Este fim de semana, no domingo, em Coimbra, enquanto decorre o XX Congresso Nacional de Medicina e do XI Congresso Nacional do Médico Interno, estreia-se uma nova versão do Juramento de Hipócrates, modernizado pela Declaração de Genebra e ratificado pela Associação Médica Mundial. É o revisitar de um texto clássico, do séc. V a.C, que sofreu várias alterações, adatações e revisões ao longo dos séculos, mas que ainda hoje é visto como o pilar do código ético desta área, atribuído ao ‘Pai da Medicina’, Hipócrates — precisamente aquele que lhe dá nome.
O Juramento de Hipócrates é um “juramento solene efetuado pelos médicos, tradicionalmente por ocasião de sua formatura, no qual juram praticar a medicina honestamente”, descreve sumariamente a Ordem dos Médicos. A revisão ao juramento, de olhos postos naquilo que é a realidade da medicina no séc. XXI, era vista como uma necessidade por parte da Associação Médica Mundial. Portugal vai adotar este texto por "recomendação da própria Organização Mundial da Saúde" e porque se trata de um “novo compromisso, adaptado aos tempos modernos”, um "pilar do exercício da medicina atual”, justificou Miguel Guimarães, Bastonário da Ordem dos Médicos.
Só este ano, "vamos ter, muito seguramente, [um número a rondar] os 2.000 jovens a fazerem o Juramento de Hipócrates, em Lisboa, Coimbra, Porto e Braga”, adianta o bastonário, salientando que se trata de um ato "voluntário". “Penso que a larga maioria [dos médicos] valoriza bastante esta cerimónia do juramento. É uma festa para os jovens, famílias e da própria Ordem", salientou Miguel Guimarães. "Ainda não tive nenhum médico que me escrevesse a dizer que não queria fazer o juramento por não concordar [com ele]”, acrescentou.
O que muda no Juramento de Hipócrates com esta revisão?
“Respeitarei a autonomia e a dignidade do meu doente” e “Guardarei o máximo de respeito pela vida humana”. Estas são algumas das novidades introduzidas pela Associação Médica Mundial na nova versão do Juramento de Hipócrates.
Na anterior versão, o juramento contemplava a seguinte frase: “Guardarei respeito absoluto pela vida humana desde o início”. A substituição da expressão “respeito absoluto” por “máximo respeito” foi amplamente escrutinada por parte da Ordem dos Médicos.
“[Este ponto] levantou algumas questões. O problema é que — e eu procurei informar-me junto de quem esteve na Associação Médica Mundial — [eles] consideram que o termo absoluto perdeu o sentido prático da obrigação", explicou o bastonário, salientando que "apesar de adotarmos a Declaração de Genebra, podemos fazer pequenas alterações, desde que não alterem o sentido das declarações da original, obviamente. E, portanto, aqui trocar a palavra ‘máximo’ por ‘absoluto’ é perfeitamente possível e se calhar poderemos vir a fazê-lo”, assumiu.
O respeito pela “autonomia” e “dignidade" do doente são novidades em relação ao texto anterior. E a mudança mereceu comentários do Dr. João Semedo, ao Jornal i, um dos rostos do movimento pela despenalização da eutanásia, afirmando que agora “ninguém poderá voltar a usar o fantasma de Hipócrates”. Nesta peça, Semedo explica que “não é possível desvalorizar o significado e o impacto destas alterações. A sua importância resulta do sistemático recurso ao juramento de Hipócrates por parte dos que se opõem à morte assistida, na base de que aquele juramento impedia os médicos de praticar a morte assistida porque valorizava a vida em absoluto e porque não falava sequer na autonomia do doente, que teria assim um valor relativo e não absoluto”, afirmou. O médico acrescenta que “pela primeira vez a autonomia do doente é um valor a respeitar em absoluto pelo médico, a dignidade do doente é valorizada como até agora não era e a vida humana justifica o máximo respeito mas sem absolutismos interpretativos”.
Miguel Guimarães, todavia, aborda a alteração ao texto noutro ângulo. “Os doentes, a não ser nas circunstâncias em que isso não pode acontecer, têm autonomia. São eles que, em última análise, acabam por decidir se querem ou não prosseguir como um determinado tipo de tratamento, se querem ou não fazer um determinado exame”, explicou.
“O consentimento informado é fundamental até para proteção do próprio médico em termos daquilo que é a sua responsabilidade perante o doente. Portanto, agora passa a estar consagrado aquilo que não estava antes. E não tem nada a ver com a eutanásia", diz. “Na prática, a Organização Mundial da Saúde, quando levou [a cabo estas alterações], não foi a pensar na eutanásia. Seja como for, a consagração deste princípio [da Autonomia], na nova Declaração de Genebra, que é particularmente importante, está muito virada para aquilo que é a Medicina dos tempos atuais”, reiterou.
É ainda de referir que no novo texto, a orientação sexual passa a figurar entre as considerações que não se podem interpor entre o dever do médico e o seu doente, a par da idade, deficiência, crença religiosa, origem étnica, nacionalidade, filiação política ou estatuto social. Na anterior versão do juramento constava apenas a religião, raça, nacionalidade, política e condição social. Na opinião do bastonário, a atualização deste ponto permite “uma maior abrangência ética geral".
Outro ponto-chave do novo juramento, é que este não se fica apenas pela saúde do paciente. O texto de 2017 visa um novo foco: a saúde daqueles que cuidam. “[O juramento deu] finalmente ênfase àquilo que é a própria saúde dos médicos. [Isto constata-se] em duas matérias: ‘Cuidarei da minha saúde, bem-estar e capacidade para prestar cuidados de maior qualidade’. Portanto, não é só a questão da saúde e do bem-estar da pessoa, mas é também das suas próprias capacidades, sobretudo as capacidades intelectuais de continuar a exercer medicina com qualidade", explicou Miguel Magalhães.
O texto "substitui o termo arte enquanto profissão " e "alarga o dever de respeito não só aos mestres, mas também aos alunos e aos colegas; reconhecendo o dever de partilha de conhecimento dos médicos em benefícios do doentes — algo relacionado com a formação médica contínua e com a obrigação que nós [médicos] temos de partilhar o conhecimento que temos com os nossos pares. [Note-se que] esta é uma questão fundamental da medicina e que agora está aqui completamente objetivada", salientou o bastonário.
O balanço do novo texto: ”Eu acho que este juramento, sinceramente, adapta-se mais àquilo que é a realidade dos tempos atuais, acho que é melhor para os médicos e para os doentes. O Conselho Nacional também assim o achou, e adotamos, para já, esta Declaração de Genebra. Como vos disse, sem prejuízo, de alguma alteração mínima, como por exemplo naquela alteração do ‘máximo’ e do ‘absoluto’", concluiu Miguel Guimarães.
A Declaração de Genebra
A Declaração de Genebra é uma versão moderna baseada no Juramento Hipocrático Clássico e será o texto mais comum. Em Portugal, embora não sejam sempre usados os mesmos textos nas cerimónias, em 2017, o Bastonário da Ordem dos Médicos espera que a nova versão da declaração seja utilizada em Coimbra, Lisboa, Braga e Porto.
Adotada pela Associação Médica Mundial na sua segunda Assembleia Geral, em 1948, a Declaração de Genebra é considerada um dos documentos centrais da ética médica, sendo o intuito fazer-se uma declaração juramentada aquando a admissão do médico à prática da medicina.
A Declaração de Genebra foi alterada três vezes (1968, 1983 e 1994) e revista duas (2005 e 2006). Em 2016, começou a preparar-se uma nova versão. De acordo com o site da Associação Médica Mundial (AMM), foi então estabelecido um grupo de trabalho para desenvolver esta nova versão da declaração a ser apresentada ao Comité de Ética do organismo. Para ajudar nesta questão, foi solicitado o parecer de outros membros constituintes da Associação, sob a forma de uma investigação focada na utilização de juramentos de médicos.
O rascunho, que pode ser encontrado aqui, será a base do juramento que se vai realizar em Portugal, em Coimbra, este fim de semana. Em abril de 2017, o Conselho da AMM aprovou este rascunho para consulta pública. No nosso país, até este sábado, baseávamo-nos na versão de 1983.
Recordar o Juramento de Hipócrates de Cós, séc V a.C, de 1771
Juro por Apolo Médico, por Escuápio por Higí por Panaceia e por todos os Deuses e Deusas que acato este juramento e que o procurarei cumprir com todas as minhas forças físicas e intelectuais,
Honrarei o professor que me ensinar esta arte como os meus próprios pais; partilharei com ele os alimentos e auxiliá-lo-ei nas suas carências,
Estimarei os filhos dele como irmãos e, se quiserem aprender esta arte, ensiná-la-ei sem contrato ou remuneração.
A partir de regras, lições e outros processos ensinarei o conhecimento global da medicina, tanto aos meus filhos e aos daquele que me ensina!; como aos alunos abrangidos por contrato e por juramento médico, mas a mais ninguém.
A vida que professar será para benefício dos doentes e para o meu próprio bem, nunca para prejuízo deles ou com malévolos propósitos.
Mesmo instado, não darei droga mortífera nem a aconselharei; também não darei pessário abortivo às mulheres.
Guardarei castidade e santidade na minha vida e na minha profissão.
Operarei os que sofrem de cálculos, mas só em condições especiais; porém, permitirei que esta operação seja feita pelos praticantes nos cadáveres,
Em todas as casas em que entra!; fá-lo-ei apenas para benefício dos doentes, evitando todo o mal voluntário e a corrupção, especialmente a sedução das mulheres, dos homens, das crianças e dos servos,
Sobre aquilo que vir ou ouvir respeitante à vida dos doentes, no exercício da minha profissão ou fora dela, e que não convenha que seja divulgado, guardarei silêncio como um segredo religioso,
Se eu respeitar este juramento e não o viola!; serei digno de gozar de reputação entre os homens em todos os tempos; se o transgredir ou violar que me aconteça o contrário.
Fórmula de Genebra, adotada pela Associação Médica Mundial, em 1983
Prometo solenemente consagrar a minha vida ao serviço da Humanidade.
Darei aos meus Mestres o respeito e o reconhecimento que lhes são devidos.
Exercerei a minha arte com consciência e dignidade.
A Saúde do meu Doente será a minha primeira preocupação.
Mesmo após a morte do doente respeitarei os segredos que me tiver confiado.
Manterei por todos os meios ao meu alcance, a honra e as nobres tradições
da profissão médica.
Os meus Colegas serão meus irmãos. Não permitirei que considerações de religjão, nacionalidade, raça, partido político, ou posição social se interponham entre o meu dever e o meu Doente.
Guardarei respeito absoluto pela Vida Humana desde o seu início, mesmo
sob ameaça e não farei uso dos meus conhecimentos Médicos contra as leis da Humanidade.
Faço estas promessas solenemente, livremente e sob a minha honra.
Fórmula de Genebra, adotada pela Associação Médica Mundial, versão de 2017
COMO MEMBRO DA PROFISSÃO MÉDICA:
PROMETO SOLENEMENTE consagrar a minha vida ao serviço da humanidade;
A SAÚDE E O BEM-ESTAR DO MEU DOENTE serão as minhas primeiras preocupações;
RESPEITAREI a autonomia e a dignidade do meu doente;
GUARDAREI o máximo respeito pela vida humana;
NÃO PERMITIREI que considerações sobre idade, doença ou deficiência, crença religiosa, origem étnica, sexo, nacionalidade, filiação política, raça, orientação sexual, estatuto social ou qualquer outro fator se interponham entre o meu dever e o meu doente;
RESPEITAREI os segredos que me forem confiados, mesmo após a morte do doente;
EXERCEREI a minha profissão com consciência e dignidade e de acordo com as boas práticas médicas;
FOMENTAREI a honra e as nobres tradições da profissão médica;
GUARDAREI respeito e gratidão aos meus mestres, colegas e alunos pelo que lhes é devido;
PARTILHAREI os meus conhecimentos médicos em benefício dos doentes e da melhoria dos cuidados de saúde;
CUIDAREI da minha saúde, bem-estar e capacidades para prestar cuidados da maior qualidade;
NÃO USAREI os meus conhecimentos médicos para violar direitos humanos e liberdades civis, mesmo sob ameaça;
FAÇO ESTAS PROMESSAS solenemente, livremente e sob palavra de honra.
Não existe somente o Juramento de Hipócrates, existem vários. E não existe nenhuma obrigatoriedade internacional que force os países a adotar um sistema idêntico. Todavia, assentam praticamente todos na sua matriz. Existem adaptações, adoção de novos termos para realidades distintas, mas o tronco e o cerne é o mesmo. Os Juramentos de Lasagna e Pellegrino são disso exemplo.
Mas o que dizem os médicos sobre o juramento?
Um artigo publicado no Medscape, um portal desenhado especificamente para a consulta de médicos e profissionais de saúde sobre questões ligadas à medicina, cujo título é “Será hora de reformar o Juramento de Hipócrates?”, começa com a questão: O juramento hipocrático deve continuar a definir o padrão ético do cuidado aos pacientes pelos médicos de hoje ou é um anacronismo que deveria ser reformado?
Opinião favorável: "Quando és um médico recém-formado, normalmente achas graça em fazer o juramento em nome dos antigos deuses gregos, há muito esquecidos”, começa por dizer um cirurgião ao Medscape. "À medida que os anos passam e que vais enfrentando casos éticos complicados, o juramento começa a fazer cada vez mais sentido. Às vezes pode ser um fardo, mas permanecer fiel à sua promessa faz com que percebas que o juramento de Hipócrates é uma verdadeira joia da humanidade, tão verdadeiro e moderno hoje como quando foi escrito pela primeira vez”.
Opinião desfavorável: “Ética e moral são ensinadas muito antes do curso em medicina. Qualquer juramento é simbólico, e concordar com isso não muda a honestidade ou a compaixão de uma pessoa. A tecnologia avançou muito para lá daquilo que é a nossa ética, e um juramento de há vários séculos atrás não abrange toda a ciência ou prática médica moderna”, frisou outro.
Num universo de 200 médicos entrevistados para a peça sobre a relevância do juramento, provenientes do Canadá e Estados Unidos, mais de 80% respondeu que este era “muito” ou “um tanto significativo” e apenas 11% respondeu que não “era nada significativo”.
Sugere o artigo que as palavras citadas podem ter menos valor do que prestar o juramento em si. Sendo uma declaração pública, existe uma espécie de honra entre a profissão, os seus profissionais e a própria sociedade. “Simboliza um vínculo ético, não somente entre médicos e pacientes, mas também entre novos médicos e os seus antepassados, que fizeram a mesma promessa ao longo dos séculos”.
E quem foi Hipócrates?
“O Pai da medicina moderna”. É assim que praticamente todos os livros e sites nos introduzem ao indivíduo que dá nome ao juramento que agora se altera. De acordo com várias fontes, isto deve-se ao facto de Hipócrates ser considerado o primeiro médico a ter em conta a razão, a lógica e a ciência como ferramentas centrais na prática do ofício.
Não é possível determinar ao certo a sua data de nascimento. Contudo, um artigo publicado originalmente no Jornal Brasileiro de História da Medicina, da autoria de Wilson Alves Ribeiro Jr. conclui que "é certo que Hipócrates, neto de Hipócrates, nasceu em Cós; que grande parte de sua vida transcorreu na segunda metade do século V a.C.; que ele era um 'asclepíade', membro de uma espécie de corporação de médicos ligados por laços familiares e/ou profissionais; que ensinou medicina mediante pagamento; e que desfrutou, em vida, de grande renome. É muito provável que tenha aprendido os rudimentos da profissão com o pai, também médico; que exerceu em vários lugares; que criou, desenvolveu ou divulgou conceitos inovadores a respeito da arte médica; e que escreveu a respeito de assuntos médicos. Morreu, possivelmente, durante uma das suas viagens, nas primeiras décadas do século IV a.C., e pode ter sido enterrado em Larissa, na Tessália", conclui.
Há autores que não acreditam que tudo o que é atribuído a Hipócrates seja obra de apenas um homem. Todavia, há quem defenda que, ainda que existam ensinamentos que em muitos casos lhe são atribuídos, embora escritos por discípulos, em nada perdem a sua importância porque foram baseados nos seus métodos.
Há ainda autores que destacam Hipócrates como alguém que sabia que seria impossível avançar na medicina sem partilhar a informação. Terá sido ele o primeiro a tornar público todos os seus manuscritos e descobertas. Consequentemente, outros médicos seguiram o seu exemplo nos séculos seguintes. E não só o terão seguido, como estabeleceram uma prática baseada na sua: uma clínica subjugada aos valores humanos.
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