«Ciência» é um conjunto de conhecimentos que possibilita a evolução e o desenvolvimento.
Em Portugal, os investigadores científicos trabalham em vários tipos de instituições. Seja em laboratórios públicos ou privados, seja em unidades de investigação integradas em universidades e institutos, todos os dias estes trabalhadores desenvolvem a sua actividade. Desde o estudo de espécies agrícolas e animais em Portugal, ao estudo de fenómenos como epidemias, do tráfego às pontes, da astronomia às alterações climáticas, da conservação da memória às representações do cinema. Havendo pessoas dedicadas ao estudo dos problemas da sociedade e ao desenvolvimento de teses e experiências científicas podemos evoluir de uma forma mais sustentada, para melhorar a condição humana.
Acontece que, em Portugal, a precariedade na investigação continua a ser a marca d' água no Ensino Superior e na Ciência. De acordo com números de 2023 do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, 90% dos investigadores têm vínculos precários, não contando com os bolseiros de doutoramento.
Existe uma Carreira de Investigação Científica, mas a norma é que o investigador em Portugal não esteja a trabalhar ao abrigo dessa carreira. No caso dos docentes do Ensino Superior, a crescente precarização e o recurso à figura do docente convidado para dar resposta a necessidades permanentes das instituições, também é factor de preocupação. Mas, ainda assim, a norma é que os professores estejam contratados ao abrigo da carreira. Como os médicos e enfermeiros do Serviço Nacional de Saúde, como os trabalhadores da função pública.
Até 2017, a maior parte dos investigadores, para além de não estar contratada ao abrigo da sua carreira específica, não era sequer contratada. Estes investigadores eram bolseiros. Depois de terminada a bolsa de doutoramento, o que os esperava eram décadas de concursos a bolsas de pós-doc ou bolsas inseridas em projectos de investigação. Isto significa que a construção e alargamento do sistema científico e tecnológico nacional das últimas décadas foi feito com base no trabalho de bolseiros, generalizando-se e normalizando-se o recurso à contratação de trabalho altamente qualificado sob a forma de bolsas ou de contratos precários.
Nas últimas legislaturas, entre 2015-2019 e entre 2019-2021, foram aplicadas medidas dirigidas - directa e indirectamente - aos investigadores, que alteraram ligeiramente esta situação, designadamente: a publicação do Decreto-lei 57; a criação do Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública (PREVPAP), e a criação do Programa de Estímulo ao Emprego Científico (CEEC). No que diz respeito ao combate à precariedade na investigação científica, as medidas acima referidas, ainda que tenham permitido em alguns casos a contratação de investigadores anteriormente com vínculo de bolsa, não resolveram os problemas da precariedade dos vínculos no Ensino Superior e na Ciência, pois a maior parte dos investigadores, agora contratados, não foram integrados na carreira e têm contratos a prazo. Por outro lado, não foram garantidas às instituições de ensino superior os meios financeiros para abrir concursos para a carreira de investigação. O termo de milhares destes contratos iniciados em 2017 está a chegar e estes trabalhadores não têm perspectivas sérias de ver garantida a sua estabilidade profissional no futuro.
No que toca aos bolseiros de doutoramento, a reivindicação é simples: acabar com o estatuto que cristaliza a excepcionalidade de uma relação laboral que não o deveria ser. Independentemente da fase da carreira, mesmo antes ou sem doutoramento, os bolseiros são investigadores que produzem ciência todos os dias, e fazem-no sem os direitos laborais que são consagrados por lei para qualquer trabalhador. O facto de desenvolverem investigação que lhes permite alcançar um determinado grau académico, que faz parte da sua formação, não significa que esse trabalho não deva ser desenvolvido ao abrigo de condições de protecção laboral.
Isto já se verifica em diversos países, onde as bolsas acabaram e foram substituídas por contratos a termo certo, coincidente com o fim do doutoramento. Mas não é preciso sequer ir ao estrangeiro porque, mesmo em Portugal, os médicos que ainda não concluíram a sua formação, e estão a fazer o seu internato, têm - e bem - direito a contrato de trabalho. O mesmo para os professores do ensino básico e secundário quando estão a realizar o seu estágio.
Um contrato de trabalho significa, enfim, ter acesso aos mais básicos direitos laborais, não sendo nenhum destes consagrado no Estatuto do Bolseiro de Investigação. Significa ter descontos correspondentes ao vencimento para a protecção na doença, na parentalidade, para efeitos de reforma. Significa subsídio de férias e de Natal. E significa que após 4 anos de trabalho tem-se direito ao subsídio de desemprego, e não se é largado no precipício.
Esse precipício afasta, na linha de partida, todos aqueles que não têm uma rede de apoio, que não pertencem a uma classe para a qual é possível sobreviver vários meses sem salário (de resto, e logo à partida, nos vários meses em que se espera entre os resultados das bolsas, a assinatura dos contratos de exclusividade com a Fundação para a Ciência e Tecnologia, e o efectivo pagamento da bolsa). Muitos chegam ao fim dos 4 anos e, sem terem conseguido terminar a tese, precisam de arranjar um trabalho, fora da área, porque há contas para pagar. Ou mesmo terminando a tese, precisam depois de um outro concurso para continuar a ter rendimentos, e isso exige meses de espera. Muitos são aí empurrados para fora da Ciência.
É cada vez mais evidente que a precariedade não é um estímulo para fazermos melhor ciência ou uma ciência mais “competitiva”. A precariedade é, isso sim, aquilo que garante a perpetuação da reprodução social e o carácter elitista da profissão.
E os investigadores com doutoramento, que hoje estão ao abrigo de contratos a prazo, não podem senão fazer uma ciência também ela a prazo, sem as condições do necessário aprofundamento que o processo científico exige.
Por tudo isto, no passado dia 16 de Maio, dia nacional do cientista, teve lugar a maior manifestação de sempre do sector, em Lisboa, organizada por vários sindicatos, núcleos de investigadores e pela Associação dos bolseiros de Investigação Científica (ABIC), onde estiveram muitos daqueles que trabalham na Ciência em Portugal. Investigadores, contratados ou com vínculo de bolsa, mas também gestores de ciência e técnicos de laboratório, muitos deles com vínculos igualmente precários. Estiveram também docentes de carreira que compreendem que os investigadores não são um adversário mas, pelo contrário, trabalhadores do mesmo universo e de cuja estabilidade depende um sistema científico e um sistema de ensino mais desenvolvido.
É necessário mais financiamento para as instituições para integrarem docentes e investigadores nas respectivas carreiras e salvaguardar o interesse público neste sector, e não arranjar falsas soluções, verdadeiros pensos-rápidos, para manter tudo na mesma.
O apelo que estes trabalhadores deixam à sociedade em geral é que se solidarizem e rejeitem aceitar um sistema científico no seu país assente numa violação reiterada do direito do trabalho aos investigadores, cujos resultados devem exigir ver postos ao seu serviço.
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