A chegada dos militares portugueses a França, em janeiro de 1917, marca o início do grande esforço militar português durante a I Guerra Mundial.
Apesar de Portugal ter combatido os alemães em África, em defesa dos territórios das antigas colónias - sobretudo Angola, mas também Moçambique - as imagens mais impactantes para a sociedade portuguesa de então chegaram da guerra no teatro de operações da Europa, da chuva, do frio e da lama num pequeno troço de trincheiras na Flandres francesa.
O governo português insistiu na participação militar na Frente Ocidental - apesar de contar, inclusivamente, com a oposição inicial da aliada Inglaterra - para consolidar a posição da (ainda) jovem República Portuguesa perante as grandes nações da Europa (em contraste com a vizinha Espanha, que tinha optado pela neutralidade).
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No entanto, o objetivo estratégico último do governo português de então era salvar a integridade colonial em África, quer por receio de ataques diretos dos alemães ou por temer que, sem Portugal sentado à mesa dos vencedores, as colónias portuguesas fossem usadas como moeda de troca pelos ingleses no final do conflito.
Portugal não quis deixar dúvidas de que estava empenhado em lutar ao lado dos aliados e para isso treinou e mobilizou para França uma divisão reforçada de 35 mil homens, sobretudo infantaria apoiada por artilharia de campanha, com a designação Corpo Expedicionário Português. Esta força passaria mais tarde a duas divisões, num total de 55 mil homens.
Em todo o conflito (de 1914 a 1918), Portugal destacou pouco mais de 105 mil homens (55 mil para o teatro europeu e os restantes para África, sobretudo Angola).
A 2 de fevereiro de 2017 os primeiros soldados portugueses desembarcaram em Brest, sendo depois levados de comboio para o vale do Lys, para cobrir um setor entre Armantières e La Bassée, Merville e Béthune. A frente a cargo dos portugueses oscilou entre os quatro e os 11 quilómetros, consoante a evolução dos combates.
Seguindo o procedimento típico da guerra de trincheiras, a frente portuguesa estava organizada em três linhas de defesa: uma perto da terra de ninguém, com duas linhas de trincheiras, uma intermédia e uma última linha com fortificações de campanha de maior envergadura e com vias de comunicação para a retaguarda.
As tropas portuguesas combateram ali de fevereiro de 1917 a abril de 1918, sofrendo (e repelindo) cerca de 60 assaltos e 20 bombardeamentos de artilharia dos alemães. Já o lado português lançou dez ofensivas (infrutíferas) para tentar romper as linhas alemãs.
Nestes meses, as forças portuguesas terão sofrido mais de 600 baixas (pouco mais de 100 mortos, 350 feridos e 160 prisioneiros).
O soldado de infantaria António Gonçalves Curado foi o primeiro militar português a morrer na sequência de combates na Flandres. A ficha do CEP indica que "faleceu na primeira linha em 04 de abril de 1917, por virtude de ferimentos recebidos em combate, ficando sepultado no cemitério inglês de Laventie".
No entanto, quatro dias depois, o comandante-chefe do CEP, o general Tamagnini de Abreu e Silva, escreveu no seu diário o que realmente se passou: "Chegou a comunicação oficial dos ingleses da morte do soldado e dos ferimentos dos outros. Afinal, não foram estilhaços da granada que o mataram. Caiu sobre o abrigo em que os homens estavam uma granada que fez abater o tecto e o soldado ficou com a cabeça esmigalhada e os outros, feridos. (…) Aquele pobre soldado que estava abrigado à retaguarda morre esmagado por um desabamento! C’est la guerre!".
O episódio acabaria por ilustrar a participação portuguesa no teatro europeu da I Guerra Mundial: um desmoronamento com pouco brilho e nenhuma glória.
A 9 de abril de 1918 - com Portugal em ebulição com um novo governo em Lisboa, o de Sidónio Pais, na sequência de um golpe de Estado - os alemães lançaram uma ofensiva sobre la Lys que rompeu as linhas e obrigou ao recuo das forças aliadas para a retaguarda.
Com material danificado pelo inverno de 1917, desmoralizados e sem reforços enviados de Lisboa, o contingente português foi submetido a uma forte barragem de artilharia e "atropelado" pelas divisões alemãs. Na batalha de La Lys morreram mais de 1.300 portugueses, outros 4.600 ficaram feridos, 1.900 foram dados como desaparecidos e mais de 7.700 foram feitos prisioneiros.
Uma derrota humilhante (apesar da forte resistência dos portugueses e de algumas histórias individuais de heroísmo) que marcou o início do fim da participação portuguesa na I Guerra Mundial. Os efetivos ainda aptos do CEP foram posteriormente formados em três batalhões de infantaria, e integrados no exército inglês, no qual lutaram até ao armistício, em novembro de 1918).
Presença portuguesa em França: “um vazio” na historiografia francesa
A presença de soldados portugueses nas trincheiras da Flandres durante a I Guerra Mundial constitui “um vazio” na historiografia francesa, disse à Lusa o historiador Georges Viaud, sublinhando que há um século essa presença era “bem conhecida”.
“A presença portuguesa na Grande Guerra era bem conhecida naquela época. O Le Figaro, o Le Matin, o L’Express du Midi de Toulouse são jornais que falaram da presença portuguesa na guerra. Mais tarde há um vazio que se instala porque deixa de se falar da presença portuguesa e agora os historiadores franceses não estudaram essa presença”, indicou o presidente da Sociedade de História e Arqueologia do 14° bairro de Paris.
Quando se assinala o centenário da chegada à Flandres dos primeiros soldados portugueses que participaram na I Guerra Mundial, Georges Viaud destacou que “há muitos documentos de época que falam disso”, exemplificando com a edição de 10 de abril de 1918 do jornal Le Figaro, que fala da Batalha de La Lys, e as edições de 15 de julho de 1918 do Le Matin e do l’Express du Midi que mencionam os portugueses no desfile de vitória dos Aliados em Paris a 14 de julho.
Para o historiador francês Emmanuel Saint-Fuscien, professor na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, a participação de Portugal na Primeira Guerra Mundial é, simplesmente, “um ângulo morto da historiografia europeia”, sobretudo francesa.
"A participação portuguesa é pouco conhecida e pouco desenvolvida. Por um lado, a participação das unidades portuguesas à escala da guerra é tardia e ocorre pouco tempo antes do falhanço da Ofensiva Nivelle de 16 de abril de 1917, a qual vai provocar motins no exército francês e é um evento que passa por cima de tudo o resto", explicou.
A segunda hipótese prende-se com a determinação de França "em insistir na participação do conjunto da nação", ou seja, nas "regiões até aqui consideradas como periféricas - como o oeste da Bretanha, a Córsega, algumas partes do Midi e as colónias - o que apaga algumas participações estrangeiras", concluiu Emmanuel Saint-Fuscien.
Victor Pereira, historiador e professor na Universidade de Pau, no sul de França, sublinhou à Lusa que "quando se fala nos não franceses que participaram na guerra pensa-se nos ingleses - que eram os principais aliados - e nos Estados Unidos”, considerando que “as outras nações que ajudaram França, como Portugal, são um pouco esquecidas”.
“No conjunto dos soldados, os 50 mil enviados por Portugal não fizeram uma diferença maior (…). Por outro lado, como Portugal não participou na II Guerra Mundial e nas grandes guerras do século XX, há muitas vezes a ideia de que Portugal sempre esteve fora dos assuntos europeus", explicou.
Jean Yves Lenaour, especialista francês da Grande Guerra, também admitiu que "os franceses ignoram geralmente a participação de uma unidade portuguesa na Frente Ocidental" porque "a participação de Portugal é, acima de tudo, simbólica e garante-lhe um bom lugar na Conferência de Paz" e porque "Portugal está longe do teatro da guerra".
O tema também não merece destaque no universo editorial francês, o que levou o historiador Manuel do Nascimento a publicar dois livros sobre o tema, "A Batalha de La Lys" e "Primeira Guerra Mundial: Os soldados portugueses das trincheiras da Flandres e a mão-de-obra portuguesa a pedido do Estado francês".
"Quando apresentei o primeiro livro à editora disseram-me que os franceses desconheciam o tema. Sempre que vou a palestras, todos os franceses ficam de boca aberta porque desconhecem a participação portuguesa", afirmou Manuel do Nascimento que tem agendadas conferências sobre a primeira guerra mundial a 18 e 23 de março em Viroflay e Marly-le-Roi, nos arredores de Paris.
Celebra-se esta quinta-feira, 2 de fevereiro, o centenário do desembarque da primeira brigada do Corpo Expedicionário Português no porto francês de Brest, na sequência da publicação no Diário do Governo, a 17 de janeiro de 1917, do decreto n.º 2938 que mandava proceder à concentração das tropas lusas para participar na primeira guerra mundial, ao lado dos aliados.
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