A corrupção tem um custo estimado de 18,2 mil milhões de euros/ano para Portugal (o orçamento da Saúde para 2021 não chega a 13 mil milhões). Os números constam de um relatório apresentado pelo grupo parlamentar europeu Os Verdes/Aliança Livre Europeia no final de 2018 e correspondem a perto de 8% do PIB português de então.
Em 2019, a Procuradoria-Geral da República registou 2.155 novos inquéritos por crimes de corrupção e afins - tráfico de influência, apropriação ilegítima de bens públicos, administração danosa, peculato, participação económica em negócio e abuso de poder -, sensivelmente o mesmo número do ano anterior. E foram ainda registados 204 novos inquéritos para investigação do crime de branqueamento (387 em 2018). Números de 2020 ainda não há.
O que se sabe é que Portugal está, a par da Coreia do Sul, em 33.º lugar no Índice de Percepção da Corrupção da organização não governamental Transparência Internacional, que comporta uma lista de 180 países (61 pontos numa escala de zero a 100).
No início da semana passada o governo publicou a Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024, que agora será discutida na Assembleia da República, e na sexta-feira o país ficou a conhecer os crimes pelos quais o ex-primeiro-ministro José Sócrates será julgado no âmbito da Operação Marquês. Esta quinta-feira, o Parlamento aprovou, com os votos favoráveis do PS, a abstenção do PSD e do Chega e os votos contra dos restantes partidos, a 17.ª alteração ao Código dos Contratos Públicos em dez anos, mesmo depois dos alertas do Tribunal de Contas e da Inspeção-Geral de Finanças para o aumento do risco de más práticas.
Foi sobre estes e outros assuntos que o SAPO24 conversou com Susana Coroado, presidente da Transparência e Integridade Portugal, uma organização que tem como missão contribuir para uma sociedade mais justa e uma democracia com mais qualidade, que acredita só ser possível com mais acesso à informação, maior transparência nos processos de decisão e uma regulação mais eficaz para reforçar a prevenção e o combate à corrupção.
Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, foi fazer um estágio na Embaixada de Portugal em Telavive, Israel, e acabou por ficar a trabalhar dois anos no país. Seguiu-se um mestrado em Direito Internacional na Universidade de Londres - "comecei no dia em que o Lehman Brothers faliu" -, onde estudou sobretudo Direitos Humanos e Direito Humanitário, e o regresso a Portugal no pico da crise de 2009. Se em termos profissionais foi complicado, "um impacto negativo enorme", a queda a pique da libra possibilitou uma vida "confortável" numa das cidades mais caras do mundo.
Depois de passar por diversas organizações, entre elas o Observatório de Tráfico de Seres Humanos, em 2011 iniciou um trabalho de investigação para aquilo que era na altura a Transparência e Integridade, "uma organização quase só no papel". Gostou de tudo, acreditou que o seu futuro continuaria por ali, e candidatou-se a um doutoramento no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Terminou há um ano e também falámos sobre isso. Diz que tem uma visão "cínica" da corrupção. Afinal, trata-se sempre de escolher entre aquilo que alguém tem a perder e a ganhar.
Há ainda pouco tempo a procuradora Cândida Almeida afirmava que Portugal não é um país corrupto. Concorda?
As generalizações nunca são boas porque colocam as coisas de tal forma que a responsabilidade se dilui. A procuradora Cândida Almeida tinha uma visão muito penal da corrupção, achava que era só o ilícito criminal corrupção e ponto final. Quando falamos de corrupção, falamos de todos os ilícitos criminais que lhe estão relacionados - a criminalidade conexa -, mas também de todos os comportamentos que podem acelerar ou aumentar as probabilidades de corrupção. O conflito de interesses por si só não é corrupção, mas pode aumentar significativamente os riscos de corrupção.
"Há pelo menos dez anos que o poder político não faz nada para combater a corrupção"
Vamos então começar pelo princípio. Como define corrupção?
Corrupção é usar o poder confiado, normalmente o poder público, para daí retirar ganhos pessoais, para si ou para terceiros.
Uma cunha já é corrupção?
Uma cunha já pode ser um abuso desse poder confiado. Num processo de recrutamento, por exemplo, a pessoa que tem a cunha não está a concorrer em pé de igualdade com os restantes candidatos, que vão ficar prejudicados porque há uma pessoa que tem uma vantagem que não é curricular.
Portugal está em 33.º lugar no Índice de Perceção da Corrupção da Transparência Internacional. O que diz isto sobre os nossos decisores políticos?
O facto de termos descido e de termos tido a pontuação mais baixa de sempre dos últimos dez anos, antes disso não fazíamos parte do índice, significa que há pelo menos dez anos que o poder político não faz nada para combater a corrupção. Faz vários anúncios, várias proclamações, mas o que acontece é que a montanha pariu um rato.
A justiça que temos é compatível com o século XXI ou está desatualizada? Falamos em inteligência artificial...
... Mas as declarações patrimoniais dos políticos continuam a ser em papel e a Comissão Nacional de Eleições continua sem ser informatizada. Somos o país do Web Summit, mas há estas bizarrias, temos uma justiça antiquada e de bolha, a funcionar em circuito fechado e sem conseguir comunicar com os cidadãos e servir a sociedade. Pela forma como se tratam alguns temas, parece que somos o único estado de direito do mundo, o resto é república das bananas. É uma justiça garantística, mas que só protege quem tem meios económicos, e esse não é o nosso conceito de justiça.
O governo aprovou agora a Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024. Houve outra antes desta, também deste executivo, e uma anterior, do governo Sócrates.
E já tínhamos tido outras antes, nos anos 90.
"A Entidade das Contas e Financiamentos Políticos limita-se a fazer a vistoria formal, coisas mais contabilísticas, quando muitas vezes a questão é o que está por trás, não aquilo que os partidos declaram"
Em que resultaram todos estes planos, qual o seu impacto?
Essa é uma das críticas que fazemos a esta última estratégia: sob a capa de a corrupção ser um fenómeno muito difícil de estudar e de avaliar, não é feita qualquer investigação nem são apresentados estudos. Teria sido extremamente importante tentar perceber o que correu bem e o que correu mal, em que fase correu mal e por que motivo, se por uma lei mal feita, se pela sua implementação, se por falta de conhecimento das instituições, se por falta de recursos. Sem uma avaliação vai ser difícil corrigir erros e melhorar. Porque também há esta questão: fazem-se muitas coisas para mostrar trabalho, mas na prática tem-se muito poucos resultados porque o foi feito está desajustado ou não é aplicável.
Leu este plano? Qual a sua opinião sobre a estratégia de combate à corrupção do governo?
A Transparência e Integridade bateu-se por uma estratégia nacional contra a corrupção e lançou uma petição pública com este propósito. No dia em que fomos entregá-la à Assembleia da República o primeiro-ministro fez o anúncio de que iria traçar uma estratégia. Sobre o documento, penso que a proposta tem algumas novidades em relação à anterior; prevê sanções pecuniárias a quem viole períodos de nojo, por exemplo. Aplaudo a ideia, como também aplaudo a ideia de uma avaliação à Entidade das Contas e Financiamentos Políticos. Em tudo o resto não trouxe grandes novidades, continua a revelar ausência de medidas contra a corrupção política, o financiamento político. Não há propostas para clarificar leis, não fala na contração pública e não tem objetivos mensuráveis.
No documento que apresenta o governo começa pela importância das escolas no combate à corrupção. Concorda?
É preciso distinguir o que é corrupção no sentido concreto e legal daquilo que se entende por corrupção de forma mais social, onde podem entrar as condutas que não são moralmente ou eticamente aceites na sociedade. Há aqui uma questão de formação cívica. E insistimos nisso, falta formação cívica. E isto é diferente de falar sobre corrupção nas escolas. Era preferível criarmos cidadãos que têm consciência dos seus direitos e de como os fazer valer. Cidadãos que saibam, por exemplo, como funciona o sistema político e como funciona o sistema legislativo. Vejo muitas vezes, nas conversas que tenho, que como não se conhecem bem os direitos, aceita-se a corrupção, mesmo que de forma indignada, sem fazer nada para a impedir, sobretudo nas relações com o Estado. É preciso ensinar bem como funciona o sistema político, ensinar bem que as pessoas têm direitos, que podem reclamar, que podem pedir mais informação.
Há escolas onde miúdos de 13 ou 14 anos fazem coisas mirabolantes para ganhar eleições, como oferecer bens ou serviços.
Já ouvi histórias de eleições para associações de estudantes no ensino secundário em que as juventudes partidárias estão imensamente envolvidas. Até pode ser uma forma de estimular a participação, mas é preciso alguma cautela. Já ouvi contar que há agências de viagens que patrocinam viagens de finalistas para alguns alunos conseguirem ser os escolhidos e depois a escola fazer um determinado caminho. Não é só uma questão de educação, é uma questão de as instituições terem mecanismos para prevenir, detetar e punir a corrupção ou outros comportamentos pouco éticos. Quando nos focamos muito na educação, ou na moral individual, estamos a descartar as responsabilidades institucionais.
"A corrupção é um crime de oportunidade. O que temos de fazer é diminuir as oportunidades"
Há aqui uma dimensão legal e uma dimensão ética. É fundamental diferenciá-las?
A corrupção é um comportamento condenável e criminal, mas qualquer um de nós - e há estudos sobre isso - pode ver-se envolvido numa situação de corrupção, porque as coisas nunca são preto no branco. Para uma pequena e média empresa que vai instalar-se em mercados estrangeiros mais difíceis, chamemos-lhe assim, é complicado fazer negócio sem pagar subornos. Ou, imaginemos, um funcionário público que está numa situação pessoal complicada, com problemas financeiros por causa de uma doença que exige um tratamento caro, pode ver uma solução em alguém que lhe oferece dinheiro.
É sempre uma escolha...
Não estou a desculpar, queremos instituições públicas que funcionem, o que estou a dizer é que cabe às instituições ter mecanismos que previnam estes comportamentos. A corrupção é um crime de oportunidade. O que temos de fazer é diminuir as oportunidades para que esse crime aconteça e aumentar aquilo que a pessoa tem a perder mais do que tem a ganhar. Porque quando surge uma oportunidade, corromper ou ser corrompido, inevitavelmente faz-se um cálculo: o que tenho a ganhar com isto e o que tenho a perder com isto. Se as probabilidades de ser apanhado forem baixas e se, uma vez apanhado, houver poucas probabilidades de isso ter consequências, o risco vale a pena.
"Não nos vale de nada estar a saltar etapas e a falar de uma plataforma para os fundos europeus quando estamos a legalizar uma quantidade de situações que contribuem para desperdiçar esses fundos"
A transparência é essencial no combate à corrupção, mas é suficiente?
A transparência tem duas vantagens: por um lado ajuda a detetar irregularidades, por outro pode ajudar a dissuadir determinados comportamentos, precisamente porque são mais facilmente detetáveis. Mas penso que em Portugal a discussão está demasiado focada na transparência e legitima-se tudo através da transparência. A transparência é fundamental, mas é preciso outros instrumentos. Não adianta legalizar comportamentos que podem constituir corrupção ou facilitar condutas pouco éticas, isso pode ser transparente, mas e depois? Estou a pensar, por exemplo, na reforma do Código dos Contratos Públicos, em que as entidades adjudicantes não precisam em alguns casos de fazer consultas ao mercado, pura e simplesmente escolhem uma entidade e contratam. Vai ser tudo publicado na plataforma dos contratos públicos, por isso, dizem, será tudo transparente. Entretanto, descobrimos que o preço pago por determinado bem ou serviço é três ou quatro vezes superior à média do mercado, ou seja, houve um benefício óbvio para a empresa contratada. Ficamos com a informação, mas o que fazemos com ela? Não podemos recuperar o dinheiro porque foi tudo legal.
O governo admite que há "um véu de opacidade" entre a lei e o cidadão, mas na quinta-feira aprovou essas e outras alterações ao Código dos Contratos Públicos que aumentam os riscos de corrupção. É coerente?
É isso, o discurso público está muito nesta coisa de "é preciso transparência, é preciso transparência", mas isso não chega. Somos a favor de uma plataforma para os fundos europeus, mas não basta. Não nos vale de nada estar a saltar etapas e a falar de uma plataforma para os fundos europeus quando estamos a legalizar uma quantidade de situações que contribuem para desperdiçar esses fundos, seja ou não através da corrupção. O que todos queremos é que os fundos sejam bem utilizados e, obviamente, isso de ser bem utilizado é uma coisa vaga. Muitas vezes esses fundos podem ser desviados pela corrupção, mas até pode nem ser isso, podemos estar a pagar valores acima do mercado ou estar a gastar em bens e serviços que, afinal, não se justificam.
Teme que haja fraude com os fundos europeus, a tão esperada bazuca?
Temo mais que com a facilitação dos ajustes diretos possa haver financiamento político eleitoral ilícito nas próximas autárquicas. Falamos no governo, mas esquecemos as câmaras (autarquias locais), que não têm supervisão e são uma área importante dos dinheiros públicos. Sobre o dinheiro que vem da Europa, quando defendemos um portal dos fundos europeus ou da contratação pública não é para ter apenas o contrato final, é para ter todos os passos tomados, uma pegada legislativa, uma pegada de despesa e da necessidade dessa despesa.
Além do portal, o que é imperativo para minimizar estes constrangimentos?
As coisas têm de ser muito concretas, não podem ser vagas. Combater a corrupção na contratação pública é diferente de combater a corrupção na política ou combater a corrupção no setor da saúde. A informatização foi muito importante para diminuir a pequena corrupção na administração pública. O facto de termos passado a apresentar a declaração de IRS online diminuiu a probabilidade de um funcionário público aceitar despesas que não poderiam ser aceites, por exemplo. Ora, isto já não funciona para a corrupção política, que não dá para informatizar. Na política o grande problema é, claramente, o conflito de interesses. E esses estão extremamente mal regulados e aumentam exponencialmente os riscos de corrupção. Depois, há a falta de sanções imediatas.
"Há coisas que não se resolvem com leis, resolvem-se com ética política"
Alguns partidos propuseram recentemente que passasse a ser obrigatório os políticos declararem se pertencem a organizações como a maçonaria ou a Opus Dei. Concorda?
Não gosto muito de leis que são extremamente focadas numa situação particular, penso que fazer uma lei completamente direcionada para a maçonaria ou para a Opus Dei, que ainda por cima são organizações diferentes - uma rede de pessoas que defendem interesses difusos, outra ligada à Igreja Católica (e até este conceito de organizações secretas ou discretas é legalmente difícil). A solução é pedir que se declare todas as organizações a que pertencem em geral - se isso implicar dizer que pertence a uma associação de vizinhos, paciência. Um dos grandes problemas da legislação é que muitas leis são feitas à medida, para o bem e para o mal. Pode ser legislação feita à medida para determinadas empresas escaparem aos impostos ou outra qualquer, como já tivemos um Conselho de Ministros a aprovar num fim de semana uma lei geral para o setor bancário, mas que tinha como único objetivo desblindar os estatutos do BCP para resolver uma questão entre acionistas, ou a aprovação do regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, onde há alíneas que são claramente para impedir uma situação como a de Vítor Gaspar, que passou de ministro das Finanças para o FMI [Fundo Monetário Internacional].
"O problema é que o Código de Conduta do Governo está mal feito, não prevê sanções e o governo ignora-o olimpicamente"
Ainda assim, Mário Centeno saiu das Finanças para o Banco de Portugal, houve o chamado "familygate" [nomeação de familiares para cargos públicos]...
Acham que tudo se resolve com leis. O que aconteceu no caso das famílias foi que, ao criar-se uma lei, legitimou-se tudo aquilo que tinha causado o problema. Era uma questão política e, curiosamente, a lei passou a regular a única situação que o governo resolveu politicamente, que foi a de um secretário de Estado [do Ambiente, Carlos Martins] que nomeou um primo [Armindo dos Santos Alves] para adjunto do seu gabinete, o que resultou na demissão do primo adjunto. Não foi preciso lei nenhuma para resolver isto. Mas até é difícil legislar sobre estas situações: vamos proibir toda a gente que tem relações familiares do exercício de funções públicas? É óbvio que a situação de que falamos, em que havia perto de 50 ligações familiares, era abusiva. Mas há coisas que não se resolvem com leis, resolvem-se com ética política.
O governo elaborou, entretanto, um código de conduta.
O código existe, alguém conseguiu perceber que nem tudo se resolve com leis e que pode haver regras. Todas as ordens profissionais têm códigos deontológicos e podem abrir processos disciplinares que correm de forma independente de eventuais processos ou investigações judiciais e que até podem ocorrer sem investigações judiciais. O problema na política é que não se quer fazer esta diferença, que é óbvia para todos. Mas chegou uma altura em que o governo percebeu que tinha de criar um código de conduta para resolver estas situações.
E resolveu?
O problema é que o Código de Conduta do Governo está mal feito, não prevê sanções e o governo ignora-o olimpicamente.
"Estas regras possibilitam não só o aumento substancial da despesa, como há riscos sérios de financiamento político ilícito"
A Assembleia da República tem um papel fundamental na fiscalização da ação do governo. Todos os partidos, com exceção do PS, que apresentou a proposta, criticaram as alterações ao Código dos Contratos Públicos, mas elas foram aprovadas. Cumpre essa tarefa?
Aqui entra a questão dos incentivos e do cálculo entre o que têm a perder e a ganhar. Apesar de haver lutas políticas no Parlamento, o facto é que os partidos não se limitam à Assembleia da República. Estas leis, especificamente no que toca à reforma dos contratos públicos, têm um grande impacto para as autarquias, mais ainda em ano de eleições. A Assembleia da República recebeu quase 20 pareceres, dos quais apenas dois ou três eram favoráveis à lei, sendo que um deles era da Associação Nacional de Municípios Portugueses. Estas regras possibilitam não só o aumento substancial da despesa, até de uma forma que pode ajudar quem já está no poder a mostrar obra feita, como há riscos sérios de financiamento político ilícito. Não que dizer que aconteça, mas traz a oportunidade. Se olharmos para quem no Parlamento aprovou a proposta, temos o PS. Mas o PSD, que é o segundo partido com mais poder autárquico, absteve-se.
Muitas vezes os cidadãos sentem-se impotentes perante determinadas situações - e o documento com a estratégia de combate à corrupção admite isso. No início desta conversa falou da necessidade de as pessoas fazerem valer os seus direitos. Como?
Obviamente não podemos andar por aí à caça de corruptos, mas podemos votar. Não dou indicações de voto, mas há 23 partidos políticos. Se olharmos para a Assembleia da República, vemos que desde as duas últimas eleições legislativas há mais partidos com assento parlamentar. Não precisamos de nos focar num partido, há imensa escolha. Este facto também já aumenta a sensação de que um voto num partido pequeno não é um voto desperdiçado, eles vão fazendo o seu caminho e podem lá chegar. Isso já torna o equilíbrio de poderes diferente, na Assembleia da República e na forma como os partidos tradicionais começam a ter de repensar e melhorar algumas posturas.
Essa é uma forma de fazer valer os seus direitos de quatro em quatro ou de cinco em cinco anos. É a única?
Uma coisa muito pouco comum em Portugal, também porque o sistema eleitoral é diferente, mas que é muito comum no Reino Unido ou nos Estados Unidos, é escrever ao seu deputado. Isso pode fazer-se diretamente no site da Assembleia da República, mas também se pode enviar uma carta. Fazer isto, dizer "o senhor é o deputado do meu círculo eleitoral" ou "deputado do meu partido", "votei em si por isto e exijo explicações", pode ter resultados. Mas qualquer cidadão pode fazer pedidos de informação a qualquer instituição pública, que tem obrigação de responder em dez dias. Se a informação for negada, ainda se pode recorrer à CADA [Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos], cujos pareceres não são vinculativos, mas são normalmente aceites.
A Transparência e Integridade já teve de recorrer à CADA?
Já aconteceu e já aconteceu os pareceres não serem cumpridos e irmos para tribunal. Sei que não é uma coisa que esteja acessível a todos os cidadãos, mas temos de escolher bem as nossas batalhas. É preciso que cada cidadão perceba os recursos que tem, mas até chegar aí [tribunal] só se gasta tempo. Os cidadãos podem impugnar concursos, por exemplo. Sei que muitas vezes têm medo de fazer denúncias por causa de eventuais represálias, por isso é tão importante a proteção de denunciantes. A proteção de denunciantes não serve apenas para proteger pessoas que cometem crimes informáticos, serve também para proteger os cidadãos nestas situações.
"Se não fossem as diretivas europeias, com certeza estaríamos pior do que estamos em termos de transparência e integridade dos processos de contratação pública"
Que tipo de denúncias recebe a Transparência e Integridade?
Quando recebemos denúncias tentamos encaminhar as pessoas para as instituições certas, temos um programa que faz isso, mas não tenho acesso a essa informação, é um programa que tenta proteger as pessoas, que podem estar em situação de risco ou ter documentação delicada. Penso que haverá casos de corrupção, mas, sobretudo, casos de sensação de injustiça. E casos em que, pelo facto de as pessoas desconhecerem o funcionamento do sistema judicial, pode haver uma decisão que não lhes é favorável e, como desconfiam do processo, acham que é corrupção. Depois há muitas denúncias relacionadas com favorecimentos, mas, sobretudo, uma sensação muito grande de injustiça.
O que descobriu, que a tenha surpreendido, quando trabalhou no Observatório de Tráfico de Seres Humanos?
Era uma realidade da qual eu não era, de facto, minimamente conhecedora. Há sempre aquelas histórias graves de trabalhadores portugueses que vão para fora, para a apanha da fruta, por exemplo, e são completamente explorados - temo que aquilo que aconteceu durante muito tempo com trabalhadores portugueses no estrangeiro esteja a acontecer agora em Portugal com trabalhadores estrangeiros -, ou a questão do tráfico de mulheres para prostituição. Mas estas são as coisas mais óbvias. Depois descobri, por exemplo, que os trabalhadores dos navios de mercadorias, que circulam pelo mundo inteiro, têm autênticos escravos, um ambiente terrível, num espaço limitado, com drogas, álcool, muita violência física e até sexual, de onde é muito difícil pedir ajuda, porque estão ali fechados.
Uma prisão flutuante...
Exatamente, onde é extremamente difícil até aplicar a lei - tal como acontece na criminalidade económico-financeira globalizada -, porque um navio está inscrito numa jurisdição, o trabalhador é de outra, quem está a explorar o navio é de outra, provavelmente contratou uma agência de outro país e não se consegue aplicar a lei porque ela está dispersa por vários locais. Esse foi um dos casos que me chocou mais, precisamente porque é pouco falado.
"Apresenta-se a proposta já no limite da data da transposição e as coisas passam porque são urgentes"
A União Europeia tem ou devia ter um papel fundamental nos casos de que temos vindo a falar e no combate à corrupção?
Na minha opinião sim, mas acho que depende do nível legislativo e político em que esteja cada país. Há vários estudos que mostram que os países que estão economicamente melhor e têm mais qualidade da democracia têm uma visão mais negativa da União Europeia e daquilo que a União Europeia consegue fazer. Países mais pobres e com mais problemas de corrupção e menor qualidade democrática confiam mais na União Europeia, que, no fundo, é quem os pode salvar. Até porque a União Europeia estabelece alguns standards e faz imposições em relação a isso. Por exemplo, se não fossem as diretivas europeias, com certeza estaríamos pior do que estamos em termos de transparência e integridade dos processos de contratação pública. Também vamos ter uma lei de proteção de denunciantes claramente porque houve uma legislação europeia que o obriga. Penso que a União Europeia tem um poder muito forte de nos obrigar a adotar determinadas medidas, e sem a União Europeia estaríamos pior nesse aspeto.
"No caso da proteção de denunciantes a diretiva é boa, mas redutora. Podíamos fazer uma discussão mais alargada sobre o que se quer considerar denunciante em Portugal"
Falo também na repercussão em países terceiros e no seu relacionamento com a União Europeia.
Há o chamado efeito Bruxelas, a regulação que é criada na União Europeia tem muitas vezes um efeito de cascata na regulação noutras partes do mundo. Por exemplo, as regras em relação ao fabrico automóvel, questões relacionadas com segurança, diversos parâmetros. Não é obrigatória noutros países, mas o facto de as fábricas automóveis, que ainda por cima estão espalhadas por várias locais, se adaptarem às regras europeias, faz com que todas as outras sigam o exemplo, não só para não perderem competitividade, como por uma questão de eficiência das fábricas. Se a União Europeia fizer isso em combinação com os Estados Unidos, então é perfeito. Muita da legislação internacional relacionada com a corrupção vem do combate à corrupção e ao branqueamento de capitais pelos Estados Unidos. A Suíça passou a ser menos opaca depois do 11 de Setembro por pressão dos EUA, por causa das contas e do financiamento de grupos de terroristas.
Portugal está muitas vezes atrasado na transposição de diretivas europeias para o direito nacional. Há embaraços por isto?
Temo que seja o que vai acontecer com a Diretiva Europeia de Proteção de Denunciantes. O problema é que temos a sensação de que a lei já vem pronta, não precisa de ser discutida, basta traduzi-la e, eventualmente, colocar uns alçapões que nos permitam algumas facilidades. Depois apresenta-se a proposta já no limite da data da transposição e as coisas passam porque são urgentes. Penso que no caso da proteção de denunciantes a diretiva é boa, mas redutora, no sentido em que só fala de denunciantes dentro das organizações. Aqui podíamos fazer uma discussão mais alargada sobre o que se quer considerar denunciante em Portugal.
Pode concretizar, para se entender melhor a importância do tema?
Um exemplo: há uns tempos uns miúdos de uma escola tiraram e publicaram fotografias a um prato de comida servido na cantina com larvas. Sofreram um processo disciplinar. A proteção de denunciantes serve para isto, não é só para casos de corrupção. Agora, imaginemos que outros miúdos se deparam com a mesma situação e têm medo de a expor com receio de um processo disciplinar, mas falam com os seus pais. Os pais são denunciantes dentro da organização? Se isto não estiver bem definido, se calhar não são. Este tipo de discussão já podia estar a acontecer na Assembleia da República. Neste momento podíamos estar a ouvir denunciantes - e já tivemos alguns denunciantes famosos, pelos casos ou pela figura, como o advogado Ricardo Sá Fernandes, que fez uma denuncia e acabou com um processo de difamação -, saber qual foi a sua experiência, as consequências a nível laboral, social e familiar, para perceber o impacto que isto tem na vida do denunciante. Era importante para fazermos uma lei melhor (ou chegarmos à conclusão que a lei está bem assim). Mas estamos em abril, a diretiva tem de ser transposta até meados de dezembro, e o processo nem sequer está aberto na Assembleia da República.
Sei que o Observatório da Justiça olha para a figura da delação premiada com bastante apreensão, por testemunhas que, anos depois, dão o dito por não dito, como aconteceu com Lula da Silva no Brasil, ou o caso Casa Pia, em Portugal. Qual a sua posição nesta matéria?
Nunca defendemos a delação premiada, continuar-se a insistir no termo é inquinar o debate. Aquilo de que se fala em Portugal é na proteção de denunciantes, que tem a ver com pessoas que não estão envolvidas no crime têm informações - não precisam de ser premiadas com nada, podem é precisar de proteção -, e no estatuto do arrependido, a clemência, aplicada a pessoas ou organizações que estão envolvidas num ato de corrupção e que se arrependem ou decidem denunciar. Nesse caso, pode acontecer que, pelo facto de ajudarem as autoridades a descobrir alguma coisa que de outra forma ficaria encoberta, não sejam punidos pelos crimes que cometeram ou a pena lhes seja reduzida. Mas aqui trata-se de assegurar que esses mecanismos são aplicados, uma vez que no momento em que é feita a denúncia não sabe se vai ter beneficio ou não, o juiz é que decide na altura do julgamento. Sem essa garantia mínima, se calhar a opção é não denunciar. No Brasil as testemunhas eram pagas. Mas não basta chegar à polícia e denunciar, a denúncia tem de ser comprovada. Além disso, em Portugal há focos de controlo, não é um juiz, um elemento da engrenagem, que pode ter a sua agenda e ser parcial, que vai condicionar o processo. Há a investigação, do Ministério Público ou da Polícia Judiciária, sob a supervisão de um juiz, há a instrução, há a Primeira Instância, a Relação e o Supremo Tribunal. Se tiver havido parcialidade, há mecanismos para descobrir e desmontar isso. Para mim o combate à corrupção só faz sentido dentro do estado de direito e com todas as garantias - e desde que não haja abuso dessas garantias, o que às vezes também acontece.
O juiz Ivo Rosa mandou investigar o sorteio que deu ao juiz Carlos Alexandre o Processo Marquês.
É verdade, por isso é que existem recursos, tanto por parte do Ministério Público, acusação, como por parte da defesa.
"A lei do Financiamento dos Partidos Políticos tem imensos perigos"
Quais os setores mais permeáveis à corrupção em Portugal? Lembro-me de Manuel Costa Braz, que foi presidente da Alta Autoridade Contra a Corrupção, dizer que inicialmente o foco estava no futebol, depois foi-se espalhando para outras atividades.
Tudo o que implique muito dinheiro envolve muitos riscos de corrupção. Portanto, necessariamente a contratação pública, as grandes obras públicas e tudo o que seja legislativo e regulatório, emissão de licenças, porque tem um impacto muito grande na economia. Daí a importância de ter uma boa gestão de conflitos de interesses no governo e no Parlamento. Há muitas leis aprovadas que têm um impacto direto em determinados grupos, alterar pequenos pormenores pode ser fundamental para as empresas ganharem mais ou menos, pagarem mais ou menos impostos. Porque há uma técnica comum, fazer a lei de um lado e miná-la do outro: o combate ao branqueamento de capitais, Zona Franca da Madeira e vistos gold.
"Os partidos já perceberam que ou começam a ser mais transparentes e a ter debates mais sérios ou vão perder a confiança dos cidadãos e correm o risco de perder votos para os partidos populistas e autocráticos"
Falou diversas vezes no financiamento dos partidos políticos. A lei que temos é suficiente?
A lei do Financiamento dos Partidos Políticos tem imensos perigos - a lei e a sua aplicação. Por exemplo, a lei não é clara em relação ao que são eventos para angariação de fundos, onde pode caber muita coisa. Também não é clara o suficiente em relação aos pedidos de empréstimos de partidos a bancos; até que ponto é possível negociar um empréstimo a juros quase zero? Isto pode ser uma forma de financiamento encapotado. Ou quando é que um banco dá por perdido um crédito de um partido político? Se perdoa uma dívida, pode estar a fazer financiamento encapotado. Por outro lado, os candidatos a título individual podem contribuir com o que quiserem para a sua própria campanha, o que significa que há risco de receberem dinheiro de quem quiserem e dizer que é seu. Quanto à aplicação da lei, temos uma Entidade das Contas e Financiamentos Políticos que não tem meios, portanto, limita-se a fazer a vistoria formal, coisas mais contabilísticas, quando muitas vezes a questão é o que está por trás, não aquilo que os partidos declaram.
A questão é que a justiça trabalha sobre as leis que a Assembleia da República aprova. Ser legislador em causa própria tem destes imbróglios?
Aqui, como se diz, são precisos dois para dançar o tango. Por um lado temos de estar mais atentos, mais em cima - a última reforma, aprovada perto Natal e à porta fechada [punha fim ao limite de angariação de fundos e garantia a devolução total de IVA], felizmente, foi descoberta. Penso que, em parte, os partidos já perceberam que ou começam a ser mais transparentes e a ter debates mais sérios sobre estas questões ou vão perder a confiança dos cidadãos e começar a perder votos para os partidos populistas e autocráticos - está a demorar, mas acho que vai acontecer.
No caso das contas dos partidos a supervisão cabe ao Tribunal Constitucional, e qual é o papel do Tribunal de Contas no combate à corrupção?
O Tribunal de Contas faz um bom trabalho, tem tido uma intervenção positiva e tem travado vários abusos, e também ajuda a dissuadir algumas irregularidades. Agora, há aqui a questão de muitas vezes as auditorias serem formais, não se vai avaliar o antes, mas isso tem a ver com a lei. A forma como o presidente do Tribunal de Contas é escolhido pode levantar dúvidas, como aconteceu em outubro [Vítor Caldeira não foi reconduzido à frente do TC]. O problema das nomeações é que o debate fica sempre inquinado pela fulanização. A pessoa pode ter um currículo fantástico, pode ser idónea, mas se o processo de nomeação continua desta forma, se calhar, um dia, a que vier a seguir vai deixar de ser. Se os processos fossem mais transparentes, mais claros e mais independentes, os nomeados teriam até mais legitimidade e escusavam de passar por esta censura pública, se fazem ou não favores, se foram ou não nomeados por serem do partido.
As entidades supervisoras ou reguladoras são, de facto, independentes ou estão capturadas pelo poder político?
Bom, o presidente do Tribunal de Contas teve independência para fazer as críticas que achou pertinentes, mas o que aconteceu foi que mudou-se o presidente. A interferência do governo é que fragilizou o presidente que lá está agora [José Tavares]. Mas a minha tese de doutoramento foi exatamente sobre os riscos de captura das entidades reguladoras em Portugal. A conclusão é que é complicada, mas, basicamente, o que se pode retirar é que as portas giratórias entre o regulador, a política e o setor regulado são inacreditáveis. Temos muito esse triângulo no setor financeiro.
Sobre a transparência, o lobbying, de que agora se fala tanto por causa das farmacêuticas, ainda não está regulado em Portugal. Há anos que se fala no assunto, mas a legislação não avança.
Deixe-me dizer que os contratos entre as farmacêuticas e a Comissão Europeia foram extremamente mal feitos. Em Portugal os contratos têm de estar publicados no site da contratação pública. Como é que a União Europeia, que até incentiva este tipo de práticas, vai fazer contratos que não podem ser mostrados? Estamos a falar de dinheiro público. Isto é absurdo. Quanto ao lobbying, estão três propostas no Parlamento, por isso, tenho esperança que seja regulado em breve. É importante para saber quem anda a tentar influenciar quem, que reuniões são tidas na Assembleia da República, mas também com o governo e outros organismos públicos. Durante muito tempo os lobbies mais poderosos eram das farmacêuticas e dos bancos, mas neste momento são as grandes tecnológicas que estão a gastar somas inimagináveis, tanto em Bruxelas como em Washington. Voltamos ao efeito Bruxelas: como a União Europeia está muito determinada na questão da regulação das grandes tecnológicas, tanto em questões de concorrência e fiscais como na proteção de dados, essa relação tem impactos noutros países.
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