Ele era “a” raiva, não “uma”. “Uma” constitui especificidade, e a raiva de Kurt Cobain era tudo menos específica. E parecia tomar conta dele, fundir-se nele, nas suas canções, nas suas palavras, nas suas atitudes. Era a raiva universal, adolescente e pós-adolescente, a raiva provocada pela anomia, pelo desânimo, pela depressão, pela ideia de que estamos isolados dos restantes, de que existe alguma coisa muito para além daquilo que conseguimos ver, ouvir, sentir. Pela ideia de que existe algo melhor, uma revolução que aguarda apenas a sua primeira salva.
A raiva, palpável e imutável, levou-o a escrever canções como 'Smells Like Teen Spirit', que acabou por se transformar no hino de uma geração inteira – mesmo que Cobain não quisesse, nunca quis aliás, ser o porta-voz de uma qualquer juventude alienada. Levou-o a compor “Nevermind”, o álbum que mudou para sempre a história do rock n' roll, levando as grandes editoras a olhar – pela primeira vez – para aquilo que se passava no underground, longe das flores e dos romances e da alegria que permeiam boa parte da música pop devoradora de tabelas de vendas. E levou-o, em última análise, a romper com tudo: a 5 de abril de 1994, Kurt Cobain empunhou pela última vez a caçadeira que comprou (e que foi registada em nome de Dylan Carlson, dos Earth) e disparou contra si mesmo.
A morte de Kurt Cobain foi, de certa forma, também a morte do movimento e da música grunge, mesmo que 1994 tenha sido ano de boas colheitas: bandas como os Soundgarden, Pearl Jam ou Alice In Chains editaram, todas elas, alguns dos seus melhores trabalhos (“Superunknown”, “Vitalogy” e o EP “Jar Of Flies”, respetivamente). Pouco tempo depois, seria o nu metal, o rock gótico-industrial de Marilyn Manson e os mais higiénicos imitadores do grunge (os Creed, por exemplo) a tomar conta dos headphones, das colunas e dos leitores de CDs dos fãs de rock. A figura maior do grunge transformou-se em mártir, e a partir daí já mais nada seria o mesmo.
No entanto, o seu espírito vive – como o costumam fazer os espíritos dos mártires. Cobain entrou para o famigerado grupo dos 27 (isto é, músicos que morreram aos 27 anos; um grupo do qual fazem parte figuras históricas como Jimi Hendrix, Jim Morrison ou Janis Joplin, e até o “pai” do blues e avô do rock, Robert Johnson) e deixou, para além da dúvida e da saudade, um enorme legado. É por isso que continuamos a falar e a escrever sobre Cobain, sobre os Nirvana e sobre o grunge sempre que existe alguma efeméride a assinalar, quer seja o seu nascimento, a sua morte, o lançamento de “Bleach” ou de “Nevermind” ou de “In Utero” ou até, mais recentemente, o dia em que o Cristo de flanela visitou Cascais.
E é também por isso que, tal como acontece com muitas outras bandas icónicas – Pink Floyd, AC/DC, Beatles... –, há por todo o mundo dezenas de bandas de tributo que continuam, ainda hoje, a tocar as canções de Kurt Cobain e dos Nirvana. Os Negative Creeps (nome retirado a uma das canções dos Nirvana), uma banda sediada em Newry, na Irlanda do Norte, são um desses casos – e até foram algo pioneiros naquela região, no que a bandas de tributo aos Nirvana diz respeito. “Não havia nenhuma, localmente falando”, conta-nos o baixista Patrick Campbell, numa conversa por e-mail. “Todos nós éramos fãs dos Nirvana. É divertido tocar esta música, tem muita energia”. E, se vamos falar de diversão, quase nenhuma outra banda de tributo a viverá mais como os ingleses Elvana, que misturam a música de Kurt Cobain com o estilo e a voz de um outro ídolo das massas: Elvis Presley. “Adoramos os Nirvana e o Elvis. Queríamos celebrar a música dos Nirvana de forma divertida”, explicou o guitarrista Daniel Bray.
Gonzalo Quesada, baterista dos espanhóis The Buzz Lovers, encontra um motivo mais... espiritual para continuar a celebrar a banda norte-americana. “Há oito anos, quando demos o primeiro concerto na nossa cidade natal [Córdoba], percebemos que era algo mágico, místico... Aprendemos a tocar os nossos instrumentos através das canções dos Nirvana, nos anos 90, por isso isto é para nós mais do que um tributo”.
De certa forma, será mesmo mais do que um tributo. É uma oportunidade para mostrar aos fãs de longa data, aos que não eram ainda vivos quando os Nirvana estavam no ativo, ou a meros curiosos o porquê desta música ter ressoado tanto e em tanta gente. O porquê da raiva, a força dessa raiva. A simplicidade das canções em si, poucos acordes ao jeito punk e uma gostosa carga melódica. Inícios mais suaves, refrães mais estrondosos, uma dinâmica a que se chanou quiet / loud [silenciosa/barulhenta, em tradução literal]. E mais: os tributos impedem que esta música fique esquecida no tempo ou na história. Como com tantas obras, da música dita clássica ao pop/rock, foi demasiado importante, demasiado impactante, para que pudesse vir a ser uma mera nota de rodapé.
Gonzalo não tem dúvidas: “Há um mundo antes dos Nirvana, e um mundo depois dos Nirvana”, conta. E nem Patrick nem Daniel esquecem o papel que o trio de Aberdeen teve no que disse respeito à abertura por parte do mainstream em relação ao underground: “Os Nirvana abriram as portas a muitas das bandas que se lhes seguiram”, conta o primeiro, arriscando uma comparação: “Foram como os Beatles do grunge”.
De facto, é possível elaborar uma longa lista de todos os artistas que beneficiaram, direta ou indiretamente, da exposição mediática dos Nirvana: os Melvins, por exemplo, assinaram pela Atlantic através da sua ligação ao trio. Daniel Johnston, o autor de 'True Love Will Find You In The End', passou a despertar o interesse do grande público quando Cobain foi fotografado usando uma t-shirt com a capa de um disco seu. E os Meat Puppets ou os Vaselines tiveram a “sorte” de ter Cobain a cantar as suas canções, no espetáculo acústico que os Nirvana fizeram para a MTV.
O sonho de muitos, em particular dos fãs de música “fora das margens”, parecia estar prestes a cumprir-se: o mainstream seria invadido pela cultura “alternativa”. Até que o corpo de Cobain é descoberto, na tarde de 8 de abril de 1994. Havia posto termo à vida três dias antes, de acordo com a análise forense efetuada. “Foi um dia triste”, recorda o baixista irlandês. “Lembro-me de ver muita gente consternada. À altura, eu não era um grande fã, pelo que não me afetou muito – o que não quer dizer que não fosse fã; vi os Nirvana a tocar em Belfast em 1992. Passei a apreciá-los mais após a morte do Kurt”, relata. A tristeza esteve, também, com o baterista espanhol. “Estava em casa, e um amigo ligou-me a contar-me. Não conseguia acreditar. O Kurt era muito sensível, conseguia sentir e percecionar muita coisa... Mas não aguentou mais”, afirma.
Tentar adivinhar o que teria acontecido à carreira dos Nirvana caso Kurt Cobain não se tivesse suicidado não é tarefa fácil. Talvez o trio tivesse lançado mais dois ou três discos laureados, dando digressões por todos os cinco continentes. Talvez a pressão exercida sobre Cobain o levasse não à morte mas a pôr um ponto final na banda, e a impeli-lo a seguir a solo (e hoje até poderíamos estar a falar de qualquer coisa como “Nirvana reúnem-se, 25 anos depois”). Talvez tivessem continuado mas experimentado com outras sonoridades, tendo em conta o ecletismo de Cobain.
“Acho que se o Kurt estivesse vivo, a banda teria acabado há muitos anos”, explica Gonzalo. “Não consigo imaginá-lo a tocar as canções dos Nirvana, 25 anos depois. Talvez se tivesse tornado escritor, poeta ou algo assim”, diz – uma perspetiva interessante, já que Cobain até colaborou com um dos ícones da geração beat e da literatura norte-americana, William S. Burroughs. O guitarrista inglês não partilha dessa opinião. “Vi recentemente uma entrevista com o Kurt, gravada pouco após o lançamento do “In Utero” [1993]. Nela, ele indicava que a sonoridade [do grupo] podia vir a aproximar-se de algo mais próximo da new wave. Apontava as semelhanças entre o que eles faziam e a forma como a música se desenvolveu, na cena punk dos anos 70, para a new wave. Teria sido fascinante perceber a forma como as coisas evoluiriam”.
Sem que haja possibilidade de o fazer, sobra então a música. Gonzalo aponta 'In Bloom' e “Nevermind”, o álbum que catapultou os Nirvana para a fama, como o seu magnum opus. Patrick prefere “Bleach”, o primeiro LP da banda, “fusão perfeita entre punk e pop”. E Daniel escolhe “In Utero”: “Esse disso é perfeito, Nirvana no seu melhor”. Numa coisa estarão todos de acordo: a morte de Kurt Cobain, e principalmente os contornos da mesma, continuarão a ser lamentados por mais e mais anos – ou, pelo menos, enquanto nada nem ninguém conseguir dissipar esta raiva. Escreveu Cobain, na sua nota de suicídio e citando Neil Young, que era melhor “arder de uma vez, em vez de se queimar aos poucos”. Teria sido talvez preferível extinguir a chama.
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