Ando a ver uma série em que um grupo de três pessoas viaja pelo tempo para impedir que os maus da história (outros viajantes no tempo) estraguem a História dos EUA. Chama-se Timeless e é engraçada. Diria mesmo: é gira. Mas, como acontece sempre que há viagens no tempo numa história, não é propriamente realista – e daí não vem mal ao mundo. Mas a maneira como esta série erra é interessante.

Logo no primeiro episódio, a equipa tem de viajar até ao dia em que o dirigível Hindenburg explodiu ao aterrar em Nova Jérsia. O objectivo dos nossos heróis é impedir que Flynn, o mau da história, mude a História. A coisa não corre bem: Flynn consegue salvar o dirigível. O que faz um vilão a salvar pessoas? É complicado e não tenho tempo para explicar. Digo apenas que o dirigível caiu, mas só no dia seguinte… Morreram pessoas, mas não as que morreram na nossa realidade.

Pois bem: quando os nossos amigos voltam ao futuro, ou melhor, ao presente (que já é o nosso passado, porque a série não é de agora), aquela pequena mudança de uma data tinha alterado, subtilmente, a realidade. Lucy – a historiadora que faz parte da equipa que anda a viajar no tempo – descobre que, no presente a que voltou, a sua irmã não existe.

Porquê? É fácil: na nova realidade, o pai de Lucy casou-se com a neta de uma das pessoas que não morreram no acidente do Hindenburg. Logo, não conheceu a mãe de Lucy e a irmã de Lucy nunca nasceu. Mas – e a própria Lucy? Não devia ter desaparecido também? Não, porque afinal ela não é filha de quem pensava. Problemas de sempre…

Agora, o problema da série é este: se a História tivesse sido alterada nos anos 30 e o dirigível tivesse caído no dia seguinte, a irmã de Lucy nunca teria nascido, mas a Lucy também não – e nem sequer a mãe delas. Estaríamos todos mortos no cemitério das realidades alternativas. Sim, bastava corrigir um pequeno aspecto para mudar toda a História que se seguiu.

Vejamos o cenário A: um americano qualquer está deitado na cama a ler o jornal, depois de jantar, no dia 7 de Maio de 1937, o dia a seguir à queda do Hindenburg. Está muito interessado na notícia. Ao lado, a mulher lê um livro. O homem lê a descrição do acidente durante cinco minutos, põe o jornal de lado e vira-se para a mulher. Ela pisca-lhe o olho e, minutos depois, concebem aquele que viria a ser o primeiro filho.

Passemos para a realidade alterada pelas personagens da série: o nosso cenário B. O dia é o mesmo, mas a notícia do Hindenburg não aparece no jornal. O mesmo homem está na cama, a ler o jornal, com a mulher ao lado. Não há nada de interessante no jornal. Não caiu dirigível nenhum, as notícias são uma pasmaceira. Põe o jornal de lado cinco minutos mais cedo, a mulher pisca-lhe o olho e, enfim, concebem aquele que viria a ser o primeiro filho.

Será o mesmo filho nas duas realidades? Não. Cada um dos milhões de espermatozóides que vão em busca do El Dorado é diferente. Cada espermatozóide tem metade dos genes do homem e cada óvulo tem metade dos genes da mulher – mas a metade é baralhada de cada vez que é produzido um óvulo ou um espermatozóide.

Pois bem, nos dois cenários que descrevi acima, o óvulo seria o mesmo – mas o espermatozóide que lá chegaria no cenário A não seria o mesmo que no cenário B. Qualquer movimento diferente das duas pessoas ocupadas na importante tarefa levaria a que fosse outro o vencedor da louca corrida pelo útero acima.

Assim, não nasceria a mesma criança nos dois cenários. Nasceriam duas crianças diferentes – dois irmãos, que nunca se conheceriam. Talvez até nascesse um irmão do cenário A e uma irmã no cenário B. Seriam certamente pessoas diferentes.

Estas e outras diferenças multiplicar-se-iam pelos anos fora. Uma realidade em que o dirigível tivesse caído no dia seguinte seria hoje muito diferente. Enfim, os traços gerais talvez fossem semelhantes – mas os pormenores (por exemplo, a existência de cada um de nós) seriam outros. Sim: mesmo os habitantes de Portugal não seriam os mesmos tivesse o dirigível caído um dia mais tarde… Portugal existiria, mas com outros portugueses.

Não se trata apenas dos genes que iam no espermatozóide vencedor. Se aquele casal adormece cinco minutos mais cedo, no dia seguinte também acorda um pouco mais cedo (ou até um pouco mais tarde, que os sonhos também mudam). O dia vai correr de maneira ligeiramente diferente. Ao longo de nove meses, as diferenças acumulam-se. Os dois pais que têm um filho no cenário A não são exactamente as mesmas pessoas que têm um filho no cenário B. Não só aquelas duas crianças, a viver em universos paralelos, têm genes diferentes, como as experiências que vivem são outras, mesmo que semelhantes. Com algum azar, estas diferenças podem levar a que alguém morra no cenário B e sobreviva no cenário A. O mundo começa a mudar de forma cada vez mais marcada.

Descrevi as diferenças na vida de um casal. Mas todas as vidas serão subtilmente diferentes, mais tarde ou mais cedo. As diferenças começam nas pessoas que vivem à volta da alteração na História, mas vão-se espalhando pelo mundo. Se puséssemos os dois universos lado a lado e víssemos a História a decorrer a partir do momento em que alguém mudou um pormenor, não veríamos grandes diferenças nos primeiros tempos – mas devagar, como uma infecção que alastra, começaríamos a ver as mudanças a invadir o mundo inteiro.

Décadas depois, talvez o aspecto geral do mundo – as inovações tecnológicas, os grandes movimentos sociais – fosse vagamente semelhante ao nosso. Mas se olhássemos para os pormenores, as pessoas, as vidas na rua – tudo seria diferente do que temos.

Até os nomes que damos às coisas novas seriam outros. Talvez existissem computadores e algo parecido com a Internet, mas os nomes não seriam aqueles e até a maneira como pronunciamos as palavras antigas seria ligeiramente diferente. A evolução da língua, tal como o mundo, é complexa – ou seja, é composta por muitos elementos em interacção contínua e é, por isso, imprevisível.

Enfim, uma série como Timeless não podia ser realista. Se, de cada vez que as personagens voltassem ao presente, o mundo fosse outro, não haveria história para contar. E, para dizer a verdade, não parece que haja por aí muita gente a viajar no tempo…

Uma coisa é certa: não tivesse eu parado o olhar naquela série enquanto navegava por uma imensidão de séries e filmes, não teria escrito uma crónica com «espermatozóides» no título. Quem sabe como seria diferente a minha vida…

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu último livro é o Almanaque da Língua Portuguesa.