No Japão, existe uma expressão idiomática que se escreve “物の哀れ”, que se lê como mono no aware e que se traduz, normalmente, como “o pathos das coisas”, servindo para descrever a consciência que se tem de que tudo é passageiro e o tempo não respeita nada nem ninguém. Em junho, num dos seus últimos ensaios, Ryuichi Sakamoto parece ter encarnado essa expressão, ao escrever: “Acabei de fazer 70 anos, mas quantas vezes mais poderei ver a lua cheia?”. Porém, também o terminou num tom de desafio, misturado com alguma resignação feliz: “Já que me deram o dom de viver, rezo para que possa fazer música até ao meu último suspiro, como os meus amados Bach e Debussy”.
Para já, os deuses da música parecem ter acedido ao seu pedido, apesar da fragilidade do seu corpo. No passado dia 11, Sakamoto divulgou, via streaming, aquela que poderá ter sido a sua última performance ao vivo, gravada canção a canção nos estúdios da NHK (a emissora pública japonesa) e editada para que se assemelhasse a um concerto tradicional. “Dar um concerto de uma hora a 90 minutos seria muito difícil”, justificou. Para os fãs do compositor, esta foi a despedida que há muito receavam, depois de no ano passado ter sido notícia que Sakamoto se encontrava a lutar contra um cancro no cólon, em fase muito avançada. Mas não a despedida definitiva. Em janeiro, ainda haverá “12”, um novo álbum de estúdio, a ser editado.
70 anos parece muito tempo para quem ainda viveu pouco, e uma eternidade para quem os viveu a todos. No caso de Ryuichi Sakamoto, uma das figuras maiores da música do século XXI e, provavelmente, o maior compositor da história do seu país, essas sete décadas parecem irrisórias quando nos detemos a escutar todo o grosso da sua obra, desde os tempos em que era um mago da pop nos Yellow Magic Orchestra, até às suas bandas-sonoras para filmes, passando pelos discos a solo e pelos seus trabalhos mais experimentais. “Do seu país”, mesmo que o próprio tenha brincado, em declarações à revista “The Wire”, em 1990: “As pessoas olham para mim como um artista norte-americano”.
Essa é uma percepção oriunda do próprio background de Ryuichi Sakamoto. Criança do pós-guerra, nasceu a 17 de janeiro de 1952, meros três meses antes de os Estados Unidos darem por terminada a sua ocupação militar do país que derrotaram na II Grande Guerra, com recurso às bombas de Hiroshima e Nagasaki. O fim da ocupação não significou, no entanto, o fim da influência – política, económica e cultural. O compositor não escapou a esta última. Na adolescência, não era a música tradicional japonesa aquilo que mais o fascinava, mas sim o rock n' roll: os Beatles, os Rolling Stones, os Kinks, o psicadelismo dos Pink Floyd e o jazz, especialmente o free jazz, que colocava lado a lado com os estudos de piano que teve desde tenra idade.
Ao entrar para a Universidade de Artes de Tóquio, com 18 anos, os horizontes de Sakamoto começaram a expandir-se. Licenciou-se em Composição Musical, estudou Etnomusicologia. Foi na faculdade que teve o seu primeiro acesso aos sintetizadores que acabariam por transformar toda a música moderna, e foi também aqui que passou a ter Claude Debussy como herói. “A música asiática influenciou-o, e ele influenciou-me a mim. A música dá a volta ao mundo e fecha um círculo”, disse, em 2010. O seu primeiro trabalho discográfico, conhecido no mundo ocidental como “Disappointment-Hateruma”, criado em parceria com o percussionista Toshi Tsuchitori, foi lançado em 1975, mas seria o seu encontro com Haruomi Hosono e Yukihiro Takahashi, dois anos depois, a alterar radicalmente o seu percurso.
Deste trio brotaram os Yellow Magic Orchestra, a resposta japonesa aos Kraftwerk. Apesar de terem surgido mais tarde que os seus comparsas alemães, acabaram por ter inúmeras semelhanças com estes, até por questões históricas: a Alemanha também tinha saído derrotada da Guerra e os seus jovens também queriam construir o seu próprio futuro, deixando para trás os pecados dos seus pais. Num país como o Japão, cujo “milagre económico” nos anos 50 e 60 o transformou num líder tecnológico, a escolha só poderia mesmo recair sobre a música eletrónica, mesmo que bebendo de outras fontes. Em “Techno Rebels: The Renegades of Electronic Funk”, o jornalista Dan Sicko escreveu que os Yellow Magic Orchestra “eram mais brincalhões” que os Kraftwerk, dando maior atenção aos arranjos, e encontrando espaço para versões dos Beatles e de Martin Denny – algo que os sérios robôs germânicos nunca fariam.
Nada mau para uma banda que, segundo Ryuichi Sakamoto, pensou no mundo antes de pensar no seu país nativo. “Fomos [Sakamoto e Takahashi] a casa de Hosono e ele apresentou-nos a ideia [para os Yellow Magic Orchestra] desta forma: fez um desenho do Monte Fuji e escreveu 'UM MILHÃO DE CÓPIAS'. Queria que tivéssemos algum sucesso nos EUA, não no Japão. Só depois viria esse sucesso”, contou à “The Wire” em fevereiro de 2000. Lançado em 1978, o álbum de estreia dos Yellow Magic Orchestra, homónimo, não atingiu esse número em nenhum dos dois países, mas permitiu-lhes alcançar o sucesso desejado: a culpa foi de 'Computer Game', canção que se tornou num êxito internacional no mesmo ano em que o enorme clássico Space Invaders foi o videojogo que mais vendeu em todo o mundo, e de 'Fireckacker', que acabaria por encontrar uma audiência entre os fãs de R&B e do então emergente hip-hop. Afrika Bambaataa, pioneiro da vertente electro, acabou a samplar este último; Carl Craig, que o foi do techno, incluiu o primeiro numa compilação de clássicos do género, em 2006; e até uma diva como Mariah Carey foi aos Yellow Magic Orchestra buscar a batida para a versão original de 'Loverboy', de 2001.
O sucesso levou os três músicos a focarem-se no grupo, que mantiveram até 1984, já depois de sete álbuns de estúdio, vários singles notáveis (como 'Behind The Mask') e, até, uma aparição no programa de televisão norte-americano “Soul Train”, dedicado sobretudo à música negra – o que atesta à sua enorme influência. Pelo meio, Sakamoto ainda encontrou tempo e criatividade para lançar álbuns a solo, o primeiro dos quais, “Thousand Knives”, misturou poemas escritos por Mao Tsé-Tung, temas ao piano e os borbulhantes ritmos eletrónicos dos Yellow Magic Orchestra. “B2-Unit”, logo a seguir, deu ainda mais força à sonoridade electro através de 'Riot In Lagos', canção que o “The Guardian” elegeu em 2011 como um dos 50 mais importantes momentos da história da música de dança. Fora do seu grupo, iniciou uma relação de amizade e musical duradoura com David Sylvian, dos Japan, colaborou com Adrian Belew, dos Talking Heads e King Crimson, e participou no filme que o iria apresentar a um público mais dado à imagem do que ao som: “Feliz Natal, Sr. Lawrence”.
O filme, estreado em 1983 e com David Bowie num dos papéis principais, conta com uma banda-sonora que é também da autoria de Ryuichi Sakamoto, e que se diz ter contribuído para que “Feliz Natal, Sr. Lawrence” se transformasse numa obra de culto. À altura a opinião dos críticos dividiu-se, mas 'Forbidden Colours', fusão do tema-título original com a voz de David Sylvian, tornou-se num êxito comercial. No entanto, o seu autor garantiu não entender o porquê de o público o ter acarinhado. “Fiquei surpreendido com as reações ao 'Feliz Natal...'”, afirmou à “The Wire” em 1990. “Não sabia que o sentimentalismo era tão popular, que tinha uma função emocional tão forte nas pessoas”. Não obstante, filme e álbum tornaram Ryuichi Sakamoto num nome conhecido, levando-o a ser chamado a compor, em 1987, outra banda-sonora, desta feita para “O Último Imperador”: acabou a vencer o Óscar para Melhor Banda-Sonora Original.
As suas raízes etnomusicológicas levá-lo-iam a explorar, nos seus discos a solo, a música das ilhas japonesas de Okinawa, as sonoridades latinas (como o flamenco) e a música africana. Em 1996, lançou um disco de versões dos seus próprios trabalhos, com arranjos para piano, violino e violoncelo, que assinalou o seu regresso a sonoridades clássicas - “BTTB”, de 1999, foi feito inteiramente ao piano e o seu título é um acrónimo para back to the basics. Dois anos depois, teria o privilégio de tocar no piano que pertenceu a Antônio Carlos Jobim, para o álbum “Casa”, que gravou no Rio de Janeiro com o violoncelista Jaques Morelenbaum e a esposa deste, Paula. Mas mesmo esta incursão pela simplicidade do que já se conhece não o impediu de experimentar. Prova disso é o álbum “Vrioon”, de 2002, com Alva Noto, músico alemão conhecido pelas suas técnicas de manipulação digital do som. Três anos depois, seria responsável pelos toques de telemóvel do modelo Nokia 8800, antes de regressar momentaneamente aos palcos com os Yellow Magic Orchestra, para uma bem recebida reunião.
O homem que passou boa parte da sua vida adulta a fazer música viu-se obrigado, em 2014, a parar. Um cancro na garganta obrigou-o a procurar tratamento e a cumprir uma pausa de um ano, assinalando-se o regresso com a banda-sonora de “Haha to Kuraseba”, de Yoji Yamada, e de “The Revenant: O Renascido”, de Alejandro Iñárritu, que lhe valeu uma nomeação para um Globo de Ouro. “async”, de 2017, marcou o retorno aos discos a solo. E, em 2018, assistiu-se à estreia de um documentário sobre a sua vida e obra, “Coda”. Em entrevista à revista “Hyperallergic”, Sakamoto confessou que teve algumas dúvidas em se expor dessa forma - “desde pequeno que quis ser anónimo” -, mas admitiu também que o documentário lhe permitiu recordar algumas memórias preciosas. Sendo que a entrevista abre com uma frase que o descreve quase na perfeição: “Quero sempre ouvir coisas novas, tanto minhas como de outros”.
Com o anúncio de nova batalha contra o cancro, essas “coisas novas” terão que voltar a ser colocadas em segundo plano, mesmo que já haja um álbum novo na calha: “12”, que sairá em janeiro, no mesmo dia em que Ryuichi Sakamoto (assim se deseja) completará 71 anos de vida. O concerto-streaming em jeito de despedida terá sido, desta forma, o seu último contacto com um mundo que sempre mostrou gosto em amar, e que se reflete na obra deixada, nas suas posições anti-nuclear, no seu fascínio pela natureza – de que o mono no aware também faz parte. Porém, talvez Sakamoto se tenha esquecido daquilo que significa o caracter “龍”na escrita japonesa: “dragão”. Que, no folclore do país do sol nascente, é visto como um símbolo de longevidade. Tudo é passageiro, mas há obras que serão eternas.
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