Esta foi a noite do debate televisivo entre o líder do PS e a líder do Bloco de Esquerda marcado para a RTP3 e moderado por António José Teixeira. Decerto não foi combinado, mas ambos os líderes foram mais contidos do que alguns confrontos recentes poderiam fazer pensar, mesmo que Catarina Martins tenha assumido a postura mais desafiadora e António Costa tivesse apostado na pose de Estado. Um moderador com a serenidade de António José Teixeira terá também contribuído para que um debate que se podia antecipar aceso fosse afinal uma conversa apenas pontualmente mais acintosa.
Comecemos pelo princípio. Catarina Martins mostrou ser uma boa aluna da escola de feedback em que a regra de ouro é dizer primeiro o que está bem para depois poder ser implacável no que está mal. E, instada a comparar as condições com que entrou numa aliança com o PS há quatro anos e hoje, foi isso mesmo, positiva e implacável. “Estamos em condições diferentes e ainda bem (...) Seguramente tivemos fracassos como com os professores e os precários e erros como Novo Banco e Banif”. Numa penada, alguns dos calcanhares de Aquiles da geringonça estavam já ditos e pouco mais de um minuto decorria.
“O BE foi o partido que aprovou mais projetos de lei, trabalhámos com PS e PCP, deixámos sementes para o futuro"
Dirá, em seguida, que “há muito por fazer” mas deixa também claro que o Bloco de Esquerda quer estar nesse “muito por fazer". “O Bloco de Esquerda não falta a nenhuma solução que puxe pelos condições do emprego, do salário e pela estabilidade das pessoas”, afirma. Dirá mais, “o BE foi o partido que aprovou mais projetos de lei, trabalhámos com PS e PCP, deixámos sementes para o futuro”. É a primeira intervenção e a líder bloquista já deixou claro, se dúvidas ainda sobrassem, que quer ir a jogo.
Do outro lado, António Costa apresenta-se com a bonomia que se lhe conhece, mais a mais num espaço onde se sente confortável como é um estúdio de televisão. E é com conforto que recorda que foi ele que “pôs ponto final em 2014”, quando foi eleito líder do PS, na ideia de arco de governação existente que excluía partidos como BE e PCP. E que foi um sucesso: “conseguimos cumprir todos os compromissos com os portugueses, com os parceiros e com a União Europeia”.
“Nada voltará a ser como dantes”
Sobre o futuro, “os eleitores dirão o que acontece no dia a seguir às eleições”. Com a certeza que “nada voltará a ser como dantes” porque “o que acontece hoje na vida portuguesa mudou radicalmente”. Mas, sublinha uma vez mais, “foram muitos anos a derrubar um muro, ninguém o irá reconstruir”, até porque há um legado destes quatro anos na geringonça (termo nunca usado em todo o debate). “Aprendemos a conhecermo-nos melhor, a ter capacidade de compromisso e a trabalharmos juntos”.
Discretamente, António Costa ainda aproveitará para fazer o seu desenho do espetro político ao referir-se ao PSD como o partido “à direita” e o Partido Socialista “à esquerda”. Vale o recado para Rui Rio e as suas pretensões ao centro-esquerda, vale para Catarina Martins, sentada à sua frente, e as suas pretensões de liderar uma certa esquerda.
Costa vai esperar pelos resultados, e Catarina também. É por isso que a bloquista diz que “quem constrói os resultados é quem vota” e recorda que se chegou até aqui com o contributo do BE a partir de um programa do PS em 2015 que era “o mais à direita de sempre”. O de 2019, continua, “é pouco concreto, não tem contas, não diz o que vai fazer”.
“Uma das minhas maiores curiosidades”, confessa “é essa, por exemplo Mário Centeno diz que vai aumentar funcionários públicos de acordo com inflação e o que está no pacto da estabilidade é 1,5% que não chega”.
Entrámos oficialmente na hora das contas certas que vai dominar a partir daqui uma boa parte do debate. Catarina não só duvida das contas que o PS não apresenta, como traz currículo do trabalho feito do BE: “aquilo que ficou conhecido como o imposto Mortágua vai arrecadar 180 milhões de euros e o aumento das pensões são 184 milhões”, recorda.
E é por isso que “o que conta é sempre o voto” e “uma maioria absoluta é perigosa”.
“Um programa de governo não pode ser uma lista de prendas de Natal”
Amor com amor se paga e contas com contas também.
António Costa, agora em tom de primeiro-ministro com quatro anos de Executivo mais do que em modo líder partidário, diz em tom ponderado que “governar exige fazer escolhas”. Será mais acintoso segundos à frente e acrescentará: “um programa de governo não pode ser uma lista de prendas de Natal”. Tudo isto porque é de números que Catarina quis falar e são outros números que vai trazer à mesa. O programa do PS, defende, é “realista”, ao invés do BE e da sua proposta de aumento em 30 mil milhões de euros na despesa anual.
Mas Costa traz mais números e escolhas que separam o PS do BE. “Há coisas que não consigo perceber como é que o BE quer fazer (...)10 mil milhões para nacionalizar a Galp é a mesma despesa do nosso Serviço Nacional de Saúde (...) eu não quero nacionalizar a Galp”.
Contas contrapostas, é tempo de voltar à política, por excelência o território do líder socialista. E há uma carta que não podia ficar de fora: “na Europa muitos olham para a solução portuguesa como um bom exemplo. É bom que não se transforme numa problema à espanhola com um PS fraco”.
Catarina diz que uma maioria absoluta é perigosa, Costa responde que uma minoria é um problema.
“Não vamos falar de problemas à espanhola porque António Costa não vai negociar com bascos e catalães”, Catarina acusa o toque e percebe que não pode perder a deixa. Por isso reforça, que “com maioria absoluta é que haveria instabilidade” e volta a insistir nas contas.
“O BE acha que as contas certas são muito importantes, levamos isso muito a sério em todas as áreas da nossa vida”, sublinha, invocando o parecer do Tribunal Constitucional sobre as contas do partido – em ordem – ao contrário, afirma, do que se passa com o PS. “Nestas coisas começa-se em casa”.
E retoma as nacionalizações em que ergue a bandeira da esquerda. “A questão das nacionalizações é um consenso à esquerda, defende o BE e o PCP e o PS percebe a sua razoabilidade, por isso há que ter cuidado em não caricaturar”. Recorda o que foi feito na TAP para reverter a privatização do governo de Passos Coelho e reafirma o tema como uma prioridade do Bloco. Com “prioridade aos CTT que foram vendidos a 920 milhões e já valem metade” e “a nacionalização não de toda a REN, mas de metade”, nomeadamente no que respeita ao sistema de gestão da REN em Portugal que estima em 50 mil milhões.
“A questão não me parece que sejam nacionalizações – a REN já está nacionalizada mas é aos chineses."
ANA, CTT, REN e Galp – Costa volta a enumerar os objetivos de nacionalização do BE e contrapõe: “melhor escola pública e melhor SNS são os nosso objetivos”. Sobre aumentos na Função Pública – tema com que Catarina não deixou de insistir ao longo do debate – António Costa emoldura tudo no conceito de reposição da “normalidade da atualização salarial” a partir de 2020.
Os dois líderes ainda se baterão por contas mais um vez, desta feita por iniciativa de Costa e a propósito do plano de habitação do BE para 100 mil fogos com custo médio de 60 mil euros cada “completamente desconforme com a realidade”. Catarina corrige e explica que não se trata de construção, mas de casas do Estado, nomeadamente das Misericórdias.
Para o fim do debate ficaram guardados dois temas caros à esquerda e às esquerdas, a aposta na cultura e o emprego jovem. Sobre a cultura o debate não deixa grande história – o PS propõe 2% do Orçamento Geral de Estado e o BE 1% do PIB, na guerra do quem dá mais a proposta do BE é mais ambiciosa, mas Costa mantém a tese do realismo e sublinha que o valor proposto pelos socialistas duplica a dotação atual.
Nos jovens, mais tempo houvesse e seria de assumir um debate mais intenso em torno da precariedade – ou não – do alargamento do período experimental para os jovens, não só a ponta do novelo que dividiu a geringonça como um tema em que o BE não desiste facilmente, até porque este é um eleitorado prioritário do partido.
A fechar, António José Teixeira pergunta, primeiro a Catarina Martins, depois a António Costa: a quem vai ligar na noite de dia 6?
Catarina é política. “O BE estará sempre disponível para soluções que permitam estabilidade do salário, das pensões (...)Ninguém terá cheques em branco”. Recado dado: ninguém terá cheques em branco.
António é António. “À minha família, mas espero que esteja comigo. E, se o Dr. Rui Rio ganhar, ligarei a dar-lhe os parabéns, como fiz há quatro anos”.
E os parceiros, insiste o moderador. “O muro que derrubei há quatro anos, a porta que abri há quatro anos, não fecharei agora”.
No dia 6 de outubro, veremos quem liga e quem atende o telefone.
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