Um romance, uma autobiografia, um relato e um diário. Quatro géneros literários distintos e que podiam resultar em quatro diferentes livros, mas que em “Confiança” se sucedem em quatro secções para pôr em causa a nossa perceção do que é verdadeiro ou não.
Nascido na Argentina, em 1973, e criado na Suécia, é nos Estados Unidos que Hernán Díaz hoje se considera em casa — literal e literariamente, já que é em escritores como Henry James e Edith Wharton que se revê. Apesar de chegar tarde ao mundo literário como autor publicado, tomou-o de assalto com “Ao Longe”, finalista do Pulitzer e do PEN/Faulkner e editado em Portugal em 2021 pela Livros do Brasil. Seguiu-se então “Confiança”, que esteve nas cogitações do Prémio Booker e chegou ao nosso país pela mesma editora este ano.
Nesse primeiro romance, Díaz abordou o Faroeste norte-americano, os mitos da conquista dessa terra por desbravar que eram os EUA e deste país como uma nação de emigrantes. Para tal, seguiu o protagonista Hakan, um rapaz sueco que se vê só e desamparado numa Califórnia que não conhece, cuja língua que ouve sair da boca dos demais não fala. E sem dinheiro para tentar chegar a Nova Iorque, onde se encontra o irmão. É atravessando o vasto continente que segue a narrativa em modo picaresco, conhecendo todo o tipo de pessoas na sua jornada.
Tal não podia ser mais distinto em “Confiança”, onde se acompanha o percurso de um magnata financeiro e da sua mulher, mas cuja veracidade quanto ao que realmente aconteceu nas suas vidas depende de quem conta a história. Um pouco como o que acontece com todos nós, donos e senhores das nossas vidas, mas apenas consoante quem o diz e o que diz.
O título original deste romance é “Trust”, palavra que na língua inglesa vai além do quão dispostos estamos a acreditar em nós próprios ou nos outros; significa também “obrigação”, o que, recorrendo ao dicionário, é um “título que representa capitais emprestados a companhias comerciais ou industriais, e que dá direitos (não confundíveis com os dos accionistas) a determinados interesses nos lucros”.
A escolha não foi por acaso. É nessa interseção do dinheiro — tangível ou especulado — com a realidade que Hernán Díaz quis contar esta história.
"Se o dinheiro é uma ficção, o capital financeiro é uma ficção de uma ficção". Que conceito é este?
É a noção de que de que não há nada que ligue uma nota de cinco dólares ao seu poder de compra. É uma convenção, uma ficção. Todos concordámos que esse bocado de papel tem essa capacidade de intervir no mundo neste sentido particular, o que eu considero fascinante. É similar à linguagem: não há nada nas palavras "casa" ou "árvore" que as ligue ao que significam, uma casa e uma árvore. Tanto o dinheiro como a linguagem são estas convenções, estas abstrações, estes signos altamente disseminados e que têm um impacto direto no mundo. E não é por serem convenções ou ficções que são inofensivas, inócuas, ou que não têm consequências materiais muito concretas no real. E acho que isso diz-nos algo sobre a literatura. Não é algo apenas inocente ou inventado; tem um papel crucial na forma como compreendemos e como olhamos para a realidade. É algo moldado por um conjunto de narrativas.
"podes ter uma definição mais abrangente do que é literatura e conceber que é qualquer tipo de ficção que dizemos a nós próprios e aos outros para nos compreendermos e aos outros. Nesse sentido, a literatura é inescapável, porque estás sempre a contar histórias sobre quem és, como é o mundo e como ambos se relacionam."
Mas se podemos optar por ignorar a literatura nas nossas vidas, o mesmo não é possível com o dinheiro ou a linguagem. São algo de totalitário nas nossas vidas.
A forma como consegues, ou não, evitar literatura ou ficção depende de como as defines. Se o fizeres em termos institucionais, ou seja, algo que é suportado por uma indústria editorial, pela academia, pela imprensa — como tu, ou a crítica ou certos discursos ou textos que circulam nesses meios institucionais —, essa é uma forma aceitável de conceber o que é literatura. Mas podes ter uma definição mais abrangente do que é literatura e conceber que é qualquer tipo de ficção que dizemos a nós próprios e aos outros para nos compreendermos e aos outros. Nesse sentido, a literatura é inescapável, porque estás sempre a contar histórias sobre quem és, como é o mundo e como ambos se relacionam. Se pensares em literatura nesse segundo sentido, então não há nada para lá da literatura, o que, para mim, é algo fascinante e em que acredito.
E porquê escrever uma obra de ficção sobre essa ficção que é o dinheiro?
Porque considerei que ninguém ainda o tinha feito de forma correta. Não estou a dizer que o consegui, mas sim que, já que ninguém ainda o tinha feito de uma forma que me agradasse, foi algo que me pôs a pensar. É para mim interessante, como referimos, que o dinheiro seja esta entidade universal e, contudo, o cânone literário ocidental não fez um bom trabalho a falar sobre isso. Uma vez mais, e quero ser muito claro, não estou a dizer que fui eu que acertei. Só estou a dizer que existe uma espécie de dissonância, de ponto cego...
De pudor?
Sim, essa é também uma palavra que tenho usado bastante para falar sobre o tema, e que vai aparecendo no romance. Vemos esse pudor no nosso dia a dia. Se te perguntar quais são os teus rendimentos, ficarias bastante desconfortável e não mo dirias. E eu não to diria se me fizesses essa pergunta. Há algo de muito profundo, é uma sensação estranhamente física, é algo impensável, tal como seria impensável eu tirar a t-shirt durante esta conversa. É algo que nunca faria.
"ao elevar o dinheiro a uma dimensão estética, transcendente, mística, estás conferir-lhe uma camada afetiva, o que penso ser extremamente perigoso e algo que te faz perder a noção da sua função e causar muitos estragos nesse processo. E também passas a acreditar que existe algum mérito no que estás a fazer, de que é uma vocação maior ou uma missão, quando só estás a ver números a aumentar"
Não será também a ideia de que o dinheiro que fazemos é uma extensão de nós próprios, do nosso valor e dos nossos propósitos?
Não sei. Acho que sim, isso é verdade até certo ponto. Quer gostemos ou não, é algo que nos define porque vivemos neste mundo hiper mercantilizado onde és, em grande medida, definido pelos teus rendimentos, o teu poder de compra, o que vestes, o que consomes... Mesmo que te recuses fazer parte desta lógica, essa recusa passa a ser também o que te define. Não há escapatória. No entanto, acho que isso não explica por completo o porquê das pessoas não gostarem de falar sobre isso [dinheiro], ou recusarem-se mesmo a fazê-lo. Não tenho uma resposta, mas parece ser algo muito invasivo quando te questionam sobre o tema.
Em algumas das passagens do livro, descreve a acumulação de capital como um jogo, o acumular pelo próprio prazer de acumular. Em certas alturas, caracteriza-a da perspetiva de uma das personagens como uma forma impessoal de beleza; noutras, quase como notação musical, regida pela matemática. Que qualidades tem o capitalismo que o tornam tão intoxicante?
Essas passagens descrevem-no muito bem. O que estava a tentar fazer é mostrar como penso que muitas pessoas ligadas ao dinheiro — investidores, especuladores, banqueiros, chama-lhes o que quiseres — consideram o que fazem uma forma de arte por si só. Não tem a ver com todas as coisas que podes comprar com todo esse dinheiro — ainda que, claro, essa seja também parte da razão. Mas não é sobre seres rico para poderes adquirir mais bens. Está mais relacionado com o puro prazer de ver os números a subir, com a abstração desse jogo e de como jogá-lo bem. E eu considero, do fundo do coração, que essa é uma coisa muito má, porque implica estetizar algo que devia ser apenas instrumental. O que pode ser mais instrumental do que dinheiro? Lá está, é apenas uma convenção através da qual fazemos transações comerciais; não é nada por si só, é totalmente vazio. E ao elevar o dinheiro a uma dimensão estética, transcendente, mística, estás conferir-lhe uma camada afetiva, o que penso ser extremamente perigoso e algo que te faz perder a noção da sua função e causar muitos estragos nesse processo. E também passas a acreditar que existe algum mérito no que estás a fazer, de que é uma vocação maior ou uma missão, quando só estás a ver números a aumentar.
Essa noção de mérito é algo que tem sido dissecado ao longo das décadas e é definida como um mito por si só. Tem sido descrito como um "caçador de mitos literário", focando-se especificamente em desmascarar os mitos e imperativos morais da América. O que é que o interessa tanto em fazê-lo?
Bem, é o seguinte, eu não tenho propriamente um plano, é como as coisas acontecem. Eu amo este país e também me deixa completamente louco, a sua história é bela e horripilante ao mesmo tempo. Amo a sua literatura, é muito do que me alimenta, por isso não é surpreendente que aquilo que me surge esteja ligado a esta tradição, porque é a que eu adoro. Não é que eu pense "ok, primeiro fiz o Faroeste, agora vou fazer os anos 20 e depois mais não sei o quê". Não é nada assim.
Mas o que o levou a abordar criticamente esta noção dos EUA como fadados à prosperidade?
É o que falámos há pouco. Eu acho que o dinheiro é algo tão importante para nós, no Ocidente, ocupa este lugar central, este tabu. Não sei se acontece o mesmo, por exemplo, na Ásia, mas no Ocidente é assim. Há esta lacuna na nossa cultura que quis tratar. Essa foi parte da razão. A outra foi como surgem os livros, que é estares continuamente à volta de um tema até te aperceberes que é esse o livro que vais escrever.
"há algo nos Estados Unidos que torna este país muito recetivo à ficção. Sinto que há um grande motor de produção de mitos nos EUA e, por isso, tanto o sonho como os seus contornos obscuros — todas as injustiças que o suportam —, tornam-se mais visíveis, porque há neste país uma grande tendência para o auto engrandecimento"
Estava a falar de como a ficção se manifesta na realidade. Pergunto-o da perspetiva de alguém fora dos EUA, se o cliché do Sonho Americano e da prosperidade à espera de quem lá vive não serviu como mito para a construção da América.
De certa forma, sim, mas podes escolher qualquer país no Ocidente e vais ver que, infelizmente, houve uma vontade imperialista em todo o lado. Olha para Portugal; não tem o melhor histórico, não é? Hoje é um país fantástico, mas também o foi [imperialista] agressivamente, e não só não o foi assim há tanto tempo, como foi assim durante séculos. Houve colonialismo, imperialismo, escravatura, racismo... e o que dizemos de Portugal, podemos obviamente dizer dos EUA, Inglaterra, França ou Espanha. Eu nasci na Argentina, onde a escravatura foi abolida mais ou menos ao mesmo tempo que aconteceu a revolução pela independência, o que foi bom, mas aconteceu um genocídio das populações nativas para tomar as suas terras. O que quero dizer é que, quando se pensa na história de qualquer nação do Ocidente e na sua prosperidade, foi sempre construída sobre barbárie, exploração e genocídio. Esta noção de que o Sonho Americano é, de certa forma, mais bárbaro do que outras conceções nacionais é algo em que devemos refletir. Claro que se baseou nessas coisas, mas infelizmente acho que essa é uma coisa que os humanos são muito bons a fazer, independentemente das suas nações.
Por outro lado, há algo nos Estados Unidos que torna este país muito recetivo à ficção. Sinto que há um grande motor de produção de mitos nos EUA e, por isso, tanto o sonho como os seus contornos obscuros — todas as injustiças que o suportam —, tornam-se mais visíveis, porque há neste país uma grande tendência para o auto engrandecimento. "É um povo excecional num país excecional, com uma história excecional" ou "é o melhor país do mundo"; tudo isto são mitos, é ridículo, mas por isso mesmo torna-se mais visível e gritante.
No que toca a auto engrandecimento, uma das personagens, o magnata Andrew Bevel, gosta de se equiparar a um homem providencial cujo ganho pessoal coincide com o bem comum. Como concebeu esta personagem?
Bem, é ficção, é alguém que eu inventei. Mas a resposta mais longa que posso dar é que encontras este homem com este tipo de tom por toda a história, e também na história norte-americana. Este homem que acha que os seus interesses privados coincidem com os públicos, o que é uma forma incrível de narcisismo. Basta pensar em qualquer imperador, em qualquer conquistador; eles acham que a sua ganância e o seu ego se mesclam com rumo da história, como se fossem uma encarnação da história. Faz-me lembrar o que Hegel disse sobre Napoleão, chamou-lhe "o espírito do Mundo a cavalo". Houve tantos homens assim — e sublinho a palavra "homens", porque são sempre eles que acham que são "um espírito a cavalo", a essência da história em si inata. Eu li uma data de autobiografias destes "grandes homens" e tentei perceber como é que eles escreveram [sobre si próprios]. Isso é visível por todo o romance: toda a pesquisa que a Ida faz na terceira parte é a pesquisa que eu fiz, eu meio que lhe dei tudo isso. Esse homem, Andrew Bevel, é, como descreve a Ida, um bocadinho como o monstro de Frankenstein. É uma criatura feita de diferentes partes do corpo de diferentes pessoas e de diferentes vozes com diferentes discursos. Ele é, intencionalmente, uma miscelânea monstruosa de peças diferentes.
Quanto a partes diferentes, "Confiança" está dividido em quatro secções distintas, cada uma com a sua própria voz e com diferentes mecanismos literários. Quão desafiante foi desdobrar-se nestas personagens tão distintas?
É tão desafiante quanto escrever 300 ou 400 páginas de forma consistente, com uma só voz. O meu livro anterior foi a antítese do "Confiança"; é muito claustrofóbico, muito confinado a um ponto de vista específico. Aliás, se tiver de comparar as duas experiências, acho que isso é mais difícil de manter durante um longo período de tempo e continuar a fazê-lo interessante para o leitor. Aqui [no "Confiança"] podemos saltitar, há uma folga para o escritor, porque podes fazer coisas diferentes, e também para o leitor, que lê vozes diferentes.
Mas porque estamos a tratar quatro vozes muito distintas em géneros diferentes e separadas, às vezes, por 50 anos, a parte mais difícil para mim foi fazer com que cada uma fosse credível e tentar fazê-lo elegante e discretamente. Sem grande gestos, grandes tiques estilísticos ou pequenos fetishes verbais para convencer quem está a ler que esta personagem é tão diferente das outras porque tem pequenas idiossincrasias. Queria que fosse muito subtil, mas ao mesmo tempo muito convincente.
"Considero a noção de verdade como algo necessário e que devemos lutar para tentar atingir, mas, em última análise, desconfio de toda a gente que diz tê-la deslindado. Só acredito em quem está a tentar alcançá-la o tempo todo [risos], não em quem já lá chegou, porque parte da natureza da verdade reside no facto de ser mutável."
Tenho a confessar que achei engraçado que Ida, que foi por si criada, fique absolutamente maravilhada com o "Obrigações", o livro ficcional do escritor Venner, que também foi por si criado. Apesar de toda a seriedade da obra, parece ter-se divertido muito a escrevê-la.
[Risos] Obrigado por reparares nisso! Há muitas pequenas piadas no livro e eu estava à espera que isso fosse notado. Essa, na verdade, foi uma parte difícil de escrever, porque ela [Ida] tem mesmo de gostar desse romance. Lembro-me de falar com a minha mulher e com os meus amigos que leram o "Confiança" e de ficar do tipo "isto é um bocado repulsivo, estou a dizer que a primeira parte que escrevi é fantástica"! [Risos] Mas depois ocorreu-me incluir críticas negativas e isso corrigiu as coisas, já não me senti tão sujo!
Quando Ida está a escrever a biografia de Bevel, sente o drama do biógrafo ou do "ghostwriter" (escritor fantasma), a tentar incorporar a vida de outra pessoa para contar a sua história. Mas esse não é também um problema parecido com o do romancista — que tem de dar voz a pessoas diferentes de si, mas que não o são assim tanto porque surgiram da sua cabeça?
Sim, de certeza que há uma semelhança. Um filósofo como Jaques Derrida teria muito com que se entreter com isto, ele que famosamente descreveu a escrita como um algo assombrado, de que há algo fantasmagórico quanto à escrita porque é uma espécie de presença de uma ausência. Se fores um orador, tens de estar lá para falar; como escritor, estás lá no momento da escrita, mas deixas um vestígio — o que também é uma noção muito espectral —, é algo que és tu e não és tu. São os resquícios fantasmagóricos que deixas na página.
"Se fores rico, podes comprar a realidade. É a derradeira coisa que podes adquirir, e depois podes impor essa realidade sobre os outros"
Uma ideia curiosa que explora no romance é como os livros policiais, que Ida e o pai lêem como ritual familiar, têm uma fórmula que começa com caos e dúvidas e acaba sempre com a ordem restabelecida e a verdade revelada, quando os culpados são apanhados. No entanto, a estrutura do seu romance parece contrariar diretamente esta ideia, porque a verdade está algures entre os diferentes relatos das suas personagens e tem de ser encontrada.
Considero a noção de verdade como algo necessário e que devemos lutar para tentar atingir, mas, em última análise, desconfio de toda a gente que diz tê-la deslindado. Só acredito em quem está a tentar alcançá-la o tempo todo [risos], não em quem já lá chegou, porque parte da natureza da verdade reside no facto de ser mutável. Além da matemática — de que eu nada sei —, acredito que parte de qualquer verdade é que ela é relativa, fugidia e em constante mudança.
É uma busca constante e é por isso que considero um pouco anacrónico escrever ficção policial como, por exemplo, fez Agatha Christie ou outros exemplos de ficção clássica de crime. Porque aprendemos com a ciência ao longo do século XX que a verdade depende do observador e o objeto de observação é sempre contaminado pelo mero ato de perceção; ele muda o que estás a ver. Parece-me que as conclusões [dos policiais] de que Ida fala, estes finais muito estáveis que apresentam o mundo como um todo, já não se aplicam à nossa experiência quotidiana tão fragmentada.
Há uma ideia no livro que é recorrente e fica na memória, a de que quando se tem poder suficiente, se pode torcer a realidade à sua vontade. Recorrendo a outro exemplo, uma das canções do musical Hamilton fala justamente na ideia de "quem vive, quem morre, quem pode contar a sua história". Uma das personagens de "Confiança" não tem esse direito, mas as outras três sim. Pode explicar um bocadinho esta questão?
A noção de torcer e alinhar a realidade é absolutamente crucial, é praticamente o núcleo de todo este projeto. O livro foi quase todo escrito durante a administração Trump e eu acho que todos vimos de forma muito aguda durante aqueles anos terríveis como a realidade pode tornar-se uma mercadoria. Tornou-se quase um bem de luxo. Se fores rico, podes comprar a realidade. É a derradeira coisa que podes adquirir, e depois podes impor essa realidade sobre os outros. Isto existe há muito tempo, não é uma novidade; acredito que tenha começado mesmo com a prensa de Gutenberg [risos]. Foi assim que se pôde distribuir narrativas de forma alargada, com as pessoas a tornarem-se cada vez mais alfabetizadas e poderem acedê-las. Essa foi uma grande mudança, às vezes ocorreu pelo bem, noutras não. Não esqueçamos que o primeiro livro a ser impresso foi a Bíblia, foi para isso que criámos a reprodução mecânica da palavra.
"queria mostrar formalmente a espécie de contrato que aceitamos cada vez que lemos. O quão recetivos estamos a acreditar em certas vozes, em certos géneros, vindas de certas pessoas, e de como despreocupados estamos em relação a outros tipos de vozes"
Ou seja, foi praticamente a sua declaração de intenções.
Totalmente, foi uma declaração de intenções, "é para isto que a vamos usar". Isto [manipulação de informação] tem sido assim durante vários séculos, mas a intensidade e a forma quase velhaca e descarada como aconteceu naqueles quatro anos [da Administração Trump] foi uma loucura. E é por isso que esta ideia ocupa um papel muito central no livro.
Outra coisa muito importante que tenho a dizer, e que vai ao encontro dessa questão de que uma das personagens principais não tem uma voz até ao fim, é que é por isso que o livro tem esta estrutura. Queria mostrar formalmente a espécie de contrato que aceitamos cada vez que lemos. O quão recetivos estamos a acreditar em certas vozes, em certos géneros, vindas de certas pessoas, e de como despreocupados estamos em relação a outros tipos de vozes. Este livro é uma espécie de convite ao leitor a questionar-se quando a estes contratos, predisposições e assunções.
E isso leva-nos a outra questão, de que a história do poder é uma história de homens, e de com as mulheres foram sempre colocadas num papel de submissão.
É incrível constatar que, quando lês história financeira, é toda ela masculina. Quero dizer, não é incrível porque não é nada surpreendente, mas é algo muito poderoso, percorrer documentos [com essa noção]. E outra coisa. Quando fui fazer pesquisa arquivística nas coleções privadas de magnatas americanos para escrever este livro, vi que ninguém quis saber das mulheres deles. Os seus documentos estavam desorganizados, em pilhas dentro de caixas que ninguém abriu em 100 anos. Ou seja, até hoje, essas vozes marginalizadas continuam completamente mudas.
"a misoginia atravessa todo o espectro ideológico e existe em todas as classes"
Ou seja, "por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher", mas não vamos ouvir a versão dela. Traça um paralelo interessante entre o pai de Ida e Andrew Bevel, porque estão em extremos opostos no espectro ideológico, mas são duas faces da mesma moeda de misoginia — Ida tem sempre de navegar por entre egos masculinos.
Claro que a misoginia atravessa todo o espectro ideológico e existe em todas as classes. Por isso é que foi tão interessante para mim ter o pai, que é tão de esquerda e progressivo quanto possível, é um anarquista e um ativista, politicamente muito desperto à sua maneira, mas também completamente regressivo no que toca a papéis de género e às consequências do patriarcado. Isso é algo que vês na maioria das discussões ideológicas, hoje em dia inclusive, infelizmente. As mulheres acabam por ser o último tema da discussão — e são metade da população do planeta.
Outro aspeto que gostava de abordar no que toca aos conceitos de perceção e de verdade é a ideia de que as primeiras impressões são as que ficam connosco. Apesar do livro dar quatro perspetivas diferentes ao leitor, a primeira — o romance ficcional de Venner — acaba por marcar a bitola da história. Colocá-la especificamente no início foi uma decisão consciente?
É apenas a forma como o enredo e a estrutura foram montados. Gosto da ideia desse "romance" ser publicado e, voltando ao que falámos no início, reforçar que temos tendência a considerar a literatura como algo completamente desligado da vida quotidiana, que é apenas um passatempo, uma pequena atividade paralela inócua. O que quis mostrar é como um livro, uma obra de ficção, pode deixar uma marca na realidade. É por isso que começa com esse "romance". E, claro, o resto do livro tem estas narrativas meio a refutar-se e a desafiar-se umas às outras. Mas tudo começa nessa ficção e, quando acabas de ler o livro, refletes quanto à hipótese dos outros relatos "reais" serem ficcionais. O livro, em grande parte, é esta exploração da fronteira evanescente entre factos e ficção, entre história e literatura.
E foi dessa forma que tentou desafiar as nossas perceções?
Sim, mas eu não quero que tudo isto soe a algo muito conceptual ou deliberado. Há dois aspetos de que não falámos ainda. O primeiro é que o caos e a aleatoriedade, que são parte de qualquer iniciativa criativa, devem ser acolhidos. O segundo, mais importante, é que eu quis que isto fosse divertido, que fosse uma experiência de leitura estimulante. É o que quero também como leitor, que me divirta e que me emocione, quero sentir alguma coisa. Não tem apenas a ver com o tipo de posição ou intervenção política que estou a tentar mostrar, ou com os aspetos conceptuais estou a tentar fazer chegar ao leitor, ou com a noção de história [no sentido histórico] que tenho. É também quanto ao que eu considerei ser mais tocante, o que considerei que chegasse ao leitor e o que me fez sentir enquanto escrevia. Essa é uma componente fundamental, isto não é apenas um exercício intelectual. [O livro] não funciona se eu não sentir nada.
Tal como uma das personagens, fala e escreve em múltiplas línguas. Existe esta noção de que pensamos e expressamo-nos de formas diferentes em línguas diferentes. Como chegou à sua voz literária em inglês?
Bem, não considero haver algo tremendamente específico quanto a encontrar a minha voz em inglês. Acho que encontrá-la em búlgaro ou português teria ocorrido da mesma forma, que tem a ver quase exclusivamente com ler e com tentar perceber o que mexe contigo nas coisas que lês. E depois começas, talvez um pouco como forma de imitação no início, a tentar fazer o mesmo: tentas copiar [essas referências] e, nesse processo, acabas por deformá-las e desfigurá-las. No final, vais acabar com algo que, esperas, seja mais ou menos único. Acho que sou o escritor que sou devido aos escritores que li, é tão simples quanto isso.
"Adoro romances que se questionam quanto ao que um romance deve ser e a resposta ser esse mesmo romance que estamos a ler."
E que escritores o influenciaram na escrita de "Confiança"?
Ooh, houve tantas, sabes?
Pergunto porque o livro mistura vários géneros literários e isso pode implicar essa navegação por entre referências.
Bem, muito do que li foram documentos históricos e coisas, vá, mais técnicas. Textos que me informaram quanto à dimensão factual deste projeto. Mas isso não me influenciou a nível estilístico ou literário. Nesse aspeto, foram os autores de que sempre gostei. Henry James e Edith Wharton foram muito importantes... Virginia Woolf foi enormemente importante para este livro. Assim como Joan Didion ou Gertrude Stein. E também escritores como, por exemplo, Nabokov ou Borges, porque eles trabalharam tanto nesse conceito de livros dentro de livros, ou Flann O'Brien, outro escritor muito importante para mim. É muito variado e sinto que muitas influências podem ser encontradas neste livro; eu faço-o de forma brincalhona aqui e ali, menciono-as ou deixo pistas que lhes são alusivas.
Para terminar, referiu em várias entrevistas de que não gosta do termo "romance histórico" quer para descrever as suas obras, quer como termo para um género literário em si mesmo. Mas ao mesmo tempo evita escrever livros fixados na atualidade ou com um intuito programático. Onde é que, para si, ficam os seus romances?
Para evitar repetir-me quanto àquilo que já falámos, vou colocar as coisas nestes termos: Adoro romances que se questionam quanto ao que um romance deve ser e a resposta ser esse mesmo romance que estamos a ler. Adoro livros que fazem este círculo auto-referencial, perguntando-se sobre o que deve ser um romance, o que é que significa a literatura, qual pode ser a natureza da ficção. E a pergunta em si mesmo é o romance que estamos a ler. Falei de Nabokov e O'Brien, que fizeram isso, mas também podemos referir-nos a "Dom Quixote, "A Vida e Opiniões de Tristram Shandy" ou "Moby Dick" como romances que tentam obsessivamente perceber o que raio é um romance. É o que também tentei fazer aqui, uma ficção que tenta perceber o que é a ficção. Acho que essa é a resposta possível.
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