hop, mas também do rock e até da música country.
Para casa, Beyoncé levou também o prémio de melhor videoclipe por "Formation”. “Formation”, o tributo ao movimento Black Lives Matter. Podia ser mais político neste ano que passou de todas as tensões nos Estados Unidos? Podia ser mais político neste 2017 de todas as tensões que persistem e até se intensificam nos Estados Unidos? Na voz de uma mulher que, apesar de celebridade mundial, é o espelho de dois grupos aos quais se regressa sempre que se fala de desigualdades na América: os afro-americanos e as mulheres. Beyoncé, a mulher afro-americana, disse assim: "a minha intenção com o filme e com o álbum era criar um corpo de trabalho que desse voz à nossa dor, à nossa luta, à nossa escuridão e à nossa história, para enfrentar temas que nos deixam incomodados".
Beyoncé não ganhou, Adele repetiu sempre que pode fazê-lo: “O meu álbum do ano era 'Lemonade’ (...) Não vou mentir: enquanto fã da Beyoncé, uma parte de mim morreu. Eu estava a torcer por ela, eu votei nela", frisou. "Que raio precisa ela de fazer para ganhar o álbum do ano?". Adele, fã de Beyoncé desde os 11 anos como confessou, que partiu no palco o seu troféu em dois. [e não se escapou aos rumores que se geraram sobre se teria dado a outra metade a Beyoncé ou se afinal tinha um outro gramofone inteiro à sua espera]
Mas o momento assumidamente político da noite aconteceu na apresentação do grupo Tribe Called Quest, Busta Rhymes e Anderson .Paak , uma das revelações do rap, e a demolição simbólica de um muro - aquele que Trump prometeu construir na fronteira com o México - e um apelo por resistência. "Quero agradecer ao presidente 'agente laranja' por perpetuar o mal que tem feito pelos EUA. Quero agradecer ao presidente agente laranja pela sua tentativa frustrada de banir os muçulmanos. Vamos nos unir", disse Busta Rhymes.
São prémios de música, mas não é por acaso que se diz que a cantiga é uma arma.
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