Ser revolucionário é uma opção de carreira arriscada: ou se consegue transformar a sociedade naquilo que se deseja (e, em teoria, deixa de ser necessário ser revolucionário, ainda que a história nos mostre que as coisas não são assim tão lineares), ou se falha nesse desígnio. Perante essa segunda possibilidade, ou se baixa os braços, ou se mantém a luta — muitas vezes armada.
"Quanto mais altas foram as expectativas, mais dolorosa foi a perda dessa possibilidade. Daí que haja grupos que estiveram envolvidos em violência extrema e que têm muita dificuldade na reintegração", comenta Carlos de Matos Gomes. Militar de formação, historiador e romancista, o autor, que assina as suas obras de ficção com o pseudónimo literário Carlos Vale Ferraz, conversou com o SAPO24 no âmbito do ciclo "O 25 de Abril (também) foi uma ficção".
Portugal abraçou a democracia representativa e pôs fim ao Processo Revolucionário em Curso, mas viu agentes à esquerda e à direita a rejeitarem essa possibilidade e a desafiarem o novo estado de coisas através da violência. Foi esse o caso de "Rúben", o protagonista de "O que fazer contigo, pá?". Neste romance, um dos grandes responsáveis pelo 25 de Abril vê-se derrotado após 1975 e encabeça um movimento de extrema-esquerda responsável por atentados que o tornam num carrasco para alguns, herói da liberdade para outros.
Mas "Rúben" não é como se chama, é o seu "nom de guerre" militar — Simão Dutra é o nome que lhe foi dado à nascença e que carrega consigo para o exílio em Paris após falhar o seu propósito revolucionário. Figura controversa, regressa ao país já no Portugal contemporâneo e procura os antigos colegas, que o rejeitam, evitando os antigos adversários, que ainda o temem — é na procura pela adaptação a um país que já não conhece (nem este o conhece a si) que se centra esta história.
Os paralelismos com Otelo Saraiva de Carvalho e as FP-25 são notórios e Carlos Vale Ferraz não o esconde — aliás, refere-o amiúde no decurso desta entrevista. Autor de um extenso catálogo de romances ligados à história colonial portuguesa — como "Nó Cego", "A Última Viúva de África" e "Angoche" —, o escritor quis explorar esta fase conturbada de Portugal. Principalmente as mazelas que o período revolucionário deixou no país, feridas que considera terem sido curadas em parte pelo poder político.
"Este é um processo que, aqui em Portugal, foi gerido com pinças, e do meu ponto de vista bem, com as leis de amnistias, para as quais tiveram papel importante quer o Presidente Ramalho Eanes, quer depois Mário Soares, porque são situações muito difíceis de gerir, com ressentimentos que duram durante muito tempo", conta.
Coronel do Exército em situação de reforma, Carlos de Matos Gomes cumpriu três comissões na guerra colonial e integrou a primeira comissão coordenadora do Movimento dos Capitães, na Guiné. Foi assim que inscreveu o seu nome na história do 25 de Abril — revolução que, defende, surgiu da necessidade da sua geração tomar conta do seu próprio destino e não aceitar o que o estado português lhe impunha. Essa vontade de emancipação, afirma, é o que falta à nossa sociedade nos dias que correm.
“O que fazer contigo, pá” é uma pergunta que tanto pode ser dirigida ao protagonista deste romance como à própria revolução de Abril?
É a interrogação que fazemos — e que faço tanto como romancista como protagonista da situação do 25 de Abril aqui em Portugal — quanto ao que vamos fazer aos que fizeram a revolução, aos antigos revolucionários. Nós sabemos o que fazer a antigos médicos, a antigos advogados, a antigos professores, mas quanto a quem quis mudar o mundo, o que é que se faz quando o mundo efetivamente não mudou? Ou, pelo menos, não mudou de acordo com aquilo que pretendíamos? Isto conduz a uma outra questão que é a da desilusão e da perda das utopias. Isto é, o desejo de transformação em ação para transformar uma realidade ou se concretiza — e então nós, os atores, sentimo-nos realizados —, ou não se concretiza e há qualquer coisa, um estado que não sabemos muito bem digerir e os outros também não sabem como nos colocar. Isto foi particularmente evidente com o Otelo Saraiva de Carvalho, mas é também evidente com Che Guevara, por exemplo, e com tantos outros protagonistas que num determinado momento desempenharam um papel histórico decisivo e depois viram as suas ilusões desmontadas.
Aproveitando que citou os nomes de Otelo Saraiva de Carvalho e de Che Guevara, "o que fazer contigo, pá" também é, em parte, uma pergunta que pode ser feita pelo próprio leitor a estas figuras, não é? Alguns setores encaram-nos positivamente pelo papel que tiveram, outros como vilões. Ou seja, a própria natureza revolucionária que têm faz com que seja difícil enquadrar estas figuras sob um só prisma?
Isso é evidente, porque todas as transformações se fazem sempre a favor de alguém e contra alguém ou alguma coisa. E há também uma outra questão que é a da inércia. Todas as sociedades e todos os grupos tendem para a conservação e são, em princípio, avessos a transformações, ao desconhecido. Estas personalidades vêm introduzir um fator de perturbação nas vidas, individuais e coletivas. E esta perturbação traduz-se sempre em risco — há sempre um risco do desconhecido. Daí que o agitar do tapete faça cair pulgas, poeiras, altere as situações. Daí que nunca estas figuras são consensuais, e felizmente que é assim. Todas as grandes transformações sociais se fazem sempre com a destruição ou a alteração profunda do que existe e com a tentativa de criação de qualquer coisa nova. Isto é histórico e universal. Há, por um lado, a necessidade de causar um caos para depois reinstalar uma ordem. Aqui em Portugal, o que acontece é que há uma instalação caótica e nós não conseguimos, de modo algum, alterar significativamente, ou de raiz, uma situação sem desarrumar a casa.
Quando se fala no PREC... é muito difícil de aceitar esse caos. Mas eu, por exemplo, falei muitas vezes com o Otelo Saraiva de Carvalho e com muitas pessoas da minha geração que estiveram envolvidas neste processo e perguntava-lhes sempre se eles, quando tinham mudanças de casa, conseguiam fazê-lo sem desarrumar os móveis que lá tinham. Isso não é possível! Mas é essa a situação. E também nunca ninguém está satisfeito com a nova disposição do "mobiliário", é um facto. As opções que estas pessoas tomaram, portanto, foram discutidas ao longo do tempo. Citando uma frase de Rosa Luxemburgo, "as revoluções não têm ensaio geral", vão sendo geridas à medida que os acontecimentos vão ocorrendo. Temos uma ideia geral de um caminho que queremos percorrer, mas não sabemos nunca qual vai ser o fim.
A propósito dessa questão da "desarrumação", tenho uma pergunta para colocar mais à frente. Para já, contudo, recentremos a conversa em torno do romance em si. Simão Dutra/Rúben, o protagonista conhecido por estes dois nomes, quando regressa a Lisboa, carrega consigo "a sua antiepopeia numa sacola ao ombro". Que antiepopeia é esta?
Todos os grandes protagonistas da história são relatados como heróis homéricos, de uma epopeia em que saem do seu território — da sua casa, do seu país, da sua cidade — e vão para o mundo, tentando modificá-lo, conhecê-lo, alterá-lo, trazê-lo, vencê-lo, se possível. E estas são as epopeias clássicas. Aquilo que eu quis aqui também referir é uma epopeia clássica. É, digamos, a primeira das grandes antiepopeias, que é o romance do D. Quixote, de Cervantes, em que há um cavaleiro que sai da sua terra e vai para o mundo tentando ver algo grandioso. Isso não está lá, mas ele imagina que seja grandioso, porque se não, isso não justificava a viagem. E o que acontece — e é por isso que o romance do D. Quixote é um clássico genial —, é que ao fim da terceira viagem que ele faz, no regresso, quando retoma a normalidade da vida — isto é, quando deixa de ter visões e lhe passa a loucura —, morre. Esta história é também um pouco essa. A ideia de regressarmos com a nossa mochila, com a nossa sacola, dessa viagem que imaginámos que fosse épica, e, quando regressamos e tomamos consciência, o herói morre, ou pelo menos morrem-lhe os sonhos.
Sem querer revelar muito do enredo, é como um Ulisses regressado décadas depois a Ítaca, desacreditado e sem saber o que fazer consigo mesmo?
Eu também quis dar aqui uma visão da história. Eu falo muito da minha geração porque é uma geração da antiepopeia, é a geração que deu por findo o Império, a geração do regresso. E esta antiepopeia, que é aquela em que reflito no romance e num outro livro que publiquei agora [Geração D], e também a dos nossos heróis. Se repararmos, os grandes heróis da epopeia regressaram com o seu saco de viagem vazio e viveram praticamente abandonados. O caso mais conhecido é o de Camões, mas veja-se o autor de "Peregrinação", o Fernão Mendes Pinto, que tem um caso idêntico. Até o Vasco da Gama, que morre na Índia doente, o Afonso de Albuquerque... esses grandes heróis acabam nas nossas histórias quase abandonados. É um destino quase fatal, há um fatalismo na heroicidade e na epopeia. E é o que me levou sempre a fazer a pergunta "o que fazer contigo, pá?" Nunca ninguém sabe o que fazer com essas personalidades.
Até em relação a essas figuras históricas, quando escreve a personagem de Simão, apresenta-o como um descendente de D. António, Prior do Crato, e os paralelos são evidentes: são duas figuras derrotadas, nas quais se depositou esperanças e que acabaram exiladas. Aliás, ambas acabam derrotadas em Alcântara. Há um esforço evidente por fazer esse paralelismo. Porque é que optou por criá-lo?
D. António, Prior do Crato é uma figura da qual gosto muito e com a qual me identifico muito. Ele andou sempre em contracorrente: queriam que fosse padre ou que fosse religioso e ele não o foi. Ele tinha direito à sucessão e também não o deixaram. É um homem que acaba cheio de temores da morte e do Inferno. Ele, que era o monarca possível, acaba na miséria a vender o pequeno tesouro que tinha amealhado. E é uma figura que lutou sempre. Pode ter tido pouca sorte, mas lutou. E esse facto, de não se ter rendido, de ter procurado manter a independência [de Portugal], ao fim e ao cabo, merece um enorme respeito. E é uma figura que tem sido sempre maltratada — curiosamente, tem sido maltratada por uma instituição que maltrata normalmente os portugueses, que é a Igreja Católica.
Esta relação de parentesco que cria aqui, com quase 400 anos de distância, é alimentada pela mãe de Simão, Violante, que confere ao filho uma qualidade quase messiânica, como se ele fosse predestinado a grandes coisas. Neste caso, a dirigir Portugal à glória. Podemos também ler aqui uma crítica implícita à ideia que nós, portugueses, de certa maneira, conservamos do homem providencial, de alguém que vai resolver as coisas por nós?
Essa é uma das características da nossa sociedade. Nós referimos muito, ainda hoje, o "eles" nas nossas conversas. Há sempre um "eles". Nós portugueses entendemos que a liberdade é uma responsabilidade dos outros, falamos sempre na projeção das responsabilidades para uma outra autoridade. E nunca assumimos enquanto atitude cada um de nós o fazer o que se deve fazer — e associar a liberdade à individualidade e à responsabilidade. Cada um de nós é uma individualidade, é um ser responsável perante si e perante os outros. E não temos essa consciência. Digo "nós", mas há muitas outras sociedades que, porventura, não a têm. Mas aqui, fruto da nossa história, da nossa geografia, talvez da nossa pequenez e do [fraco] desenvolvimento social, fomos sempre atribuindo a responsabilidade a um soberano, a um bispo, a um senhorio, a um dono, a um patrão. Eles são responsáveis e nós somos quase só os súbditos, cabe-nos obedecer. Eu sou muito contrário a essa visão do mundo e a esse tipo de comportamento.
É engraçado referir isso, porque às vezes a atribuição de responsabilidades é ativa — é porque tal e tal fez isto — e outras vezes é passiva, pauta-se por falta de comparência — é porque tal e tal não apareceram para nos salvar ou para nos ajudar.
Andamos sempre à procura de um culpado. "Eu não tenho culpa, a culpa é de A, B ou C". E vivemos numa cadeia de culpabilização em contínuo e de mal-tratamento. Por um lado, vamo-nos tratando mal uns aos outros. Uma pessoa comum, que trabalhe, por exemplo, numa repartição pública, vai ao médico e é maltratado pelo médico. Mas o médico depois, quando vai às finanças, é maltratado pelo funcionário das finanças. E este, por sua vez, é maltratado pelo motorista do autocarro onde anda. E não percebemos que, ao sermos pouco urbanos uns com os outros, ao fazermos mal em vez de olhar o outro como um igual, estamos a integrar uma cadeia de maus serviços uns aos outros.
Há bocado estava a referir a sua geração e agora fala quanto a esta ideia de passividade. Fez parte não só da geração, mas do grupo de homens que tomou parte ativa em pôr fim ao Estado Novo e inaugurar do Portugal Democrático. Tomando também em conta o que me está a dizer, eu entendo a modorra e a indiferença em que Simão se deixa cair no exílio como a nossa modorra e indiferença enquanto sociedade contemporânea. Será esta uma leitura acertada?
Isso está na base da intervenção, mais uma vez, da minha geração na rutura com o regime. Aquilo que me leva, relativamente cedo, a romper com o regime é a ideia de que cada um de nós é responsável, e era responsável na altura, por aquilo que acontecia aqui em Portugal. E nós éramos, em primeiro lugar, responsáveis por termos aquele governo. Isto é, havia um governo que tinha conduzido Portugal para uma guerra e para uma situação de derrota a vários níveis — derrota social, política, histórica e até uma derrota da dignidade, que era estarmos fora do processo histórico que estava a ocorrer em todo o mundo para o movimento de descolonização. E, portanto, éramos responsáveis por manter aquele governo. A ideia de que os alemães não eram responsáveis pelo nazismo é errada; eram responsáveis, e nós éramos responsáveis pela ditadura. Portanto, se não concordávamos, tínhamos de agir, no sentido, em primeiro lugar, da nossa própria dignidade, a dignidade de sermos livres de decidir.
Em segundo lugar, tínhamos a responsabilidade de aceitar ou recusar uma determinada situação política. Nós — e refiro-me não só à minha geração de militares, mas de civis também, todos aqueles jovens, digamos, da geração dos babyboomers, do pós-guerra — já não tínhamos nenhum vínculo ao Estado Novo. E não aceitávamos que houvesse um governo que conduzia uma política sem nos perguntar nada. Mas diziam que nós o apoiávamos. A primeira questão que se coloca no 25 de Abril é a da obrigatoriedade da sociedade ser ouvida para serem tomadas as decisões. Estávamos a fazer uma guerra sem ninguém nos ter perguntado. E nós, oficiais, tínhamos os nossos soldados e sabíamos que ninguém lhes tinha perguntado e que eles também não queriam aquele processo. Quando lhes perguntávamos o que é que iam fazer após a guerra, diziam "vou para o estrangeiro, vou emigrar". Ora bem, isto era uma situação pela qual éramos responsáveis e que não aceitávamos. Esta é a primeira causa da rutura.
Recuando à pergunta que lhe queria fazer há pouco, e em jeito de provocação: os revolucionários deste romance, tanto Simão como os seus correligionários, consideram que a revolução de Abril ficou inacabada. Isso traz à memória algumas correntes da história das revoluções que têm dificuldade em considerar o 25 de Abril como uma revolução no sentido total do termo, por não ter havido propriamente uma alteração da ordem social. Como é que se posiciona em relação a esta questão?
O 25 de Abril é uma revolução na questão social, claramente. Isso é particularmente nítido no que diz respeito às mulheres. O 25 de Abril provoca uma revolução na situação social das mulheres em Portugal, que não podiam sair sem os maridos autorizarem, que tinham de ter o nome do marido quase obrigatoriamente, que tinham papéis definidos em termos de desempenho social, que estavam impedidas de exercer um conjunto muito alargado de profissões. Portanto, essa é uma revolução social. Também o é na área da educação. É preciso recordar que antes existiam em Portugal apenas três universidades, havia apenas três faculdades de medicina, duas faculdades de engenharia, apenas uma escola de medicina veterinária, um liceu só por cada distrito. O 25 de Abril provoca essa transformação.
Por outro lado, não é uma revolução na medida em que a posse e a condução daquilo que é essencial na relação entre a economia, as finanças e o poder, que não se altera. Isto é, os mecanismos de poder continuam a ser os mesmos. Mudam as famílias que são donas de bancos, mas não mudam os bancos nem o seu papel. Não mudam, por outro lado, as alianças políticas e estratégicas de Portugal. E não muda fundamentalmente a intervenção dos cidadãos na política, em que medida é que cada um de nós e dos vários agregados que podemos distinguir na sociedade entram na definição do poder político. Ele passou a ser mediado, há uma intermediação através dos partidos. Ora bem, os partidos já são organismos de distanciamento entre o cidadão e o decisor. E nessa parte, nas alavancas do poder, não há uma alteração radical. Podemos dizer que há uma representação mais alargada e mais legitimada, mas não uma alteração profunda e radical.
Apesar de nunca traçar essa ligação de forma direta, torna-se aparente ao ler o livro que o movimento revolucionário que Simão/Rúben liderou foi algo semelhante às FP-25 — e que, por exemplo, a antiga organização de extrema-direita Exército de Libertação de Portugal aqui chama-se Exército Patriótico de Libertação. Apesar de evitar fazer uma referência direta a alguns factos históricos, o romance debruça-se sobre os vencedores e os vencidos do 25 de abril. Que efeitos desse período ainda sentimos atualmente?
Há um mal-estar social, não só aqui em Portugal, mas em tudo aquilo que hoje em dia se chama o Ocidente alargado. E que, se nos recordarmos um pouco da história, remete para os chamados "Anos de Chumbo", entre as décadas de 70 e 90. Há qualquer coisa de incompreensível numa sociedade de relativo bem-estar — como é hoje em dia aqui na Europa, nomeadamente até Portugal e a Espanha, que têm níveis de bem-estar bem superiores aos que existiam nos anos 70 e 80 — um mal-estar social, quase físico, que leva a sociedade a ir em busca de soluções extremas.
A Alemanha, nos anos 80, com o grupo de Baader-Meinhof, e a Itália com a Brigadas Vermelhas, eram sociedades de prosperidade. Mas alguns dos elementos mais instruídos, mais cultos, sentiam um mal-estar quanto a um fim que não era o desejável, que não era justo nem equitativo e que os levou à luta violenta. Julgo que estamos hoje aqui em Portugal a viver também um tempo de descrença. E essa falta de esperança, de ter um horizonte largo, um objetivo pelo qual valha a pena nos batermos, traduz-se em movimentos políticos que depois são quase de tipo messiânico, de promessas de salvação que não são realizáveis. E as sociedades humanas são muito vulneráveis a isso e é por essa razão que criaram os seus deuses, as suas representações, embora nunca tenham sido materializadas. As pessoas sabem, por um lado, que os milagres não ocorrem, mas isso nunca as impede de fazerem promessas para se salvar. Neste sentido, uma das fugas é a ação violenta, que é a imposição de uma vontade que não se sabe bem qual é, mas há uma descarga de energia que normalmente se traduz em catástrofes, que são repetidas apesar de serem históricas. Isto é, nunca aprendemos com a história.
Pergunto-lhe, inclusivamente, quanto aos efeitos desse período que ainda sentimos porque, por exemplo, quando foi a morte de Otelo Saraiva de Carvalho ou quando foi publicado o livro sobre a história das FP-25 ["Presos por um Fio - Portugal e as FP-25 de Abril", de Nuno Gonçalo Poças], voltaram a surgir discussões sobre o período. Deu até deu a ideia que ainda há um certo ressentimento a pairar na sociedade portuguesa. Concorda?
Concordo, porque quanto mais altas foram as expectativas, mais dolorosa foi a perda dessa possibilidade. Daí que haja grupos que estiveram envolvidos em violência extrema e que têm muita dificuldade na reintegração. Curiosamente, isso acontece com estes grupos de ação política, mas acontece também muito com antigos militares de tropas especiais que têm muita dificuldade em reintegrar-se na vida normal. Daí que, quer no caso da ação política armada, quer no caso do combate muito violento, existam elementos que têm muita dificuldade neste retorno à normalidade. E têm, por vezes, comportamentos fora do normal, outras vezes de autodestruição, de suicídio, do álcool, da violência. Mas este é um processo que, aqui em Portugal, foi gerido com pinças, e do meu ponto de vista bem, com as leis de amnistias, para as quais tiveram papel importante quer o Presidente Ramalho Eanes, quer depois Mário Soares, porque são situações muito difíceis de gerir, com ressentimentos que duram durante muito tempo.
O que é interessante também, e toca nisso diretamente no livro, é que quando Simão regressa de França e vai à procura dos antigos colegas revolucionários, eles já se assimilaram à normalidade democrática portuguesa e não querem, de forma alguma, recuperar esses tempos. A forma como agem é um pouco um reflexo do que estava a dizer — de deixar o passado assentar e tentar continuar com a vida?
Sim, e há também uma outra figura que, porventura, se pode ler nesse livro, que é o regresso do filho pródigo que ninguém quer receber. Na Bíblia, o filho pródigo é acolhido. Neste caso, o filho pródigo [Simão] vem e todos aqueles a quem ele se dirige já não o conhecem, já têm uma outra personalidade, têm outro tipo de vida e ele é quase como o leproso do qual todos se afastam. E isso também acontece muito na nossa vida: aqueles que estão em desgraça ou que nos lembram tempos que queremos esquecer, não sabemos como lidar com eles. Por um lado, há uma memória de um tempo de grande união; por outro, há um esquecimento que é necessário e que é obrigatório fazer para podermos ter uma outra vida. E é nesta tensão que o romance se joga.
Tentando uma vez mais não revelar grandes aspectos do enredo, Simão volta a encarar os seus adversários naquilo que o livro apresenta como o Portugal contemporâneo. Estes recebem-no como vencedores — ou seja, no livro, o remanescente do Estado Novo nunca desapareceu e continua bem posicionado na sociedade portuguesa. Que paralelos traça entre este aspeto do romance e o atual momento político que vivemos?
Há um aspecto que podemos recuperar, que é o do estado corporativo. No Estado Novo, Portugal era um estado corporativo, em que as corporações procuravam consensos para distribuir a riqueza e para definirem as suas relações de poder — e antes, a monarquia também já o era. Hoje em dia, assistindo às ditas formas de luta entre os vários grupos sociais e funcionais, verificamos que são ainda as corporações que determinam em boa parte as políticas de áreas significativas. Ou seja, nós elegemos um poder político, que deveria definir a política geral, a totalidade dos interesses, mas, por outro lado, são as corporações que determinam qual é a fatia do trabalho que fornecem à sociedade e qual é a fatia do rendimento que retiram da sociedade. E isso é muito claro com as grandes corporações que prestam serviços interpessoais, ligadas à prestação de serviços de saúde, de transporte, na área do ensino...
É o que hoje se determina como os "privados"?
Sim, e funcionam assim. Isso era muito típico do Estado Novo e nos estados corporativos. E eu julgo que essa era das alterações que se deviam fazer de raiz, em termos de revolução, quanto aos tipos de representação corporativa no exercício do poder. Daí que eu seja, e tenha sido sempre, mais favorável à organização dos trabalhadores por comissões de trabalhadores e por sindicatos horizontais, do que por estas organizações corporativas, que vão desde as ordens — que hoje em dia são sindicatos, na realidade — e que representam áreas de atividades, corporações que impõem os seus poderes à generalidade dos cidadãos.
Já aludiu nesta conversa, e já tinha mencionado diretamente noutras, que, acima de tudo, não se deve encarar o 25 de Abril como algo bem sucedido ou falhado, porque o que está em causa é que este nos deu as ferramentas para tomarmos as decisões para o nosso país. No entanto, ao longo do livro, deixa alguns sinais de certo mal-estar social — desde o abandono dos mais frágeis até ao exemplo sarcástico de um bordel tornar-se numa instituição de interesse turístico. Tomámos as decisões certas até agora?
Tenho sempre muita dificuldade em associar a política ao bem e ao mal, ao certo e ao errado. Julgo que terá sido o Aristóteles que disse qualquer coisa do género: a pior relação que há para se apreciar qualquer fenómeno social é a moral. Porque a moral é sempre circunstancial. Portanto, nós é que definimos o que é o bem e o mal. Aí eu volto à minha questão inicial, que é a da responsabilidade. Tudo aquilo que tenho escrito e que tenho tentado transmitir é fora da moral, é mais ao nível da ética, mais do dever do que do bem e do mal. Agora que estamos com os 50 anos do 25 de Abril e da Revolução, não tenho a tentação de fazer uma contabilidade, "isto correu bem, isto correu mal". Nem de procurar culpas. Tenho é que pensar no futuro. Ou seja, com aquilo que já consegui, o que é que devo fazer para conseguir enfrentar os tempos que aí vêm. Preocupa muito mais, neste momento, o futuro — mesmo a médio prazo —, do que estar a fazer um julgamento ou uma contabilização do passado.
Aquilo que considero essencial é manter o nosso sentido crítico, a nossa liberdade, a ideia do livre-arbítrio. Isto é, ter sempre a possibilidade de escolher outra coisa se errar. O direito de errar é direito fundamental. E, portanto, aquilo que eu quero preservar a todo o custo é, se eu errar, tenho de ter a oportunidade de encontrar uma outra saída, ter um plano B, um plano C e mais. Não acreditar em salvadores. Cada de nós tem é de assumir responsabilidades e unir-se com aqueles que têm esta ideia de liberdade, responsabilidade e energia para vencer dificuldades.
Quanto aos 50 anos do 25 de abril, que frase gostaria de deixar?
O futuro depende de nós.
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