“Amália: Ditadura e Revolução, a História Secreta” é a biografia política de Amália Rodrigues, assinada pelo grande repórter da revista 'Visão', Miguel Carvalho. O livro, que teve o seu ponto de partida numa investigação com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, é publicado a 30 de junho, a poucos dias do centenário do nascimento da fadista.
A título de curiosidade, o registo de nascimento da fadista é a 23 de julho, mas Amália escolheu o dia 1 de julho para o comemorar. "Não sei o dia em que nasci (...) A minha avó dizia que eu tinha nascido no tempo das cerejas, que vai de maio a junho (...) Resolvi guardar as duas datas, porque assim sempre podia fazer duas festas de anos, com vinhito abafado e uns bolos secos", conta na sua biografia escrita por Vítor Pavão dos Santos.
Foram as palavras ditas por Saramago, noutra data, a da morte da fadista, que "despertaram" Miguel Carvalho para o trabalho que primeiro chegou aos leitores numa edição especial da revista 'Visão Biografia' e que agora, ao longo de mais de 500 páginas, se demora na resposta à pergunta: Quem foi realmente Amália Rodrigues?.
"Essa mesma Amália que se diz que era celebrada pelo salazarismo, algumas vezes fez chegar dinheiro através de pessoas, dinheiro que ela sabia que ia para o Partido Comunista, então na clandestinidade", disse o Nobel, em Paris, a 6 de outubro de 1999, numa reação à correspondente do jornal 'Público' na capital francesa. "Tenho o recorte dessa notícia", partilha o jornalista.
Às palavras de Saramago juntaram-se outras páginas de jornais. "Ao longo dos anos fui acumulando muitas notícias, muitas pistas", conta. "De vez em quando, quando fazia alguma entrevista, que nem sequer tinha nada a ver com o tema, aproveitava para falar da Amália", acrescenta.
A bolsa de investigação da Gulbenkian foi o "clique" para dar caminho a essa "pastinha" que a curiosidade e os anos alimentaram. "Fui percebendo o que tinha em mãos, e era agora ou nunca", recorda o jornalista do Porto.
"Na minha candidatura [à bolsa] coloquei essa questão à Gulbenkian: este é um projeto que tem este objetivo e que se não for feito agora temo que quando puder ser concretizado já não haja muita gente disponível para falar sobre esta época".
Miguel Carvalho sabia-o e o tempo confirmou-o. Armando Caldas (ator, encenador e fundador do Teatro Moderno de Lisboa) e Ruben de Carvalho (jornalista e histórico dirigente do PCP) faleceram no decorrer da escrita e não chegaram a ler o resultado do trabalho.
Trabalho que conta com mais de cem entrevistas a anónimos e personalidades, do fado à vida partidária. Entre elas, há testemunhos de Carlos do Carmo (fadista e 'rival' de Amália, ideia que o próprio desmistifica no livro), Manuel Alegre (um dos poetas que a fadista cantou), Joel Pina (guitarrista de Amália), Rui Vieira Nery (musicólogo, coordenador do grupo de trabalho das comemorações oficiais do centenário e filho de Raul Nery, guitarrista de Amália) ou David Ferreira (filho de David Mourão-Ferreira e antigo editor da Valentim de Carvalho).
Da investigação ao livro, que o SAPO24 pré-publica, aconteceu a ordem natural das coisas: "Percebi que não podia ficar pela investigação. Foram ditas e contadas coisas que só cabiam na dimensão deste trabalho".
De "Rainha do Fado" a "Princesa da PIDE", entre a ditadura e a resistência
"Sou fruto de um convívio familiar que era atravessado por militantes fervorosos de esquerda e militantes mais ligados à social democracia de Sá Carneiro ou do PS de Soares. No pós-revolução, a música também se refletiu nestes ambientes familiares e para o lado da família mais à esquerda a Amália era fascista".
O exemplo de Miguel Carvalho, que assume ter chegado tarde ao fado de Amália — descobriu-a pelo disco de Rão Kyao, o “Fado Bailado” (1983) — é espelho da história e da narrativa, como conta, que se construiu em torno da pessoa e da artista.
“Amália: Ditadura e Revolução, a História Secreta” é "uma biografia política de uma pessoa que afirmou toda a vida que não ligava à política", "o que é no mínimo irónico", salienta o autor.
A obra revela, em nove capítulos, documentos oficiais, designadamente um registo dos serviços centrais da PIDE com o pedido de bilhete de identidade de Amália Rodrigues, de 1957, e um relatório de 1939 que incluía o nome da fadista na denominada "Organização Comunista no Fado". Entre os registos inéditos está também uma carta do arquivo do antigo líder da ditadura, o ex-presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira Salazar, que Amália Rodrigues lhe escreveu dias antes da inauguração da atual ponte 25 de Abril, em 1966.
"Acho que a Amália precisava desta biografia, tendo em conta aquilo que ela foi como artista e a forma como redimensionou e foi a voz deste país no mundo. Era importante analisar o seu percurso à luz da ditadura e da democracia", explica.
Nesse percurso, Miguel Carvalho encontrou "uma mulher espantosa, contraditória, imperfeita, que estava debaixo de uma série de camadas que lhe puseram e que ela também cultivou". "E uma mulher que foi namorada e utilizada pelo regime — como também o foi pela democracia, é bom dizê-lo —, mas que ao mesmo tempo não falhava quando lhe pediam ajuda para os presos políticos ou quando era chamada para contribuir para à resistência à própria ditadura".
Nos capítulos da história que agora deixa de ser secreta, é contado como Amália deu contributos para o MUD Juvenil (Movimento de Unidade Democrática, controlado pelo PCP), pagou viagens a jovens comunistas a Varsóvia e entregava dinheiro ao seu cabeleireiro (Manuel Augusto Brito) para os presos políticos.
"Há quem diga que isto foi uma forma de estar bem com Deus e com o Diabo", conta o jornalista, acrescentando depois que tal é "tremendamente injusto, ainda que aqui ou ali possa ter sido verdade".
Sobre o pós-revolução, Miguel Carvalho diz que a "democracia demorou a perceber que não podia deitar Amália para o caixote do lixo do fascismo". "Foi um processo turbulento, que descrevo com a profundidade possível, mas que acabou por resultar naquela união nacional que hoje temos em relação a ela", explica.
Foi acusada de ser "a Princesa da PIDE", de se ajoelhar à ditadura, recebeu o título de cantora do regime e foi proclamado que o fado estava morto e que Amália morria com ele. "Tudo isso foi dito, foi dito em voz alta, e escrito. Muitas vezes e por gente bem pensante. E ela enfrentou todos estes ataques, sendo uma das primeiras vítimas de fake news, e sobreviveu. Foi ela que resgatou a sua importância, a sua qualidade artística, a sua dimensão e que obrigou, ainda que tarde, o país e as instituições a reconhecerem de facto que Amália seria sempre o que foi, independentemente dos regimes".
Mas nem tudo são águas passadas e se o autor tinha dúvidas "da necessidade do livro", o que se passou o ano passado, numa cidade no sul do Luxemburgo com forte influência da emigração portuguesa, é "prova de que nem tudo está resolvido". "O nome dela foi proposto para uma rua e a controvérsia que se gerou foi de tal ordem que essa ideia foi abandonada e o nome dado a outra pessoa. Os argumentos foram de que a rua não podia ter o nome da Amália porque ela tinha sido cúmplice do antigo regime, havia questões que estavam muito presentes".
Com um olhar jornalístico, entre o regime e a resistência, cruzando as histórias de quem teve oportunidade e o privilégio de conviver com a fadista, Miguel Carvalho quis mostrar que Amália não perde o seu "lado divino" mesmo quando resistimos à tentação de "colocá-la acima da espécie humana". "Por muito que ela tenha tido uma voz dos deuses", salienta.
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