“Como os regimes democráticos veem, tendencialmente, com bons olhos esses tipos de espectáculos desportivos, acredito que esteja dado o mote para que o futebol possa ser mais instrumentalizado. Temos vários exemplos, desde logo a organização do Euro2004. Há uma utilização do Estado, com vista à promoção da identidade nacional, dos valores patrióticos e da autoestima coletiva”, disse à agência Lusa o historiador Ricardo Serrado.
O reconhecimento do papel social do desporto como fator de democratização e o gradual acesso às atividades desportivas foram concretizados com a queda do Estado Novo, cujo regime ditatorial “nem teve particular interferência” na atuação autónoma dos clubes, em função da “grande importância social” assumida pelo futebol a partir da década de 1920.
“Não quero com isto dizer que não tenha existido uma natural ligação entre poder político e futebol assim que o Benfica foi bicampeão europeu [em 1960/61 e 1961/62], o Sporting ganhou a Taça das Taças [em 1963/64] e a seleção nacional ficou na terceira posição do Mundial1966. Agora, não vejo isso necessariamente como uma instrumentalização, mas como o reconhecimento e protocolar pelo Estado de feitos. Não é que não tivesse havido pontuais colagens e promoções, mas pareceram-me muito residuais e individuais”, frisou.
Antes da Revolução dos Cravos, a então Direção-Geral de Educação Física, Desporto e Saúde Escolar (DGEFDSE) monitorizava politicamente as organizações daquele setor e funcionava como autoridade disciplinar, levando à “asfixia do desporto de massas” com a definição de um “cenário amador, ao serviço da nação e do cultivo do corpo e da mente”.
“O profissionalismo foi proibido pelo Estado Novo entre 1943 e 1960, pelo que o desporto como espectáculo acabava por não ser promovido. A prática do futebol chegou até a ser proibida nas ruas e era olhada com alguma desconfiança pelo regime, tal como todas as modalidades que pudessem ter comportamentos imorais e subvertidos, porque levantava facilmente celeumas, era viril dentro e fora dos relvados e reunia aspetos que não iam ao encontro da moralidade que o Estado Novo queria para o país”, traçou Ricardo Serrado.
Essa vontade estatal seria enfraquecida pelas práticas dos clubes, que gozavam de uma “liberdade considerável” para saciar as suas necessidades, com a DGEFDSE a abrir um precedente em 1960, ao viabilizar apenas o profissionalismo no futebol, boxe e ciclismo.
“O futebol é um corpo vivo e, como move muita gente e dinheiro, desenvolve-se de forma muito autónoma, independentemente do regime que estiver por trás. O Estado Novo quis sempre estrangular o desporto profissional e de espetáculo, mas nunca o conseguiu, até porque, muitas vezes, as coisas têm vida própria. Como era um regime autoritário, e não totalitário, havia alguma liberdade e um controlo mais superficial do que efetivo”, ilustrou.
A popularidade do futebol cresceu na década de 1960 com a projeção além-fronteiras da seleção nacional e dos rivais lisboetas Sporting e Benfica, que esteve em cinco finais da então Taça dos Campeões Europeus e viu Eusébio a arrebatar a Bola de Ouro em 1965.
“Quando o [ex-selecionador nacional] Otto Glória chegou, implementou uma nova visão e outros modos de treino e de alimentação, conseguindo fazer uma revolução no Benfica e no futebol português. Essa abertura de forma encapotada ao profissionalismo lançou um contexto para que a modalidade tivesse naquela década o sucesso que se sabe”, referiu.
Autor das obras “O Estado Novo e o Futebol” e “O Jogo de Salazar - A política e o futebol no Estado Novo", Ricardo Serrado assegura estar na posse de provas documentais que tornam em “mito e falácia” a trilogia ‘Fátima, Futebol e Fado’, frequentemente utilizada na gíria popular para enquadrar um país subjugado durante 41 anos ininterruptos à ditadura.
António de Oliveira Salazar, chefe do Governo entre 1932 e 1968, “era ignorante na matéria e desprezava o futebol da mesma forma como desgostava do fado”, mesmo que a afirmação de Eusébio - oriundo de Moçambique - e os êxitos futebolísticos constituíssem uma oportunidade para melhorar a imagem de uma nação em dificuldades perante os conflitos coloniais em territórios africanos e uma progressiva oposição interna.
“Os meios de esquerda e de extrema-esquerda cultivam muito essa ideia de Portugal ser um país de futebol e de que o futebol havia sido promovido pelo Estado Novo e utilizado para entreter, desvirtuar e adormecer as massas, mas não há fundamento nisso. Eusébio nem sequer foi considerado como o melhor futebolista do mundo em 1966 pelos poderes públicos que Portugal tinha, numa altura em que toda a imprensa internacional o estava a considerar como melhor face a Pelé. Segundo o Estado Novo, cujas algumas ideias eram expressas no Diário da Manhã, era imoral considerar Eusébio melhor que Pelé”, lembrou.
Ricardo Tavares Ferreira, da agência Lusa
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