A subida ao Monte Everest, participar no Tour de France ou atravessar o Canal da Mancha já entrou, decerto, no imaginário de quem procura testar os limites da resistência humana personificados nos obstáculos que cada um destes desafios coloca. Na mesma linha poderemos nadar 3,8 quilómetros, pedalar 180 km e terminar com uma maratona que são mais 42 Km. Três provas juntas numa só competição que se resumem numa palavra: Ironman. Traduzindo por miúdos o Ultra Triatlo de que aqui falamos é uma competição para Homens de Ferro na qual se mistura muita capacidade de sofrimento e de superação. Até aqui tudo bem. Coisas simples. Agora elevemos o patamar a níveis mais próximos de uma realidade que muitos atletas conhecem, mas só uns poucos eleitos participam. O EPIC 5 Challenge multiplica por cinco os limites da resistência humana e faz do triatlo versão dura uma brincadeira para crianças.

O total é igual a 1,129 quilómetros em 240 horas. Imagine, acordar, nadar, pedalar e correr durante muitas horas e dormir poucas.

A prova que se disputa duas vezes por ano no Havai, desde 2010, realiza-se em cinco dias consecutivos, ou seja, super-homens e supermulheres fazem cinco triatlos de longa distância em cinco dias, nas cinco principais ilhas havaianas (Kauai, Oahu, Molokai, Maui e Kona). Fazemos as contas para explicar. Multiplicamos por 5 cada uma das provas diárias de 3,8 km, 180 e 42. Somamos tudo. Dá 19 km a nadar, 900 a pedalar e 210 a correr. O total é igual a 1,129 quilómetros em 240 horas. Imagine, acordar, nadar, pedalar e correr durante muitas horas e dormir poucas. No dia seguinte, e no outro, e mais outro, alvorada e repetição num verdadeiro teste ao limite dos limites da mente, do corpo e do espírito, levando-o a degraus inimagináveis.

Para 2017, de 5 a 9 de maio, a mítica prova que nasceu da cabeça de um atleta com limitações físicas (Jason Lester) e de Richard Roll conta, para já, pela primeira vez, com um português, José Massuça. Aos 45 anos, é o primeiro atleta nacional e, até agora único, a inscrever o nome nesta lista de super-heróis onde só se entra por curriculum. “Temos que ter um Ironman abaixo das 11 horas”, explica recordando as “menos de 10 horas” feitas, este ano, no campeonato da Europa, em Potsdam, o qual terminou em 7º lugar. Mas há algo mais para que este “convite” tenha surgido e que a organização valoriza: “ter feito um Ultraman (10 km a nadar, 420 km de bicicleta e duas maratonas para terminar)”, prova que completou este ano no País de Gales ao longo de três dias. E que terminou em 5º lugar, recorda.

Dois segundos que mudaram uma vida

Quase todas histórias começam com um “Era uma vez...”. A história de José Massuça arranca com “e tudo começou” há 3 anos quando decidiu não ser original e, tal como outros, partiu para a primeira maratona aos 42 anos. “A ideia de 1 km por ano em que cada quilómetro representaria uma etapa da vida. Fui até ao km 15 e a partir daí esquece...(risos)”. Mas a verdadeira culpa disto tudo foram 2 segundos. “Habituado a umas corridas de 10 km, fui para uma maratona com o foco de fazer 3h30. Fiz 3 horas 30 minutos 2 segundos. Se não fossem esses dois segundos tinha concluído que afinal era fácil. Mas não. Voltei para bater esses dois segundos”. Prova superada.

Para trás ficou uma vida laboral em Angola em que o contacto com a família se ia fazendo, durante sete anos seguidos, em algumas pontes aéreas e muita conversa no Skype. “Estive pouco com os miúdos em pequeno, entendi que era altura de reagrupar”. E reagrupou a correr, a nadar e a pedalar.

Deixei, por agora, a minha carreira e abracei esta causa. Apostar nesta componente, corredor de causas

Em três anos, completou 10 maratonas, dois Ironman e um Ultraman. Para este ano tinha traçado o objetivo de ser o único português a fazer dois Ultraman num ano, mas surgiu o EPIC5, “algo que não posso descartar...a ver vamos”. A Taça do Mundo de Ultraman é também um desejo em cima da mesa.

Sobre a sua participação nas ilhas havaianas, Massuça assume que “é um sonho” e deixa no ar o desejo que este fosse o despoletar de uma nova ação profissional assente na empresa que, entretanto, criou (Take Action). “Deixei, por agora, a minha carreira e abracei esta causa. Apostar nesta componente, corredor de causas. De estar aqui alguém que pode falar sobre a resiliência, motivação, capacidade de ultrapassar obstáculos, usado para o bem comum e com todo o altruísmo que possa ter”.

À pergunta o que o faz elevar-se ao limite dos limites na ida ao EPIC5, responde. “É saber interiormente se consigo viver durante uma semana com as dificuldades de atletas e pessoas especiais, de replicar o que é a sua vida normal, de ir de casa para o emprego, andar de transportes, conduzir, ir almoçar, de saber que eles têm limitações e que todos os dias são Ironman”, algo que, por acaso, está por detrás do espírito desta longa prova. Chegado a este ponto recorda a “corrida TSF” que fez com o judoca paralímpico Miguel Vieira, invisual. “Foi uma experiência inolvidável, eu era os olhos dele, mas no último quilómetro ele quis ir sozinho e eu deixei que ele me puxasse”.

As flexões dos filhos no topo de uma montanha galesa

Testar o corpo e a mente desta forma, para quem percebe e está por dentro, não se perde tempo a explicar as razões. Agora aqueles que estão de fora, a quem se explica, muitos provavelmente não compreenderão. Esta é uma máxima que alguns destes “maluquinhos” do triatlo de longa distância têm na ponta da língua. Adiante.

Comecei isto para que eles percebam que é necessário trabalhar muito para se ter sucesso. Nada cai do céu

“Em Gales, numa montanha com subida de 17% inclinação, a meio, encostei-me aos railes. Não aguentava mais. A minha nutricionista (Filipa Vicente) deu-me um empurrão, seguiu (no carro de apoio) e eu fui a parar de 10 em 10 metros. Quando chego ao topo, quando chego lá ao topo, estão todos a fazer flexões. Ver os meus filhos, a fazer flexões na montanha, gritando: tu sofres, nós sofremos! Foi o cálice da vida”, emociona-se, o que num Homem de Ferro ganha uma certa força.

Os filhos estão na génese desta aventura de causas. “Comecei isto para que eles percebam que é necessário trabalhar muito para se ter sucesso. Nada cai do céu”. As primeiras provas terminavam com um sofrimento de mais de uma hora do que se verifica hoje. “Quando comecei o meu filho vinha a correr ao meu lado a gritar tu és o meu exemplo...sou teu ídolo (é ao contrário)”, ri-se.

5 ultra triatlos, mais de 1000 km, em 5 dias. É de Homem (de Ferro)
5 ultra triatlos, mais de 1000 km, em 5 dias. É de Homem (de Ferro)

créditos: José Massuça | Madremedia

A fé e a fezada que se misturam com o fantasma bom e o fantasma mau

“Sou católico. Rezo todos os dias e várias vezes”, diz. Para José Massuça rezar é falar com “quem está e com quem não está, falar com aqueles que estão vivos, mas não estão ali naquele momento, não é só rezar porque quem já não está”, esclarece.

Não tem rituais. “Não me benzo quando vou para uma prova. Isso é superstição, não é religião”, explica brincando com a diferença entre fé e fezada. “Nós somos aquilo que são os nossos relacionamentos com a vida. O que aprendes com este e aquele, de bom e de mau”. Falando de fé, recorda ainda o padre Ismael Teixeira (Igreja do Rato, Lisboa), o padre de “Ferro”, o primeiro dentro da hierarquia completar um Ironman.

Explica a quem não sabe que um Ultra Triatlo tem três fases: coragem (nadar); sacrifico (bicicleta); e o foco (corrida) período descendente do esforço

Nestas provas de sacrifício e de muito espírito, os Espíritos dão também um ar de sua graça, em especial na prova de Ultraman. “Os fantasmas bons apareceram em Gales a elogiar o verde do campo. O mau apareceu no lago, um lago vermelho, de água gelada, a 13º, onde entras com licra, colete, fato, capacete, silicone nas orelhas, luvas e passados uns minutos na água já não sentes os braços, nada, em que o tal fantasma disse que não era sitio para eu estar”. Fez ouvidos de mercador e nadou em frente.

Explica a quem não sabe que um Ultra Triatlo tem três fases: coragem (nadar); sacrfício (bicicleta); e o foco (corrida) período descendente do esforço, assim gosta de pensar. É nessa última etapa que “tens que começar a limpar os fantasmas que te acompanharam e alegraram. No fim estas só tu, agora é a minha vez”, exclama.

De um lado, a imperial e o prato de caracóis, do outro a nutricionista e a família

Muitos Ironman tem máquinas e marcas por detrás. José Massuça assume a versão low-cost de uma equipa que engloba a nutricionista, a mulher e os dois filhos. “Nos Ultraman quem dá assistência é a tua equipa que no meu caso é constituída pela família”. Há bom e mau, duas faces da mesma cara. “A família ver-te sofrer é muito complicado. O sofrimento em prova replica por quatro, pode ajudar a dividir, mas também é uma lente de aumentar. Sofres por ti e por eles”, sublinha.

Sou baixo, menos de 1,70m, difícil de ver no pelotão, não sou aquela figura de poster de bombeiro de calendário, sou normal

Após as provas que fez de Homem de Ferro nada de criopreservação como o Ronaldo, exemplifica. Recorreu a “uma simples máquina de estimulação muscular” enquanto a equipa o obrigou a comer massa, dando-lhe “comida à boca”, relata. Tem cuidado com a alimentação, mas não ao nível de um verdadeiro atleta, assume. Come o que a família come, massas, evita hidratos à noite, faz a gestão, não há prato especial, tudo foi adaptado num meio-termo entre ele e a família. “Comemos caracóis, bebo o meu copo de vinho e no final de cada prova não prescindo de uma boa imperial, fresquinha...é o balsamo dos céus”, levanta a mão como se estivesse a brindar.

O dia-a-dia de José Massuça na preparação para o Havai passa por treinar 4 horas durante todos os dias da semana. Não prescinde do descanso de 7 a 8 horas. Olha para muitos dos seus companheiros de ferro e sabe que os tais profissionais são como “cavalos de corrida”. Ao invés, sente-se com um português típico. “Sou baixo, menos de 1,70m, difícil de ver no pelotão, não sou aquela figura de poster de bombeiro de calendário, sou normal”, solta risadas.

O que o alimenta mesmo são as vivências que vai tendo nas suas corridas, nas ajudas que presta a quem necessita, nas provas de pelotão mais popular. “Estar numa prova de miúdos no Monsanto, ver uma criança a chorar a gritar que não consegue, ver outros a voltarem para trás, irem buscá-lo para terminarem juntos” ou “a ter a minha filha a nadar em águas abertas, pela primeira vez, vencendo um medo (fantasma) que tinha, só para estar nos primeiros metros ao meu lado” enche-lhe a alma.

Para ir ao EPIC5 sabe que difícil não será andar por lá. É antes lá chegar com a quantia que necessita para inscrição: 7500 dólares que podem vir de um ou vários patrocinadores que se queiram associar porque, até à data, a família tem sido o mais fiel patrocinador. Quer tê-los a seu lado. Nos poucos tempos de descanso “feito nas salas do aeroporto ou na embarcação”. De ilha para ilha, entre o tempo que medeia o final da prova e a partida e durante a viagem. Quando regressar, concluída a prova, um dos objetivos que gostaria de trazer “é a distribuição de uma quantia por 5 instituições de integração social de pessoas com deficiência, a escolher por sorteio”.

A conversa vai longa. Não podia ser de outra forma. Não se resume tanto quilómetro, tanta preparação, tamanha resiliência em três linhas. Para o fim recorda Forrester Gump, personagem do filme (1994) com o mesmo nome interpretado por Tom Hanks. “Corria porque lhe apetecia e parou quando não apetecia”. José Massuça gostava que a preparação para este evento desse uma projeção na tela. Com muitos protagonistas e linhas de ação. “Junta a ligação à Fé, a pessoas especiais, a lutas contra a adversidade, o dia-a-dia, o querer alcançar aquele objetivo, a necessidade de combater as adversidades e no final, um final feliz que era sinal que tinha terminado a prova”, relata. “A minha ideia era fazer episódios e ir correr à grande escola de atletismo que é no Quénia, vê-los no mato, com sapatos que alguém ofereceu, com a roupa da escola...”. Fica a ideia que pode passar à escrita somente.

Para o fim, deixa um recado que sossega. “Tenho um limite, mas espero não o encontrar (risos). A única obrigatoriedade que tenho para comigo e para com a família é nunca encostar aos red lines. Não andar numa corrida sem saber onde é que estou. Já fiz algumas parvoíces. Podes fazer picos... mas depois abrandas”. Promessa feita.

Só mais nota: José Massuça, Homem de Ferro que já foi forcado, está inscrito para a prova em maio, mas pode ir em setembro por causa dos exames de escola da filha. Não vá ele necessitar de ter o estímulo de vê-la surfar as famosas ondas havaianas. Não perca os próximos capítulos desta louca aventura que se quer feliz.