A ironia não podia ser maior. No dia em que a AD lança um cartaz sobre "corrupção e falta de ética", com a frase "Já não dá para continuar" a letras gordas (e as voltas que eles deram para evitar a palavra "chega"?), o país acorda com a notícia de buscas na Câmara Municipal do Funchal e na residência oficial de Miguel Albuquerque, presidente do Governo Regional da Madeira.
"Tenho o direito a não ser suspeito", disse em frente das câmaras de televisão, mas horas depois era constituído arguido por suspeitas de corrupção, prevaricação, abuso de poder e atentado contra o Estado de Direito, entre outros crimes, de acordo com o despacho do Ministério Público.
Querem lá ver que o Ministério Público deitou abaixo mais um governo e que ainda vamos ter eleições na Madeira também este ano?
"Não me vou demitir", esclareceu logo Miguel Albuquerque - mas o presidente da República já veio dizer que aceita novo governo e o PSD procura substituto.
Quando foi a vez de António Costa e da Operação Influencer não foi tão categórico: "É muito difícil manter um governo e um primeiro-ministro governar com esta suspeição e com esta envolvência. É quase impossível. Com um ministro constituído arguido [João Galamba] e com o próprio chefe de gabinete detido [Vítor Escária], para o primeiro-ministro tornava-se muito difícil continuar a governar".
Claro que, como diz o ditado, "ninguém vê o mal no seu olho, nem que seja do tamanho de um repolho".
É que além das suspeitas que recaem sobre si, um dos detidos na operação de quarta-feira é Pedro Calado, presidente da câmara do Funchal, vereador durante oito anos, vice-presidente em 2012 e 2013, e nos últimos quatro anos antes das eleições autárquicas vice-presidente do Governo Regional da Madeira, onde tinha o pelouro das Finanças.
Abro parêntesis para dizer que nem tudo é tão mau. Nesta operação que, curiosamente, não tem nome - deixo ao leitor o convite para apresentar sugestões -, estiveram envolvidos dois juízes de instrução criminal, seis magistrados do Ministério Público, seis elementos do Núcleo de Assessoria Técnica da Procuradoria-Geral da República e 270 inspectores da Polícia Judiciária, que viajaram de Lisboa para o Funchal na véspera, num Hércules C-130 e numa aeronave da Força Aérea Portuguesa. Afinal há meios.
Em maus lençóis ficou a AD e Luís Montenegro, que já estava debaixo de fogo por causa do inquérito que a Procuradoria-Geral da República abriu ao caso da moradia de Espinho. Em causa estão benefícios fiscais, mas também as relações com o empreiteiro e o processo de licenciamento na câmara local.
Mais uma vez, e mantendo a salvaguarda da presunção da inocência, o julgamento da justiça fica para os tribunais, mas todos têm o direito de fazer o julgamento moral. E, que diabo, PS ou PSD, é cada tiro, cada melro.
Depois, como fez António Costa primeiro e Pedro Nuno Santos agora, nada melhor do que atirar areia para os olhos do desgraçados dos eleitores, que estão metidos num sarilho, e sacar da manga um "Compromisso ético.doc", sem qualquer valor jurídico, segundo especialistas, onde são fixados critérios de seriedade e honestidade para aplicar a candidatos a deputados e a membros do governo. Como se estes não assumissem, na tomada de posse, um compromisso de honra perante o país e como se os valores surgissem por decreto.
No caso do PSD, disse Montenegro, os critérios são extensíveis "a quem quer que seja" no partido. Como se fosse uma medida fortíssima contra a corrupção, ficam excluídos das listas os cidadãos condenados em primeira instância, presos preventivamente ou pronunciados por crimes contra o Estado ou cometidos no exercício de funções públicas. Se forem indiciados, os futuros eleitos ficam obrigados a suspender o mandato. E os socialistas não exigem renúncia se estiverem em causa crimes puníveis com de pena de prisão até três anos, como é o caso do abuso de poder.
Se isto é fazer campanha no patamar da ética, parece-me "poucochinho". Sobretudo numa sociedade minada, onde os tentáculos da política chegam a todas as instituições, da Imprensa à Justiça, e onde reina a impunidade.
Ontem ao final do dia o país o país regressou ao passado com a Operação Marquês. Depois de o juiz de instrução Ivo Rosa ter pronunciado apenas 17 de 189 crimes, deixando meio Portugal boquiaberto, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu dar razão ao Ministério Público e seguem para julgamento mais de 100 crimes (22 dizem respeito a Sócrates, três de corrupção).
Tudo isto é possível, o não é possível é deixar de estranhar tão diversas interpretações da mesma e única lei. Cada cabeça (leia-se juiz) sua sentença deixa margem para mais considerações do que aquelas que seriam desejáveis numa democracia saudável.
Como não será saudável um reforma da Administração Pública a contra-relógio, como lhe chama o Expresso, feita por um primeiro-ministro em gestão. O que não acelerou, e está na gaveta da ministra da Justiça de Março de 2023, foi a proposta de alteração do Estatuto dos Magistrados Judiciais relativa às portas giratórias de juizes entre os tribunais e a política.
Voltando à AD, a falta de uma estratégia do PSD para o país ficou bem patente na Convenção de domingo - onde o CDS, naturalmente, parecia mais entusiasta do que o PSD -, e no convite de Montenegro a Pedro Santana Lopes, que foi o ponto alto do dia (a par de Cecília Meireles e Leonor Beleza), como se o presidente da câmara da Figueira da Foz nunca tivesse deixado o PSD, logo depois de concorrer à liderança do partido, para fazer o Aliança. Justificações? Ninguém pediu e ninguém deu.
O PS está no governo há oito anos e Pedro Nuno Santos, que foi ministro das Infraestruturas e da Habitação - apesar de não andar de comboio ou transportes públicos há demasiado tempo, como admitiu, nem ter encontrado uma solução para a falta de casas e residências para estudantes -, já disse que será um primeiro-ministro de continuidade. Os portugueses sabem, por isso, com o que contar. Mas, para ganhar as eleições, Montenegro terá de se esforçar mais.
A aritmética é simples: em 2022, o PS ganhou maioria absoluta com 2.301.887 votos. O PSD teve 1.539.189 votos, o CDS 89.113 votos e o PPM 260 votos (menos votos do que familiares Câmara Pereira).
Seria bom que os partidos do arco da governação tivessem alguma memória e que, quando vão para a rua em campanha, se lembrassem ao menos das leis que chumbaram e aprovaram na Assembleia da República ou que nem sequer levaram a votação. Falo daquelas mesmo importantes, a começar pela reforma do sistema eleitoral.
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