Será que vão ser os Jack Dorsey (Twitter) ou os Mark Zuckerberg (Facebook) deste mundo quem decide o nosso destino? Por mais que desejemos livrar-nos do ódio permanente de um instigador de violência como é Donald Trump, é inaudito que seja o patrão de uma empresa económica, multinacional, cujo objetivo é o de lucro, a decidir quem pode ou não falar.
Neste caso, está em causa o presidente de uma democracia que colocou a liberdade de expressão em lugar de honra na Constituição que aprovou em 1989.
Quem está censurado é um presidente cessante e uma criatura que em quatro anos de mandato fez muito para não ser respeitado. Por maior que seja o efeito emocional, não importa.
Começa por parecer hipócrita que só cuidem de o banir quando ele quase já não existe e está a escassos dias de desaparecer para sempre de lugares de poder nos EUA. Trump passou todos os quatro anos de presidência a mentir e a envenenar. Se, porventura, as redes sociais se tivessem lembrado há mais tempo (continuaria a ser indevido) de o silenciar, talvez não tivessem sido criadas condições para que aqueles descerebrados rufias, encabeçados por uma criatura coberta por um gorro de peles com dois cornos, tivessem mergulhado tanto na realidade fantasiada a ponto de vandalizarem um lugar sagrado da política como é o Congresso dos Estados Unidos da América.
Em nenhum caso cabe ao dono do Twitter ou o do Facebook usar o poder absoluto de censurar. Fazê-lo é um abuso só possível porque continua a não haver a imprescindível regulação.
A falta de normas éticas e de controlo eficaz da sua aplicação leva a que o poder absoluto sobre meios de comunicação e de informação esteja na mão dos patrões das redes.
É inaceitável que possam ser eles, nesta matéria, a julgar o Bem e o Mal.
A expulsão, seja de Trump, seja de outro, ao não ter sido decidida por um organismo democrático, com poder legal para o fazer e em respeito de um código de ética, é intolerável.
O Twitter alega ter apagado Trump por ele não cumprir as regras da comunidade. Não pode ser o administrador do Twitter quem julga e decide.
É sempre de seguir o pensamento atribuído a Voltaire, na segunda metade do século XVIII: “não estou de acordo com o que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito a poderes dizê-lo”.
É facto que no tempo da II Grande Guerra, um outro filósofo, Karl Popper, teórico da sociedade aberta, ao ver como o nazifascismo destroçava as democracias, advertiu que “a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância”. Fica aqui um argumento a favor do corte da palavra a quem a usa para fomentar o ódio e a violência.
O Twitter escolheu a oportunidade tardia para o fazer (com Trump derrotado) porque há vazio legal nos países e na comunidade internacional.
É necessário que os políticos tratem de instalar uma autoridade legalmente constituída que, com base nos princípios constitucionais, possa tomar decisões extremas como essa de cortar o acesso de alguém a meios de comunicação. Importa que haja normas, democráticas, bem definidas e válidas para todas as circunstâncias. Para que não possa ser, conforme o momento, este fala e aquele não.
Sei que há muita gente que invoca a liberdade para defender a ausência de qualquer tipo de controlo na internet. Mas como poderemos aceitar que qualquer criatura possa abrir, por exemplo no Facebook, um perfil com o nome a fotografia de um de nós e publicar o que não tem nada a ver com o que pensamos, sem que tenhamos recursos para imediatamente anular esse perfil? Não podemos continuar nesta impotência.
A internet e todo o digital enriquece-nos, é um extraordinário recurso que passou a fazer parte da nossa vida. Mas cresceu tão depressa que ainda não acautelámos muitos dos efeitos perversos.
O sociólogo francês Gerald Bronner, autor de livros muito interessantes como La Démocracie des Crédules ou Apocalypse Cognitive analisa, em modo contínuo, conteúdos abertos nas redes sociais. Conclui o que é expectável: que as mensagens mais partilhadas são de indignação; que todos os dias cresce indignação coletiva.
Sabemos que não faltam motivos para indignação. Mas há abuso do envenenamento.
Através das redes sociais, muito ódio entra em nossa casa sem bater à porta. Esse ódio entra com muitas caras: a do terrorismo, a do racismo, a do ultanacionalismo, a da violência contra as mulheres.
A rede QAnon espalha na internet que está a liderar o combate contra uma rede satânica, pederasta e até canibal, formada por dirigentes do Partido Democrata nos EUA, por altos funcionários em Washington, por magnatas judaicos nos EUA e pelos patrões dos colossos tecnológicos. Este discurso é cultivado em redes sociais, tem milhões de seguidores e aderentes, ninguém tratou de o censurar e entre os invasores do Capitólio estava muita dessa gente.
Falta que os poderes políticos decidam instalar uma autoridade democrática para regulação, necessariamente segundo o princípio absoluto da liberdade de expressão, mas com normas específicas para exclusão do envenenamento conspirativo com ódio e violência, do que passa pelas duas grandes corporações digitais, o Facebook e a Google, mas também as outras.
Voltando, a fechar, à criatura que gerou este texto de opinião: Donald Trump, há uma semana, talvez ainda sonhasse que alguma loucura o mantivesse na Casa Branca. Imaginava que, pelo menos, poderia regressar em 2024. Em uma semana deixou de ter futuro político. O impulsivo deixou de ter meios para ser vingativo. É capaz de ter como próximo combate o de tentar safar-se à condenação judicial e prisão.
Mas há aqueles 74 milhões de americanos que votaram Trump, a imaginar que aquele presidente iria melhorar a vida deles. Um outro oportunista, mais inteligente, pode surgir também com o projeto de demolição da democracia. As redes sociais censuraram Trump mas continuam abertas a todo o ódio.
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