Marcelo Rebelo de Sousa começou o seu discurso com um agradecimento ao cardeal e poeta madeirense por ter aceitado participar "neste instante tão diverso" do que estava pensado para este 10 de Junho, referindo que a cerimónia de hoje estava prevista para o Funchal, na Região Autónoma da Madeira.
"E bem precisávamos de um homem do humanismo e, portanto, da cultura, de um pensador, de um escritor, de um poeta para nos falar da importância dos outros e da sua redescoberta, a começar na famílias, nas vizinhanças, nas amizades, da atenção aos mais pobres, vulneráveis e dependentes, do pacto entre gerações, tentando ultrapassar o abismo já cavado entre os mais e os menos jovens", considerou.
O Presidente da República enalteceu também outras mensagens do discurso de Tolentino Mendonça: "Do respeito efeito pela natureza, da humildade na aceitação dos nossos limites, da primazia na afirmação da vida e da saúde, e nos recordar que o humano é universal e que todas as vidas contam, todas as vidas importam".
"O 10 de Junho de 2020 fica a dever-lhe o lembrar-nos o que mudou ou está a mudar na nossa vida nestes tempos ingratos e decisivos", acrescentou, antes de passar à fase seguinte do seu discurso, sobre a mudança que no seu entender se impõe perante a nova realidade resultante da pandemia de covid-19.
Contudo, "há ainda um outro 10 de Junho de 2020 que nos interpela: aquele que parte do muito que acabámos de ouvir mas que exige mais, exige que o queiramos converter em ação", frisou Marcelo, deixando de seguida várias questões no ar.
"Percebemos mesmo o que se passou e passa? Ou, apesar de percebermos os desafios deste tempo, preferimos voltar ao passado, naquilo em que ele já não serve ou já não é suficiente? Percebemos mesmo que a pandemia foi global ou quase global, criou medos e inseguranças, exacerbou egoísmos, intolerâncias, recusas dos outros e do diferente, parou economias, refez fronteiras, travou o comércio, congelou movimentos de pessoas e de investimento?", começou por questionar.
"Ou pensamos, como alguns outros, que se recusaram a agir em tempo devido, que tudo foi um equívoco, um excesso, uma precipitação, um exagero político ou mediático? Percebemos mesmo que em Portugal ela [a pandemia] significou até agora cerca de 1.500 mortos, mais dezenas de milhares de pacientes, mais de três centenas de milhares de desempregados, oito centenas de milhares de trabalhadores em lay-off, milhares e milhares de empresas paradas por meses, setores totalmente paralisados? Ou comparamos com outras epidemias e com outras crises financeiras e económicas das últimas décadas e minimizamos o que vivemos?", continuou Marcelo Rebelo de Sousa.
"Percebemos mesmo que a pandemia ainda não terminou e que a economia e a sociedade ainda estão longe de terem arrancado sustentavelmente, o que nos obriga a sofrer, de um lado, e a recriar, do outro, ao mesmo tempo? Ou desanimamos com os números da pandemia e condenamos a rapidez da reabertura por sacrificar vida e saúde? Ora desesperamos com os números da economia e criticamos o excesso de contenção por, alegadamente, salvar vidas ou comprometer o seu futuro? Percebemos mesmo que, termos chegado onde chegámos, três meses volvidos, só foi possível porque o povo português soube compreender e assumir a contenção e está, em geral, a saber convertê-la em abertura, com sensatez e maturidade?", perguntou o chefe de Estado.
Com isto, o presidente da República defendeu que é tempo de Portugal acordar para a nova realidade resultante da pandemia de covid-19 e fazer as mudanças que se impõem, com coragem, sem voltar às soluções do passado.
"Portugal não pode fingir que não existiu e existe pandemia, como não pode fingir que não existiu e existe brutal crise económica e financeira. E este 10 de Junho de 2020 é o exato momento para acordarmos todo para essa realidade", afirmou Marcelo.
O chefe de Estado, que discursava nos claustros do Mosteiro dos Jerónimos, acrescentou: "Não podemos entender que nada ou quase nada se passou, como não podemos admitir que algo de grave ou muito grave ocorreu e esperar que as soluções de ontem sejam as soluções de amanhã, como não podemos concordar com a inevitabilidade da mudança e nada fazer por ela".
O Presidente da República apontou os próximos meses e anos como "uma oportunidade única para mudar o que é preciso mudar com coragem e determinação" e rejeitou que se opte por "remendar, retocar, regressar ao habitual, ao já visto, como se os portugueses se esquecessem do que lhes foi, é e vai ser pedido de sacrifício e se satisfizessem por revisitar um passado que a pandemia submergiu".
No seu entender, a situação em que Portugal se encontra, três meses depois de terem sido detetados os primeiros casos de covid-19 no país, só foi possível porque os portugueses se comportaram "com sensatez e maturidade", porque "os políticos fizeram uma trégua de dois meses e uniram-se no essencial", porque os serviços básicos "não faltaram" e na saúde houve um "heroísmo ilimitado, a fazer de carências e improvisos excelência".
Na sua intervenção, de cerca de dez minutos, Marcelo Rebelo de Sousa criticou também que se pense que "é já chegada a hora de fazer cálculos pessoais ou de grupo, de preferir o acessório àquilo que durante meses considerámos essencial, de fazer de conta que o essencial já está adquirido, já passou, já cansou, já é um mero álibi para apagar a liberdade e controlar a democracia".
"Heróis da saúde" fizeram "de carências e improvisos excelência"
Marcelo Rebelo de Sousa homenageou também os "heróis da saúde" que têm tratado os doentes com covid-19, considerando que têm tido um "heroísmo ilimitado a fazer de carências e improvisos excelência".
Segundo o chefe de Estado, a situação em que Portugal se encontra, passados três meses de se terem detetado os primeiros casos de covid-19 no país, só foi possível, entre outros fatores, porque no setor da saúde houve "heroísmo ilimitado a fazer de carências e improvisos excelência e salvaguarda de vida e saúde".
"Portugueses, é justo que nos unamos para homenagear os heróis da saúde em Portugal, todos, sem exceção. E aqui lhes testemunho, convosco e em vosso nome, essa homenagem. E não podendo galardoar simbolicamente todos eles, escolhi os que trataram o primeiro doente com covid-19. O médico que acompanhou, o enfermeiro que cuidou, a técnica de diagnóstico que examinou, a assistente operacional que velou", anunciou.
"Neles, a quem entregarei dentro de dias as simbólicas insígnias da Ordem do Mérito, abarcarei milhares e milhares de heróis de centenas e centenas de serviços e unidades de saúde", acrescentou o Presidente da República.
Marcelo Rebelo de Sousa adiantou que tenciona, "após a pandemia", promover uma "cerimónia ecuménica de crentes de várias crenças e de não crentes para homenagear os mortos, envolvendo as suas famílias no calor humano de que foram privadas semana após semana".
"Mas só serão justas estas homenagens, que não esquecem os compatriotas que lá fora morreram, sofreram e trabalharam neste tempo inclemente, se elas nos acordarem para o que temos de fazer", defendeu.
Devido à pandemia de covid-19, o Presidente da República cancelou no final de março as comemorações do 10 de Junho que estavam previstas para a Madeira e África do Sul e optou por fazer em Lisboa uma cerimónia "pequena, simbólica", com apenas seis convidados, como seu entender deveriam ter sido celebrados o 25 de Abril e o 1.º de Maio.
Nesta cerimónia, antes de Marcelo Rebelo de Sousa, discursou o cardeal e poeta madeirense José Tolentino Mendonça, escolhido pelo chefe de Estado para presidir à comissão organizadora das comemorações do Dia de Portugal.
Os seis convidados presentes foram o presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, o primeiro-ministro, António Costa, e os presidentes do Tribunal Constitucional, Manuel da Costa Andrade, do Supremo Tribunal Administrativo, Dulce Neto, do Supremo Tribunal de Justiça, António Piçarra, e do Tribunal de Contas, Vítor Caldeira, seis altas entidades que estão nos primeiros lugares da lista de precedências do Protocolo do Estado.
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