O que aconteceu no final do ano passado foi uma mudança telúrica no panorama político, mudança que já se adivinhava com o aparecimento dos partidos de contestação, ou de fora do sistema tradicional, o Podemos e Ciudadanos, mas que ainda não tinha sido medida em votos. O Podemos, ainda de fraldas, tinha um discurso de adolescente e impressionava tanto como um adulto; o Ciudadanos, mais discreto, também se dirigia aos velhos consagrados PP e PSOE, com o desplante do igual para igual.
O resultado das eleições acabou por não agradar a ninguém; os velhos consagrados não conseguiram manter a sua superioridade tida como certa – o PP ganhou em minoria e o PSOE perdeu eleitores – e os jovens não arrasaram o contador como sonhavam. O resultado pode ser comparado, só para efeitos de análise, ao português: o partido que ganha não tem votos para governar em maioiria e os que perderam não lhe querem dar o governo. Só que, no caso português, os que perderam conseguiram fazer um acordo parlamentar que tornou possível um deles governar. No caso espanhol, ninguém se entendeu.
Análises sobre as razões desta dislexia não faltam; há quem ponha as culpas nas ambições excessivas de Pedro Sánchez (PSOE), na arrogância de Pablo Iglésias (Podemos) ou na teimosia de Albert Rivera (Ciudadanos).
Entretanto Rajoy também estava interessado em se aliar a alguém, quem quer que fosse, para ter um governo estável, mas não se interessava em fazer quaisquer cedências, enquanto todos os outros se recusavam a considerar o PP como parceiro.
Posto isto, novas eleições em Junho, com resultados praticamente iguais. Quer dizer, uns subiram pouco e outros desceram minimamente, com o mesmo equilíbrio: PP 33,01%, PSOE 22,63%, Podemos 13,42% e Ciudadanos 13,06%. Ao Podemos ainda se pode juntar a tumultuada plataforma dos movimentos e partidos autonomistas (da Catalunha, dos bascos e outros), mas não passa dos 21,15% - muito bom em termos de afirmação de identidades anti-sistema, mas insuficiente para o dito sistema.
A história dos acordos e contra-acordos, promessas e traições, ditos e não ditos que se seguiram, daria um volume maior do que os mexericos do nosso Saraiva ou as elocubrações do nosso Lima. Pablo Iglesias propôs ao rei um governo de coligação de esquerda presidido por Sánchez e vice-presidido por ele próprio, mas Sánchez não quis. Rajoy, não tendo apoios, também não quis formar governo, ficando em gestão até hoje. Sánchez até aceitaria coligar-se com o PP, mas sem Rajoy. Depois PSOE e Ciudadanos concordaram numa coligação minoritária, que os outros todos recusaram. Até houve quem pensasse num centrão PP/PSOE/Ciudadanos, mas Sanchez queria a saída de Rajoy, o que levou o PP a recusar. Pressupuesto.
E nisto o tempo foi passando, para grande apoquentação de Filipe VI, rei desde 2014, que está a ter um começo de reinado bastante agitado, sem conseguir patrocinar uma composição governamental viável, o que certamente lhe daria peso junto dos espanhóis.
No domingo passado, nas eleições autónomas da Galiza e do País Basco, o PSOE somou mais duas derrotas ao fraco palmarés nacional dos últimos anos, com os piores resultados da sua história. Durante os procedimentos eleitorais Sánchez não apareceu, e no final enviou o número dois do partido para justificar a derrota. Veio a público numa conferência de imprensa na terça, e em vez de reconhecer o óbvio, acusou os seus correligionários de “desvio ideológico” a favor do Partido Popular. Para o PSOE, já farto da figura do seu líder, foi a gota de água. Esta quarta feira o Comité Executivo votou a demissão de Sánchez, nomeando uma gestão provisória até a um congresso extraordinário, a fazer já em Outubro. Dos 35 membros da Comissão Executiva, 17 demitiram-se ou renunciaram ao cargo e 18 continuam – o que tecnicamente não é suficiente para a demissão de Sánchez, mas moralmente devia chegar. Contudo, o homem não quis perder o lugar e defendeu um Congresso Extraordinário em novembro para consolidar a sua posição o que, segundo os analistas iria garantir outra derrota estrondosa do PSOE nas eleições do Natal.
Enquanto o PSOE se esboroava nesta teimosia de Sánchez, as disputas dentro do Podemos também têm chegado à comunicação social, retirando a Iglésias a aura com que entrou na vida política. Hoje, só os militantes do nosso BE ainda o vêem como um profeta; sucessivas gaffes protocolares (para não dizer de má educação) e uma evidente sede pelo poder volatilizaram as simpatias iniciais, que iam quase até ao centro.
Rajoy não convence ninguém para lá dos que sempre estiveram convencidos e Rivera, embora tenha mostrado alguma habilidade, sofre com a indefinição do Ciudadanos, que anda ideologicamente pelo centro-direita mas está disposto a aliar-se até com socialistas.
Mais umas eleições, é o que espera a Espanha. Se delas sairá um Governo, ninguém aposta. A situação parece trancada num impasse que nem a imprevisibilidade dos movimentos autonomistas consegue alterar.
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