A pandemia provocada pelo novo coronavírus acelerou drasticamente a transição digital de vários setores que foram obrigados a "confinar". Neste contexto, os smartphones e os computadores passaram não só a ser a nossa janela para o mundo, como a principal ligação ao mundo. As compras online aumentaram, as entregas de comida ao domicílio, com os restaurantes encerrados, inevitavelmente, também. Já os planos de férias, de escapadinhas e de viagens que implicassem uma dormida num alojamento, sem alternativas, foram caindo sucessivamente, não só devido ao sentimento generalizado de insegurança sanitária, mas também devido às restrições impostas às deslocações a nível nacional e internacional.
Aos primeiros sinais de retoma, mesmo que parcial, o setor foi obrigado a encontrar respostas, muitas delas assentes numa adiada revolução digital. Os QR codes, os chatbots, o check-in online reduziram as interações entre pessoas numa altura em que estas pouco se recomendavam, e tornaram a experiência de comer fora ou viajar mais rápida e mais autónoma.
Mas, num setor de pessoas e para pessoas, o quão diferente pode ser uma estadia num hotel? O que é que a Internet pode acrescentar, para além daquilo que já existe hoje, a um roteiro gastronómico ou a uma ida a um restaurante? A dúvida é legítima. Uma viagem ao estrangeiro é algo intangível e que não é substituída por um zoom in no Google Maps ou por um passeio no Google Street View. Um mergulho nas águas quentes de Bali não existe noutro lugar que não na Indonésia. Passear pela Grande Muralha da China é completamente diferente do que ver uma sequência de fotos ou um vídeo, mesmo que em direto, daquela que é uma das sete maravilhas do mundo.
No entanto, depois de meses a fazer scroll pelos Bookings, Edreams e tantas plataformas semelhantes à procura de compensar as viagens perdidas com planos para outras novas, numa luta com a decisão de reservar ou não um hotel e um voo perante a incerteza dos tempos que vivíamos, o setor do turismo regressa em força, num cenário de aparente "normalidade". Agora, há que compensar o tempo perdido e apanhar o comboio da digitalização de um mundo pós-pandemia, e que não vai voltar atrás.
Inês Drummond Borges, Chief Transformation Officer da Sonae Sierra, no debate sobre Revolução Digital promovido pelo NEST - Centro de Inovação do Turismo, no Auditório Mar da Palha, no Oceanário de Lisboa, ao abrigo do evento What’s Next - Innovating Tourism, sugeriu que, no turismo, “pode haver interesse em seguir aquilo que são as tendências do retalho, porque parte desse trabalho está já em curso e tem um dinâmica acelerada e, portanto, pode ser interessante piscar o olho e perceber o que foram os sucessos e os insucessos, e ver o que é que isso pode trazer para a indústria da hospitalidade”.
No retalho, por exemplo, percebeu-se nos últimos anos que previsões de um mundo onde as lojas físicas e os centros comerciais desaparecem “não fazem sentido”. Em vez disso, estes espaços “vão ajustar o propósito que têm dentro da jornada do consumidor” e “vão estar cada vez mais do lado da experiência”. “Trata-se de pensar como é que se otimiza a experiência do consumidor final. E isso é algo em que o retalho está talvez um bocadinho à frente, enquanto indústria, do turismo”, afirma.
Se o comboio da digitalização acelerou durante a pandemia, agora que o mundo viu, experienciou, e em grande medida transitou para o digital, é hora da nova revolução da Internet, do 2D para o 3D, do estático para interação. É no âmbito nesta revolução, que tem chegado às pessoas pela palavra ‘metaverso’ — um termo descrito pela primeira vez pelo autor de ficção científica Neal Stephenson, no romance "Snow Crash", no qual os seres humanos, com avatares digitais, interagem num mundo virtual em três dimensões e popularizado mais recentemente pelo projeto de Mark Zuckerberg, criador do Facebook, de uma nova forma de vivermos e nos relacionarmos com o digital —, que o leque de possibilidades para o turismo se abre.
Essas possibilidades não se resumem à tradicional distopia, alimentada por um certo atrito à mudança, de diminuir custos, trocando, por exemplo, os trabalhadores que estão na receção por um assistente virtual capaz de fazer o check in e check out ou de trocar o concierge por outro assistente capaz de sugerir um bom restaurante para o jantar e um bom itinerário de passeio para o dia seguinte. Nesta digitalização, as possibilidades são várias e dependem do contexto, mas têm sobretudo dois grandes objetivos: enriquecer a experiência do consumidor e/ou otimizá-la.
Para a CTO da Sonae Sierra, neste novo mundo da digitalização, é preciso “compreender o que é que são pontos diferenciais que o humano traz e que o digital traz, e como é que eles se combinam para maximizar a intensidade e o prazer da experiência, que é o que o retalho tem vindo a fazer”.
“Há vários pontos de equilíbrio sobre como utilizar o digital para poupar custos versus melhorar a experiência, dependendo da proposta de valor. (...) Se nos queremos posicionar no segmento de luxo, na hospitalidade, então temos que providenciar uma experiência que está ao nível do preço que estamos a tentar cobrar. O ponto de equilíbrio entre o humano e o digital aí é específico, mas não quer dizer que o digital esteja fora de jogo e que tudo tenha de ser só humano. De todo. Mas o ponto de equilíbrio que vamos procurar é diferente daquele que temos quando estamos num turismo independente, dos famosos nómadas digitais que invadiram Portugal. É preciso estar muito consciente do que são as oportunidades de otimização de uma operação versus as oportunidades de maximização do prazer da experiência, esta é a perspetiva que me parece mais interessante aqui”, explica.
Inês Drummond Borges sublinha que, hoje, “o retalho, quando olha para as lojas do futuro pensa, compreende e tenta construir lugares de experiência, um sítio onde o contacto com o produto é exponenciado pela realidade física. A verdade é que não há, até ao momento, algoritmo digital nenhum que permita substituir o contacto físico com o produto, seja de que tipo for”. “O produto de turismo está ainda mais aqui porque ele não é tangível. A experiência de estar num lugar que é único, de usufruir da gastronomia... que outra atividade como o cooking, no geral, mais tem feito evoluir esta lógica de experiência? É brutal. Comer já não é só uma questão de paladar, não só tem os aromas como tem todo o tema do visual”, exemplifica.
António Câmara, professor universitário na Universidade Nova de Lisboa e chairman do YGroup, também presente no debate, conta que “há cerca de 13 anos” desenvolveu com a Apple uma experiência de digitalização de um hotel em Montreal, no Canadá, como ainda hoje não se vê.
"Nós achávamos que as apps de compras iam funcionar, mas aquilo que funcionou foi o princípio do Tinder”
“Isto foi depois do lançamento do iPhone. A Apple queria substituir aquele sistema dos hotéis americanos e canadianos com a televisão e o telefone ultra antigos por um sistema em que a pessoa chegava ao quarto e tinha um iPhone e o iPhone fazia tudo. Depois, no final, a pessoa até podia comprar o iPhone e levá-lo para casa. Uma das coisas que nós trabalhámos com a Apple foi, no fundo, gamificar a experiência do hotel. Basicamente, havia vários níveis e a pessoa era recompensada, um pouco como um esquema de loyalty cards condensado numa estadia. Eu lembro-me perfeitamente dessa experiência porque muitas destas ideias ligavam-se também à própria cidade de Montreal, em que nós criávamos um pequeno jogo de treasure hunting, também ligado às lojas que circundavam o hotel. Isto era feito com o comércio local, foi uma pena não ir para a frente”, conta, explicando que a marca levou o projeto a concurso para o introduzir em grandes cadeias de hotéis, para substituir os sistemas convencionais, mas perdeu.
“A parte mais curiosa dessa experiência é que houve uma parte da aplicação incrivelmente bem sucedida. Eu chegava ao hotel, registava-me, se eu quisesse até divulgava quem era, e depois estava aberto a convites para ir jantar. Toda esta parte de emparelhamento foi mais bem sucedida. (...) Nós achávamos que as apps de compras iam funcionar, mas aquilo que funcionou foi o princípio do Tinder”, ri-se.
Para o empresário e académico, o mundo está à beira de uma revolução tecnológica brutal que vai transferir o ‘centro de comando’ dos smartphones para… óculos. Mas não são uns óculos quaisquer.
“Se eu acho que há uma mudança na Internet nos próximos anos, vai ser a Internet 2D, literária e baseada no mundo dos dados, para uma Internet onde, finalmente, o mundo real e também o mundo virtual passam a ser dominantes. Isso vai acontecer nesta década com a introdução de óculos. Hoje já temos óculos de realidade virtual com boa qualidade, mas sobretudo com os óculos de realidade aumentada e com o lançamento da Apple no final deste ano, que é neste momento visto por muitas pessoas da indústria como o maior lançamento de tecnologia da história da humanidade. Muda tudo”, diz, explicando alguns dos pormenores do que já conhece do produto que permitirá gerir a visão, “focar à distância” e “indexar o mundo com um detalhe imenso que não se consegue hoje”.
É nos olhos que António Câmara vê as janelas para o novo mundo. E é difícil duvidar das previsões de um homem com tantas experiências e projetos que o levaram, por exemplo, até ao Staples Center, em Los Angeles, num trabalho com a Nike, durante o All Star weekend da NBA, onde, através da realidade virtual, permitia aos fãs a imersão num momento final e decisivo do jogo em que, na pele de Kobe Bryant, marcavam uma sequência de livres.
“Hoje em dia, falamos do metaverso… O que acho que vai acontecer no turismo é tudo isto: eu estou no mundo real e vou para o metaverso ou estou no metaverso e agora quero ir para o mundo real”, sintetiza António Câmara.
Estas novas potencialidades podem materializar-se muito graças ao 5G, uma rede que vai reduzir significativamente a latência.
“O 5G vai permitir, no fundo, que cresçam exponencialmente as soluções de algoritmos interligados. Quando se fala em Internet das Coisas é isso: os equipamentos correm algoritmos que, por sua vez, se interligam com outros e trocam informação e, portanto, substituem cada vez mais a pessoa humana nesse tipo de tarefas. Mas, eu volto à mesma perspetiva: para quê?", questiona Inês Drummond Borges, para logo elencar uma resposta.
"Para libertar o humano para aquilo em que ele é insubstituível, que é a fazer as partes da experiência. Esta é a maneira que é interessante e mais desafiante de pensar num setor como o turismo, porque Lisboa só há em Lisboa e as experiências que existem em Lisboa só existem em Lisboa. Aquilo que o 5G permitirá, na minha perspetiva, é dar o maior grau de liberdade para utilizarem as vossas pessoas para aquilo em que elas são insubstituíveis e naquilo que mais diferença fazem, para criarem experiências verdadeiramente únicas para os vossos utilizadores/cliente”, antecipa Inês Drummond Borges.
Já António Câmara deixa, à boleia da diminuição da latência, deixa algumas sugestões.
“Uma das ideias que nós temos, e que começámos a testar em Lisboa, é esta ideia de ir para um restaurante, por exemplo, e estar presente em tempo real num outro lugar qualquer. Os turistas que vêm para aqui vão continuar a poder estar, ao mesmo tempo, em eventos que decorrem em Nova Iorque ou noutros locais”, explica o empresário.
Isso pode "eliminar uma barreira de uma decisão de vir a Portugal", sinaliza a CTO da Sonae Sierra, destacando todavia que seria "mais interessante pensar como fazer ao contrário: como é que de repente os vossos clientes não são apenas as pessoas que vêm a Portugal, mas que tirando partido dessa lógica, estão noutro qualquer lugar e podem ligar-se a Portugal".
Desta forma, "eu tenho todo um mundo de potenciais clientes. A minha base de clientes hipotética deixa de ser a das pessoas que estão a considerar num curto ou médio espaço de tempo viajar para Portugal, e passa a ser o mundo inteiro. Eu posso criar relações”, complementa a CTO da Sonae Sierra.
A forma descontraída e enraízada com que Inês e António falam de um mundo de óculos de realidade aumentada, de uma vida a saltar entre a o digital e a realidade, de hotéis que se otimizam para ‘desburocratizar’ todo o processo para o cliente e simplificar o acesso a informação, promovendo interações com, por exemplo, o comércio à volta do alojamento, é quase desconcertante. Muito provavelmente porque parece um passo muito maior do que aquele do que foi dado na pandemia, para o qual, de uma forma ou de outra, grande parte da população já estava preparada.
Neste cenário, o setor do turismo, em Portugal, está pronto para abraçar o 5G, os óculos de realidade aumentada e o metaverso?
Talvez não, pelo menos para já. Na sequência de perguntas tiveram lugar depois de uma hora de debate entre os dois convidados, moderada pela jornalista da SIC, Liliana Carvalho, ficou visível uma espécie de fosso entre aquilo que é a arquitectura do futuro e aquilo que são as fundações do presente.
Logo na primeira intervenção, Roberto Antunes, diretor executivo do NEST, colocou um dado em cima da mesa: segundo o INE, apenas 47% das empresas da hospitalidade e da restauração com mais de 10 pessoas é que têm um website. Depois, André Corcos, diretor de infraestruturas da rede Vila Galé, há 14 anos no grupo, deu um testemunho da frustração de “todo o técnico de informática que trabalha com Internet nos hóteis”, “um sofrimento muito grande que só eles conseguem perceber”.
"Nós não vamos fazer uma síntese para o que passou, vamos acelerar a mudança para a frente
“É um esforço muito grande fornecer uma Internet de qualidade para um cliente e no final nunca é 100%. Primeiro, há um investimento da empresa em distribuir um sinal. Você pode deixar tudo impecável, vira as costas do hotel e dois dias depois tem dezenas de antenas que foram desligadas ou queimaram", exemplifica. Antes do 5G, defende, "devia haver um investimento de ampliação deste sinal, mesmo do 4G. O 4G hoje para um hotel, para um cliente, para uma pessoa já seria suficiente. Não há necessidade de mais velocidade. Nós não entramos num shopping e ligamo-nos ao wi-fi, a não ser que não se tenha um pacote de dados. A partir do momento em que você tem dados disponíveis, não é um custo muito alto, é algo acessível, você sempre vai optar pelo seu pacote de dados e por não se ligar a uma rede. Chegámos a tratar, através de fibra, cada quarto como se fosse um apartamento e aí deparámo-nos com o custo da Internet. Eu, na minha casa, tenho 500 megas de Internet, um hotel nunca vai poder dar 500 megas para cada hóspede, então o cliente tem sempre a sensação de que a Internet é lenta”, contou.
Por último, outro dos presentes, Gustavo, que trabalhou num software para hotéis, sublinhou que “em 2019, os dados da Deloitte diziam que 86% dos hotéis em Portugal vinha de pequenos hotéis e pequenas cadeias, onde a digitalização e a adoção de tecnologia é muito baixa". “E não estou a falar de óculos 5G, estou a falar de um check in online. A adoção tecnológica é baixíssima. Havendo tanto trabalho a fazer antes de chegarmos ao 5G, faz mais sentido apostar em soluções B2B [de empresa para empresa] ou B2C [para o consumidor final]?
Nenhuma das perguntas ou exposições ficou sem resposta.
António Câmara lança o cenário: “chegam dez pessoas ao hotel com óculos de realidade aumentada. Que conteúdos nós lhes vamos dar?”, questiona. “A distinção entre os diferentes hotéis do futuro vai ser, em certa medida, semelhante aquela que aconteceu antes com o smartphone e com a Internet”, diz, prevendo ainda que esses ajustamentos sejam "mais simples de fazer do que anteriormente”. O chairman do YGroup introduziu ainda a ideia dos smart contracts, contratos utilizados para executar transações automaticamente sem a necessidade da uma empresa, governo ou entidade para intermediar. Uma forma “sem fricção” de otimizar e desburocratizar processos e que pode ser disruptiva em vários setores, incluindo o do Turismo.
Já Inês Drummond Borges reconheceu que não existe uma solução única e o contexto de cada decisor vai determinar as suas prioridades. Mas uma certeza tem: “Aquilo que aí vem é mais disruptivo do que aquilo que hoje vivemos e, portanto, nós não vamos fazer uma síntese para o que passou, vamos acelerar a mudança para a frente".
Os próximos anos contarão a história dos intervenientes, dos otimistas aos pessimistas, passando pelos realistas, dos sonhadores aos sobreviventes, de uma indústria ainda longe dos níveis de digitalização desejados e encara agora uma realidade que, há meia dúzia de anos, só vivia em episódios de filmes e livros de ficção científica.
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