Trinta anos após a morte do primeiro Presidente de Moçambique, Samora Machel, num desastre aéreo, as causas continuam por esclarecer, apesar de as autoridades moçambicanas manterem que foi um atentado executado pelo ex-regime do "apartheid".
Logo após a queda do Tupolev 134, de fabrico russo, em 19 de outubro de 1986, na localidade sul-africana de Mbuzini, os governos de Moçambique, país de registo da aeronave, África do Sul, local da queda, e da União Soviética constituíram uma comissão de inquérito para apurar as causas do desastre.
Divergências em relação aos procedimentos da investigação terão levado à sua interrupção, mas Moçambique e União Soviética apontaram o Governo do "apartheid" como responsável pela queda do aparelho e a África do Sul imputou por sua vez o desastre a um cúmulo de erros da tripulação russa.
Maputo e Moscovo basearam as suas conclusões na alegada existência de um rádio-farol falso que terá sido colocado na véspera do acidente em Mbuzini pelos serviços de segurança sul-africanos, para desviar o avião do Aeroporto Internacional de Maputo.
Por sua vez, os dirigentes sul-africanos da época argumentavam que as conversas mantidas pelos elementos da tripulação gravadas pelas caixas negras reconduzem à existência de falhas dos pilotos.
Na altura, Moçambique e o Governo sul-africano, dirigido pelo regime de minoria branca do "apartheid", viviam num ambiente de permanente hostilidade, com Maputo a acusar Pretória de apoiar a guerrilha da Renamo (Resistência Nacional Moçambicana), atualmente o maior partido da oposição moçambicana.
As autoridades sul-africanas de então acusavam, por seu lado, Maputo de albergar militantes do Congresso Nacional Africano (ANC), que lutava contra a política de discriminação na África do Sul, e que é agora partido no poder neste país.
Após a queda do "apartheid", os sucessivos governos do ANC e da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) prometeram várias vezes reabrir as investigações para apurar as causas da queda do avião, mas até agora não se conhece nenhum desenvolvimento em relação a essas iniciativas, muito menos qualquer conclusão.
Além do seu papel na libertação de Moçambique do colonialismo português, a determinação no apoio à luta pela independência do Zimbabué, ao ANC e à Fretilin (Frente Revolucionária de Timor Leste Independente) projetou Machel como um ícone da luta contra a opressão no mundo.
Samora Machel perdeu a vida aos 52 anos, numa altura em que se aproximava do ocidente e dava sinais de distanciamento do marxismo-leninismo, que o seu partido, Frelimo, havia abraçado em 1977.
A escassez do apoio dos aliados do bloco comunista, devido ao declínio económico dos países que compunham este grupo, e a derrocada da economia moçambicana, na sequência da devastadora guerra civil e das calamidades naturais que na altura grassavam o país levaram Samora Machel a iniciar contatos com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM).
Os discursos ácidos contra a corrupção, nepotismo, clientelismo e o laxismo, as reprimendas em público contra camaradas do seu próprio partido e o aparente desapego aos bens materiais granjearam-no uma grande admiração no seio das classes sociais mais pobres em Moçambique.
Mas o seu tempo na Presidência da República foi marcado por decisões polémicas como os desterros de supostos improdutivos para campos de reeducação, a aplicação da pena de morte com recursos a fuzilamentos e a manutenção da pena de castigos corporais, uma prática muito repudiada pelos moçambicanos durante o regime colonial português.
Um revolucionário, imprevisível e extrovertido
Quando chegou à Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) em 1963, aos 30 anos, com um curso de enfermagem, poucos se atreveriam a augurar a Samora Machel uma ascensão fulgurante na sua hierarquia.
Quem o conheceu antes de abraçar a causa nacionalista, diz que Machel, filho de camponeses da província de Gaza, sul de Moçambique, demonstrou sempre dotes de liderança e rasgos de carisma.
"Recordo-me de um homem muito energético, só a entrada dele naquela camarata [de praticantes de enfermagem], quando vinha de onde vinha, assobiava e toda a gente sabia, despertava toda a gente, sabia-se que estava a entrar Samora", conta à Lusa Joaquim Chissano, que conheceu Machel quando era estudante liceal e que veio a tornar-se amigo, ministro dos Negócios Estrangeiros e sucessor do político na Presidência da República de Moçambique.
Recusou o curso de medicina, para assumir tarefas na guerrilha. Impôs-se como líder no primeiro grupo de guerrilheiros da Frelimo a ser treinado na Argélia, em 1963, e assumiu o comando do primeiro centro de preparação político-militar da frente, na Tanzânia, em 1964.
A informalidade e a aversão à burocracia, como narra Chissano, - durante a luta tratavam-se por "irmão"-, fizeram com que Machel resistisse, no princípio, à decisão da direção da Frelimo de que ele assumisse o cargo de chefe do Departamento de Defesa e Segurança, após o assassínio do responsável desta área, Filipe Samuel Magaia.
Machel mostrou os atributos de estratega militar, expandindo a guerra contra o colonialismo português, do norte para o centro e com o sul à espreita.
O pouco apego à solenidade e à vida de gabinete fez com que o primeiro chefe de Estado moçambicano começasse por negar a indicação para presidente da Frelimo, quando Eduardo Mondlane foi assassinado, a 3 de fevereiro de 1969, por uma bomba disfarçada num livro, em Dar-es-Salam.
Já na liderança máxima da frente, a perspicácia militar de Samora Machel foi decisiva para contrariar a operação "Nó Górdio" que o general português Kaúlza de Arriaga gizou com o intento de aniquilar a Frelimo.
A operação fracassou e Machel emergiu como um líder militar e político incontestável, afastando sem piedade as dissidências internas.
A indicação pela Frelimo de Samora Machel para Presidente moçambicano, em 1975, foi a consagração de um dirigente que firmou créditos subindo a pulso na hierarquia do movimento de libertação.
Quase sempre de camuflagem militar e apaixonado por discursos demorados à moda de Fidel Castro, muitas vezes utilizados para anunciar purgas internas, assumiu-se de forma direta admirador do marxismo-leninismo, dirigindo o partido na adesão formal a esta doutrina em 1977.
Internacionalista para uns, aventureiro para outros, enfrentou os poderosos vizinhos da Rodésia do Sul, atual Zimbabué, e do regime do "apartheid" na África do Sul, albergando e prestando apoio militar aos movimentos de oposição destes países.
A hostilidade declarada aos regimes racistas expôs Moçambique a ferozes campanhas de retaliação, que incluíram o patrocínio à Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), atual principal partido da oposição, que moveu uma guerrilha de 16 anos, apenas terminada em 1992, seis anos após a morte de Machel num desastre aéreo na África do Sul.
Recusou negociar a paz com "os bandidos armados da Renamo", mas almoçou com os dirigentes racistas sul-africanos nas margens do rio Incomáti, por ocasião de um acordo que impunha o afastamento de Pretória da guerrilha moçambicana e de Maputo do Congresso Nacional Africano (ANC), da África do Sul.
Frustrado com a falta de apoio dos aliados tradicionais do bloco comunista, já a soçobrarem a décadas de falhanço de políticas, Samora Machel não hesitou em iniciar a aproximação aos principais símbolos do "imperialismo" que tanto diabolizou, encontrando-se com o então Presidente norte-americano, Ronald Reagan, na Casa Branca, em plena guerra fria, e ordenando o seu governo o início de contactos com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.
Encurralado pelo descalabro económico, encetou a revisão dos seus conceitos económicos, declarando que não fazia sentido o Estado vender agulhas, no que sinalizou como um passo para a abertura do sistema.
Com poses de "celebridade" nos comícios e conversas de ouvido em ouvido com membros do público, para várias organizações internacionais e algumas correntes internas, a Presidência de Samora Machel foi marcada por abusos dos direitos humanos, como os desterros em massa durante a "operação-produção", a humilhação pública de "colaboradores da PIDE" e por uma mão dura no combate a práticas considerada antirrevolucionárias, que levou a condenações a fuzilamentos dos que ele e o seu regime qualificavam como "inimigos do povo".
Revolucionário destemido e pragmático para muitos admiradores, ditador instável para os críticos, 30 anos após a sua morte, "Samora vive" em muitos moçambicanos, que o têm como "o Pai da Nação" e "Homem do Povo", como se pode ler nas janelas de muitos "chapas", transportes públicos privados usados pela maioria pobre das cidades moçambicanas.
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