Mais de 80% de Portugal continental encontrava-se em setembro em seca severa, segundo o Instituto Português do Mar e da Atmosfera, que o caracterizou como mês “extremamente quente”. Neste período, o total de precipitação acumulado foi de 621,8 milímetros (70% do normal), sendo o 9.º valor mais baixo desde 1931.
A comunidade de pescadores da Póvoa de Santa Iria, concelho de Vila Franca de Xira (distrito de Lisboa) reconhece que esta situação climatérica “anómala” afeta a pesca no Tejo. Ainda assim, aponta o dedo à poluição do rio como o principal fator para a crise na atividade piscatória da região. Este é também o motivo de uma manifestação que o movimento Protejo organiza no sábado em Lisboa.
“A pesca no Tejo foi afetada em mais de 70%, 80%. É derivado da seca, mas também da poluição. Se formos ver, em todo lado se vê peixe morto. Até dá vontade de chorar de ver o Tejo assim”, diz à Lusa Jorge Sousa, que se dedica à arte da pesca há mais de quatro décadas na zona da Póvoa de Santa Iria.
Sem rodeios, o pescador queixa-se de que “no Tejo já não há nada que se pesque” e admite que “está cada vez mais difícil viver da pesca”. “Este ano como foi um ano muito seco, meto 50/50 [poluição e seca], mas nos outros anos é 70/30”, ressalva.
"Eu chegava a apanhar 800 quilos de corvina e hoje já não se apanha"
Junto a Jorge Sousa está Alfredo Vicente, um pescador de 68 anos que nasceu a bordo de uma bateira e diz conhecer “os segredos do Tejo” como ninguém. “Já não há aqui o que havia antigamente. Eu chegava a apanhar 800 quilos de corvina e hoje já não se apanha. Apanhava linguados, robalos e camarão. No Tejo há de tudo, mas tem é de ser estimado”, alerta, apontando o dedo às construções novas e às Estações de Tratamento de Águas Residuais (ETAR) que se foram instalando na região.
“Fizeram-se ETAR e o peixe desapareceu. Eu cheguei a apanhar baldes com sete, oito quilos aqui deste esgoto da Póvoa e hoje nem uma fataça se apanha. Eu não sei o que é que eles metem lá nas ETAR, mas o peixe desapareceu todo”, queixa-se.
As críticas são partilhadas pelo amigo e também pescador João Letra, de 70 anos, que também culpa as ETAR e as fábricas da destruição da pesca no Tejo. “Antigamente havia aqui na margem criação de peixe de toda a espécie. Era robalos, tainha, linguados, camarão, camarão negro, que deixou de existir. A poluição era lançada diretamente ao Tejo e fazia comida para os peixes. As ETAR agora tiram a comida. O tratamento que lhes dão não é bom para os peixes. Têm químicos”, queixa-se.
Já o pescador António José vê nos efeitos da seca uma “oportunidade para denunciar” os problemas de poluição que afetam o Tejo e que fizeram “desaparecer quase totalmente” peixes como a enguia, que antes “existia com fartura”. “Costuma dizer-se que Deus escreve direito por linhas tortas. A seca pode servir para denunciar a olho nu a poluição, que é brutal, sobretudo a montante do Tejo. Agora com a seca esses efeitos são mais visíveis”, sublinha, referindo que “a procura de peixe é muito superior à oferta”.
Enquanto descansam e recuperam forças para daqui a umas horas voltarem ao rio, os pescadores fitam os olhos no Tejo e nas poucas embarcações que ainda lá resistem, desejando que consigam sobreviver continuando a fazer aquilo que mais gostam e lhe dá prazer.
“Isto está mesmo duro. Eu vivo da pesca, tenho um filho com 40 anos, uma filha com 45 anos, que vende peixe no mercado de Vila Franca de Xira, e não querem ser pescadores porque já não há peixe e o gasóleo que iriam gastar não compensa”, afirma, com um ar cansado e abatido, Alfredo Vicente.
A manifestação que o Protejo – Movimento pelo Tejo organiza no sábado na capital decorre a partir das 15:00 entre o Cais do Sodré e o Terreiro do Paço, visando apelar ao Governo para agir com eficácia e determinação na contenção dos agentes poluidores.
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