O que o Mediterrâneo separou, o destino infelizmente juntou

António Moura dos Santos
António Moura dos Santos

Quando começou a ser noticiado que uma criança se encontrava há alguns dias presa num poço em Marrocos, com as autoridades e as forças de socorro a correrem contra o tempo para tentar resgatá-la, houve um outro caso que certamente terá saltado de imediato na memória de muitos.

Estávamos em janeiro de 2019 quando surgiram maus ventos de Espanha: Julen, um menino de dois anos, tinha caído num poço em Totalán, perto de Málaga.

Aquilo que começou por ser um caso de âmbito local rapidamente ultrapassou fronteiras e começou a ocupar as manchetes dos jornais e as primeiras páginas dos meios de comunicação, preenchendo também largas horas de diretos televisivos.

Registado o desaparecimento do menino a 13 de janeiro desse ano, os temores de que teria caído num poço para prospeção de água com meros 25 centímetros de diâmetro, mas 80 metros de profundidade, tornaram-se uma quase certeza quando foram encontrados cabelos que correspondiam ao seu ADN junto ao local, três dias depois.

Numa corrida contra o tempo, cerca de 300 pessoas participaram na operação de resgate da criança desde o dia em que esta desapareceu, num esforço conjunto não só das autoridades, como também de populares e empresas privadas. À luz dos acontecimentos que se sucederam, talvez pareça agora ingénuo que, cinco dias depois do desaparecimento, ainda houvesse esperança de encontrar Julen vivo.

Depois de um gigantesco esforço logístico que obrigou à perfuração de dois túneis, ao fim de duas semanas encontraram o menino, sem vida. A autópsia mais tarde provou que morreu devido a um traumatismo cranioencefálico, ou seja, terá batido com a cabeça na queda.

Com esse caso na memória, tudo o que se esperava desta vez é que houvesse um desfecho diferente. A sul do Mediterrâneo, junto à aldeia de Ighran, na província de Chefchaouen, em Marrocos, um menino de cinco anos caíra num poço similar ao de Málaga: 25 centímetros de diâmetro, 32 de profundidade.

A grande diferença é que Rayan, ao que tudo indicava, estava vivo no fundo do buraco, se bem que ferido. Conferindo simultaneamente esperança — pelo menino se encontrar consciente — e angústia — por, ao sabê-lo vivo, ser urgente resgatá-lo —, as autoridades marroquinas puseram-se a trabalhar o quanto antes para resgatá-lo.

Sem os meios disponíveis em Espanha — e sem a possibilidade de ter ajuda externa que pudesse chegar a tempo — foram feitos grandes avanços desde terça-feira, 1 de fevereiro, data em que Rayan caiu. O grande problema, na verdade, foi que ao aproximarem-se do fundo do poço a escavar um buraco em paralelo, os socorristas tomaram consciência da fragilidade do terreno e de que um movimento em falso poderia fazer desabar a estrutura.

Como tal, se 90% do trabalho de escavação decorreu com rapidez, os outros 10% reduziram-se a um passo paquidérmico. Enquanto as autoridades foram tentando escavar um túnel para aceder a Rayan, foi-lhe sendo disponibilizada comida e oxigénio para ajudá-lo a aguentar este estado de privação.

Desde ontem, os rodapés foram piscando nas televisões a dizer que o seu resgate estava iminente. Talvez pelo exotismo das fontes noticiosas em árabe e francês, foram sendo avançadas notícias contraditórias — ora Rayan se encontrava estável apesar das escoriações, ora afinal tinha sofrido lesões na espinal medula; ora os socorristas já estavam quase a colocar a criança na maca, ora tinham interrompido os trabalhos devido a pequenos desabamentos.

Certo é que, apenas pelas 20:30 de hoje — quase cinco dias depois da queda — Rayan foi retirado do buraco. A população que se encontrava nas imediações — que foi engrossando ao longo dos dias em solidariedade com Rayan — explodiu num júbilo e os meios noticiosos foram expedidos a noticiar o triunfo do seu resgate. No entanto, a alegria durou pouco tempo.

Confirmando as piores expectativas, Rayan não sobreviveu aos ferimentos. Fica por saber se o menino já se encontrava morto quando foi retirado — o seu corpo foi coberto na maca que o transportou para a ambulância estacionada no local —, ou se pereceu a caminho do hospital.

Com três anos e quase 200 quilómetros de distância, os destinos de Rayan e Julen foram infelizmente os mesmos. Todavia, essa não foi a única parecença entre os dois casos: o circo mediático de sensacionalismo quanto ao sofrimento de uma criança e a contínua atenção dada a especialistas a tecer considerações quanto a realidades e pessoas que não conhecem — desde os traumas da família até à competência (ou falta dela) das equipas de socorro — também marcou estes dois tristes episódios.

Se não podemos evitar que no futuro ocorram mais casos desses, podemos, ao menos evitar torná-los um produto. Julen e Rayan mereciam mais.

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