Ética e Inteligência Artificial. Dois mundos que muitos defendem devem estar interligados, mas nem sempre parecem conviver e seguir o mesmo caminho em prol do desenvolvimento da sociedade e do bem-estar das populações.

Discutir os dilemas éticos da Inteligência Artificial (IA) e a possível, tanto quanto ambicionável, construção de uma tecnologia de forma segura, ética e para benefício de todos, mitigando os riscos desse natural e desejável desenvolvimento, sentou lado a lado Emilia Javorsky, diretora do Instituo Future of Life, cientista e empreendedora e Ramesh Srinivasan, professor universitário na UCCLA, Universidade da Califórnia, em Los Angeles, Estados Unidos da América.

“É possível uma IA ética?” foi a primeira pergunta feita. A resposta desenrolou-se em subtemas conectados num desfile de argumentos acompanhados de várias outras perguntas em que se falou de emprego, dados, privacidade e futurologia.

O poder de muitos dados nas mãos de poucos

Ramesh Srinivasan atacou, de início, a origem da questão. “Quem governa estes modelos de IA, quais os valores pelos quais se guiam, quem regula, ou não, que propósitos servem e onde não se aplica o IA”, disparou.

“Em alguns domínios da vida, números e quantificação, a IA pode ser aplicada e funciona. Dados de saúde e ambiente, por exemplo. Mas a maior parte dos aspetos da vida é subjetividade, interpretação, negociação. E é uma violação ética da vida, de certo modo, transformar tudo em dados, particularmente os que são recolhidos por um Estado totalitário ou corporações que operam na vigilância”, chamou a atenção.

Para Emilia Javorsky há uma fronteira desenhada na ténue linha da privacidade entre os dados que “tenhamos, ou não, concedido para integrar esses modelos” e a “informação que queremos, ou não, que saibam sobre nós”, delimitou.

Para a médica-cientista, “o poder dos dados está no que fornecemos”, pelo que, defende “deveria haver um sentido coletivo de pertença”, solicitou. “Os dados devem beneficiar todos coletivamente”, disse. “Maximizamos os benefícios da tecnologia e garantindo que será partilhado por todos, minimizando os riscos, também eles partilhados”, reforçou Emilia Javorsky.

E é no benefício de um todo que continuou a esgrimir argumentos. Para além da concentração de capital nas mãos de poucas entidades, a Inteligência Artificial pode “concentrar influências, fluxo de informação, valores e promoção de uma monocultura, pensamentos e valores únicos prontos a serem lançados”, alertou.

“Temos de entender o que está por detrás da concentração de poder e do fluxo e como poderemos realinhar para ser mais descentralizado e possa dar poder a mais gente”, sublinhou. “Quem beneficia da tecnologia AI. São poucas, poucas pessoas. Uma minoria na parte norte do globo”, situou.

“Um pequeno número de empresas chinesas e norte-americanas dominam o espaço da IA”, constatou Srinivasan. “Vimos o que aconteceu com o social media. Queremos ir pelo mesmo caminho no que toca a AI ou poderemos planear de forma que não deixe o resto (do mundo) a navegar no escuro”, perguntou.

Regulação e a empregabilidade

A regulação, ou antes, a autorregulação é uma via apetitosa para os donos da tecnologia. O tema entra num balanço ao lado do investimento em inovação e o custo/beneficio dessa injeção monetária.

“As empresas têm a tentação de pensar que são as melhores para resolver os próprios problemas e sabemos que nem sempre acontece”, alertou. “É uma estratégia não ser transparente”, constatou.

“Todas estas questões implicam com 8 mil milhões de pessoas. A maioria não vive na europa, nem nos Estados Unidos, vive em África, América do Sul, Médio Oriente, Ásia e essas pessoas são sujeitos da tecnologias e objeto já que levam com o lixo tecnológico em cima e são alvo de extração de minerais necessários para os dados”, registou.

Página virada para a empregabilidade. Para Emilia Javorsky há duas formas de olhar o problema. Nos avanços tecnológicos ou se olha para o ângulo em que a IA “faz tudo o que podemos fazer e isso abre a porta a um futuro mais produtivo onde estaremos a desenvolver novas de progredir e avançar a sociedade”, ou, em contraponto “é usada para nos substituir e aí perderemos trabalhos e enfraquece-os economicamente”, confrontou.

Recorrendo a futurologia, Ramesh Srinivasan, foi ao passado recuperar a previsão de John Maynard Keynes da “semana de trabalho de 15 horas” e pintou o quadro do presente.

 “Há uma precariedade associada ao trabalho”, algo que está, segundo defende “ligado à eleição de Donald Trump”, frisou. “As pessoas vivem do salário, não conseguem pagar casas e nos EUA, a segurança económica está a decrescer e hoje ganhamos menos que nos nosso pais e isto tem a ver com a incrível distribuição assimétrica de quem beneficia desta tecnologia”, apontou.

A transparência e a privacidade pela lente do dilema ético

“Em teoria, tudo pode ser coletivamente transformado em dados. Está na génese da fundação das redes sociais e da IA”, enunciou o professor da universidade da Califórnia, um estudioso do impacto da tecnologia nas sociedades.

Recuperou a recolha e guarda de dados. “O que necessitamos é o mínimo de transparência. Gostava de saber o que está a ser recolhido e por quem, por quanto tempo e deve, ou não, ser agregado a outros dados”, questionou. “O meu Instagram mostra-me sempre feliz, mas o cartão de crédito mostra que compro junk food (comida de plástico) às duas da manhã e as 7. Será que quero essa informação disponível?”, inquiriu. “Os direitos dos dados começam com a transparência, mas devemos ir além, para o governance”, indicou.

“O pedido de privacidade e transparência está mais do que nunca na ordem do dia”, reconheceu Emilia Javorsky que deixa um recado. “A combinação entre disponibilidade de informação e Inteligência Artificial é uma receita interessante para a vigilância”, sustentou.

Pese embora o panorama cético que pairou nas intervenções, Emilia Javorsky diz estar deveras otimista com as potencialidades da IA em resolver problemas”. Exemplificou com o prémio Nobel da Química 2024 e o reconhecimento subjacente da Real Academia sueca no desenvolvimento de um modelo de IA para solucionar um problema. “Identificaram um problema (proteínas) e encontraram solução. Necessitamos de 1 milhão destes projetos”, pediu.

“Ao longo da história, a tecnologia ajudou o homem no trabalho. A questão é, quem beneficia. Não podemos afastar o potencial da IA, podemos trabalhar 15 horas e beneficiar ao máximo da Inteligência Artificial, haja vontade política para o fazer”, concluiu Ramesh Srinivasan.