Ainda há quem se lembre das chamadas Guerras da Jugoslávia, entre 1991 e 2001, o maior conflito europeu desde a Segunda Guerra Mundial – se não em fatalidades, certamente em violência e barbaridades, desde limpezas étnicas ao bombardeamento de cidades indefesas.
As guerras propriamente ditas foram seis: a “dos dez dias” (1991), a da independência da Croácia (1991-95), da Bósnia (1992-95), do Kosovo (1998-99), a insurreição do Vale de Presevo (1999-2001) e a insurreição da Macedónia (2001). Estas guerras foram, na realidade, um conflito contínuo e permanente, que só terminou com a intervenção da NATO, sob a égide das Nações Unidas. Seguiu-se-lhe o julgamento de alguns dos principais responsáveis pelo Tribunal Internacional de Haia. Os mais “famosos”, o Presidente da Sérvia, Slobodan Milošević e o General bósnio-sérvio, Radovan Karadžić foram condenados a prisão perpétua.
Os conflitos étnicos nesta região, desde 1796 até 2008, são demasiado intrincados e convolutos para serem descritos em poucos parágrafos, mas quem quiser saber e tiver tempo, pode consultá-los em pormenor aqui e aqui.
A guerra dos anos 90 tem a sua origem na morte do Marechal Tito, em 1980. O croata Josip Broz Tito, líder das milícias comunistas anti-nazis durante a Segunda Guerra Mundial, pode considerar-se um génio político: não só conseguiu unir as várias nações da região (sérvios, croatas, bósnios, albaneses, montenegrinos; cristãos, ortodoxos e muçulmanos) num só país, como fez frente a Estaline, conservando uma relativa independência nas relações com o implacável ditador russo. A obra de Tito foi unir aquela miscelânea de etnias e religiões, que se odiavam há séculos, equilibrando interesses incompatíveis, como o recurso simultâneo à chibata e à cenoura, enquanto mantinha os soviéticos à distância.
Falecido o Marechal, a União Soviética ainda conseguiu manter a região unida, mas quando o Muro de Berlim e o comunismo caíram, em 1989, já nada segurava as divisões e os ódios centenários.
Enquanto a Europa progredia para se tornar uma União (formalmente com o Tratado de Maastricht, 1993) e a Rússia vivia a sua difícil adaptação à democracia, as nações balcânicas seguiam os seus percursos próprios, uns mais democráticos, outros nem tanto, e tentavam conquistar território umas às outras, invocando fronteiras de outros tempos. Tinham sido províncias forçadas de impérios – o turco, o austro-húngaro – ocupadas pelos alemães e tuteladas pelos russos; queriam a sua identidade e independência.
A Croácia, a Bulgária, a Eslovénia e a República Checa acabaram por entrar para a União Europeia, integrando os seus valores democráticos (umas mais do que outras...) e recebendo subsídios substanciais. A Sérvia optou por outro caminho, alargando o seu território e influência. As forças armadas da ex-Jugoslávia foram expurgando os militares de todas as etnias, tornando-se de facto um exército sérvio.
Houve barbaridades de todos os lados, mas os sérvios tornaram-se nitidamente os maus da fita – os piores, com massacres de centenas de milhares de pessoas, violações de 50 mil mulheres e raparigas, e toda uma série de violências, com requintes de malvadez, que há muito não se pratica em território europeu.
A intervenção da NATO arrasou a Sérvia, destruindo-lhe as cidades e as forças armadas, obrigando estas a remeter-se à sua escala. Oficialmente, tudo terminou em 1995 com o Acordo de Dayton ou Protocolo de Paris. Segundo esse protocolo, formaram-se duas entidades nacionais: a Federação Bósnio-Croata ou Muçulmano-Croata, controlada por bósnios muçulmanos e bósnios-croatas, e a Sérvia, que se intitula República Srpska, que ficou reduzida às suas dimensões históricas, bastante mais pequenas do que as suas ambições. Formou-se um governo democrático e esperava-se que todos fossem felizes para sempre.
Agora avançamos vinte anos. Os ódios étnicos não se resolvem com tratados, nem a Sérvia aceitou verdadeiramente a derrota do seu sonho hegemónico de dominar a região. Há um novo homem forte, Milorad Dodik, sérvio-bósnio, que tem vindo a preparar-se nestes últimos quinze anos. No mês passado anunciou planos de retirar a República Srpska dos acordos de Paris, criar um sistema fiscal e uma força policial próprios.
Com o abandono da Europa, outros interesses entraram na região. A Rússia tem-se alinhado com os interesses sérvios. A Turquia e o Irão têm ajudado as populações muçulmanas.
A Croácia, membro da UE, deveria obedecer aos cânones europeus, porém também tem interferido nos outros territórios. Perante a atitude da Sérvia, existe o perigo de ressurgimento da região “autónoma” da Bósnia e Herzegovina, enquanto os bósnios muçulmanos estão dispostos a defender o seu território a todo o custo.
Armas não faltam; tanto a Rússia como a Turquia e o Irão, não hesitarão em fornecê-las.
A UE já tem muito com que se entreter, como bem sabemos; as eternas negociações pós-Brexit, as democracias iliberais e rebeldes da Polónia e da Hungria, o conflito entre a Bielorússia (Belarus) e a Polónia, a crise dos migrantes do Norte de África, a subida dos partidos nacionalistas, entre outros. Os Estados Unidos também têm as suas preocupações: a fragilidade da democracia interna, a ameaça russa à Ucrânia e a competição com a China, para não falar nos inúmeros conflitos locais onde querem permanecer, a proliferação de armas e claro, a pandemia.
A situação actual nos Balcãs aproxima-se rapidamente da situação de 1990. A sensação de déjà-vu é assustadora.
[Artigo corrigido às 23:42]
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