As diferenças entre uns e outros sempre foram terreno fértil para o humor. Brincar com as dissemelhanças que separam as culturas e formas de viver, entre clubes ou até sexos é, em grande medida, o mote principal das piadas. E mesmo em tempo de guerra isso não é exceção.
Estamos em plenos anos 1980. Estados Unidos da América (EUA) e União Soviética mantêm uma constante tensão. A Guerra Fria congela as relações entre os países; por entre a névoa da ameaça nuclear e a vontade de derrubar o muro que separava o ocidente do oriente, nem por isso os espiões americanos perdem o sentido de humor.
A prova está no documento da CIA, os serviços secretos dos EUA, lançado online no meio de 13 milhões de páginas que incluem OVNIs, experiências psíquicas - e piadas americanas sobre a União Soviética.
As duas páginas foram tornadas medietizadas por uma agência russa em janeiro. Nelas há 11 anedotas, que serviam para aliviar a tensão nos gabinetes da inteligência americana. “A embaixada dos EUA em Moscovo enviava, anualmente, uma lista de algumas das melhores piadas que tinha apanhado”, diz Peter Clement, atualmente a trabalhar para a CIA na Europa, mas, à altura, responsável pela análise Soviética nos anos 1980. “Refletiam o estado de espírito do público”, explica.
E o estado de espírito soviético parece ser, no mínimo, animado, se tivermos em conta apenas o documento.
Há piadas sobre a falta de géneros alimentares:
Um homem vai a uma loja e pergunta “Não têm carne?” “Não”, responde a vendedora. “Nós não temos nenhum peixe. A loja do outro lado da rua é que não tem nenhuma carne.”
Um trabalhador à espera na fila para o licor diz, “Estou farto, guarda o meu lugar, vou dar um tiro no Gorbachev.” Duas horas depois volta para o seu lugar na fila. “Apanhaste-o?” “Não, a fila lá era ainda maior que a fila aqui”.
Sobre as diferentes formas de governar:
Um comboio onde seguiam Lenine, Estaline, Khrushchev, Brezhnev e Gorbachev para de repente quando as linhas acabam. Cada líder aplica a sua própria e única solução. Lenine junta trabalhadores e povo das áreas circundantes e exorta-os a construírem mais linha. Estaline mata a tiro a tripulação do comboio quando este continua sem se mexer. Krushchev reabilita a equipa morta e ordena que as linhas atrás do comboio sejam arrancadas e postas à frente. Brezhnev fecha as cortinas e balança-se para a frente e para trás, fingindo que o comboio se está a mexer. E Gorbachev convoca uma manifestação em frente da locomotiva, onde lidera o cântico: “Não há linhas! Não há linhas! Não há linhas!”
E sobre a liberdade nos dois blocos em que o mundo se dividia:
Um americano diz a um russo que os Estados Unidos têm tanta liberdade que ele pode estar em frente da Casa Branca e gritar “Que se lixe Ronald Reagan.” O russo responde: “Isso não é nada. Eu também posso estar em frente do Kremlin e gritar, ‘Que se lixe Ronald Reagan’”.
O humor está aqui como uma mostra da atmosfera política de então. “Toda a gente sabia que a União Soviética estava em colapso. A sensação de que este sistema estava essencialmente morto”, diz Nina Khrushcheva, professora de relações internacionais na New School University, em Nova Iorque (EUA) e bisneta do político soviético Nikita Khrushchev, que co-protagonizou uma anedota sobre os desafios do desenvolvimento de infraestruturas ferroviárias.
A abertura da liderança de Gorbachev permitiu que o humor se tornasse uma coisa comum para os russos. “No tempo de Estaline”, conta Nina Khrushcheva, “isto não teria sido possível. Se ele descobrisse a origem destas piadas essas pessoas teriam sido mortas”.
Hoje, porém, diz Krushcheva, o ambiente na Rússia de Putin faz com que as piadas sobre o líder russo sejam raras. “Quando o teu ambiente é aberto, não precisas de fazer piadas. Quando o teu ambiente se fecha, começas a opor-te ao regime desta forma”, explica.
Já num cantinho a sul da Europa, fora do grande palco internacional, no Estado Novo, o teatro de revista ganhou importância com a sátira política e social que escapava à censura.
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