Rapper, produtor, poeta. De Chelas para os ouvidos de dezenas de jovens, os de hoje e os que cresceram, como ele, à procura de uma batida perfeita. Vinte anos separam “Entre(tanto)", o seu registo de estreia, dos concertos no Coliseu de Lisboa, na próxima sexta, 18 de outubro, e no Coliseu do Porto a 8 de novembro. Pura coincidência a data redonda. "Fez-se uma luz", e com ela a vontade de ouvir alguns temas com orquestra. "Se me sentir bem, se sentir esse conforto, poderá haver mais. Mais concertos, mais Sam The Kid a solo".
Mais STK a solo, o pedido de muitos, adoçado com "Sendo Assim", o primeiro tema só seu em mais de uma década. "A primeira pessoa a querer que exista um álbum na rua sou eu", brinca em jeito de resposta. Não é que o tenhamos deixado de o ouvir depois "Pratica(mente)", de 2006. Desde então vem somando projetos, como a TV Chelas, com sede no seu "quarto mágico", ou colaborações, a mais recente com Beware Jack em Classe Crua.
Em entrevista ao SAPO24 diz que não quer que o comparem, mas pede respeito e que valorizem mais o que é ser rapper — por muito cool que a palavra hoje seja não basta rimar 'um-dó-li-tá'. Fala na possibilidade de haver "hip-hop adulto contemporâneo" e critica a sociedade de "sensibilidade exagerada" em que vivemos.
Eu não vou às urnas quando há eleições, e não é que tenha orgulho nisso, mas gostava de votar num [referendo] ao acordo ortográfico
Dizes ser obcecado pelas palavras. Há alguma que te tenha levado quase à loucura?
À loucura? Fogo, tenho de pensar nisso. Mas é capaz. Bem, loucura obviamente que é um exagero. É loucura entre aspas. Acontece, com frequência, tentar dobrar as palavras e ver as várias hipóteses silábicas de cada uma delas.
Mas a obsessão passa também pelo pesquisar, no google ou em dicionários, e pelo questionar. Há coisas que acho que estão erradas. E gostaria de contribuir quando fazem acordos ortográficos. Gostava mesmo. Eu não vou às urnas quando há eleições, e não é que tenha orgulho nisso, mas gostava de votar num [referendo] ao acordo ortográfico — porque é que tirámos o 'p' a Egito e não aos seus habitantes, os egípcios? Depois há a sonoridade das consoantes e das vogais, e de a praticar como se fosse um maluco. Ainda há obsessão com as sílabas e o brincar com a língua portuguesa, como com os provérbios. Neste momento, o tema da letra que estou a escrever é livre, mas o fio condutor são partes do corpo. Então é um desafio quase escolar. E a minha abordagem é tão louca que penso que só tenho a oportunidade de fazer isto uma vez, não vou fazer duas músicas em que o tema anda à volta de partes do corpo. Não quero estragar essa oportunidade. Há que saber ouvir…
E tu és um ótimo ouvinte…
Sou.
…mas também um ótimo conversador.
Agora que me estás a entrevistar estou a falar para caraças.
Com a TV Chelas colocas-te muitas vezes no nosso lugar, no de quem faz perguntas. Uma das últimas entrevistas que fizeste foi ao Common, no Iminente. Como é que consegues estabelecer a linha entre o Sam jornalista, o Sam fã e o Sam amigo?
O jornalista mete de parte, porque nunca serei um jornalista. Sou um curioso... Mas tento fazer o que um jornalista faz, que é recolher informação que não encontras em mais lado nenhum. Por exemplo, na entrevista do Common tentei que ele me tirasse uma dúvida e ele ao fazê-lo não a está a tirar só a mim. Ela mudará as centenas de artigos que têm creditada uma cena errada. Foi dito, pela boca do próprio, como é que são as coisas, que a música se chama assim e que não é produzida por aquela pessoa é por outra. Qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo, se vir aquela entrevista, já não pode mencionar ["Be (Intro)”] de forma errada.
Isto para dizer o quê? Que em entrevistas ou nos podcasts faço o trabalho de casa. Bastante. Com o Common fiz o trabalho de casa para estar à conversa uma hora. Nesse dia atuou também o Large Professor e preparei-me independentemente de saber se dava ou não para falar com ele. Se dava, dava; se não dava, não dava. E não deu. Não fiquei com a sensação de que perdi tempo da minha vida. Eu também sou artista, é na boa. Se também não acontecesse com o Common, não acontecia. A minha paixão e a minha entrega nesta função é enorme. Oiço os álbuns, pesquiso bastante, até pergunto coisas a amigos — 'mano, tens alguma pergunta ou alguma sugestão?'.
Basta abrir a caixa de comentários do teu Instagram e rapidamente lemos “és o maior poeta português”. Gostavas de receber o Prémio Camões pelo contributo artístico, cultural e de projeção da língua portuguesa?
Não quero receber prémios. E sinceramente, vou-te dizer, acho que não estou nesse nível.
E não achas que alguns jovens se identificam mais com uma letra tua para análise numa aula de língua portuguesa do que, a título de exemplo, com um poema do Cesário Verde?
Não queria desvalorizar a minha cena, atenção. Até acho isso mais eficaz; se o objetivo de um professor for abrir a mente à próxima geração... 'Ok, o Samuel aqui na primeira linha pode ter um errozinho ortográfico, mas à quinta linha abriu-me a mente para um tema do caraças e inspirou-me'. Isso conta muito, inspirar o próximo mesmo que eu não seja perfeito.
Falaste na possibilidade de uma letra tua poder ter um erro ortográfico. O teu domínio do português é algo que te preocupe?
Sou cada vez mais atento e estou constantemente preocupado com isso. E com o tempo fui descobrindo erros, que admito. Há outros que me tentam chamar a atenção e não aceito.
Como quando te alertam de que é adesão e não aderência, como já te ouvi justificar numa entrevista?
Por acaso nessa conversa [à rádio Observador], estava armado em sabichão e até digo um erro. Digo 'vaiam ao dicionário'. É-me difícil tirar essa, digo muitas vezes, pá.
Na oralidade damos erros, e às vezes nem reparamos, que nunca cometeríamos na escrita.
Olha, era isso que te ia dizer. Se estivesse a escrever pensava: 'hey, espera aí'. Mas há coisas que não mudo. Numa música com o Mundo Segundo digo 'faz ela virar poesia'. Eu sei que é fá-la. Epa, mas se escrevesse fá-la não estava a ser eu. Parece que é muito caro, demasiado académico. Pá, 'faz ela’ é uma maneira de falar. Tenho a noção de que pode não ser perfeita.
Voltando à questão dos prémios, perto da zona onde estamos a falar há um Auditório Samuel Mira. A escolha do teu nome para o batismo de um espaço em Chelas não é uma forma de te premiar?
Isso são os meus prémios. Isso ou quando o Melo D me chamou ao MusicBox porque ia fazer uma cover de uma música minha. Ou o som do Valete que me homenageia. São cenas que não têm preço e, acima de tudo, que não estão a competir com ninguém. Até porque os prémios têm, por vezes, política por trás. A arte é subjetiva e ninguém é melhor do que ninguém. Isso só acontece no desporto e mesmo assim há doping. Na música, a não ser que... A não ser que nada. Ia referir a questão das vendas, mas os números também podem ser manipulados.
Nem gosto de receber prémios, como aliás nunca estive presente para receber nenhum. Não estou a cuspir na cena porque ao mesmo tempo até agradeço que me nomeiem. Só não quero que me comparem. Não quero ser arrogante, mas não preciso disso para o meu ego, para sentir que estou bem ou que estou a ter sucesso. Agora, com trinta e poucos anos ter um nome num auditório, privilégios que normalmente até só são dados a pessoas que já morreram, pá, isso para mim é incrível. Fico mesmo sensibilizado.
Deixa-me pegar no facto de teres dito que a arte é subjetiva. O politicamente correto já chegou ao hip-hop?
Diria que não e espero que não. No geral, sem me estar a referir só ao hip-hop, as pessoas têm de ter mais noção da sociedade onde vivemos, onde se opina por tudo e por nada. Até te vou dar um exemplo: uma das últimas músicas que eu e o Mundo Segundo lançámos, que se chama "Brasa", era para ter saído numa altura em começaram a surgir muitos incêndios. Isso não é ser politicamente correto, porque a nossa música nem fala sobre isso, mas é saberes em que sociedade vives e que há uma sensibilidade mais à flor da pele.
E pegando no caso recente do tema e do vídeo do Valete, que saiu num momento em que a sociedade está, por razões infelizes, mais desperta para o problema da violência doméstica. “BFF” deve ser condenada como foi e está a ser?
Não.
Acho que é mesmo ridículo e triste. Nem eu nem imensa gente viu qualquer tipo de polémica quando viu o vídeo. Não vi polémica absolutamente nenhuma, nenhuma. E eu tenho esse tipo de sensibilidade. Tipo 'epa, este carro aqui atropelou esta vaca, o pessoal dos animais vai aparecer'. Tenho sensibilidade para perceber se algo irá ter consequências nos dias de hoje. E neste caso, não. Só estive focado no tema traição, nunca me passou pela cabeça o tema violência doméstica. Uma música sobre a traição de uma mulher e de um amigo.
Antigamente o que era polémico era cool. Isto porque só tínhamos as declarações de insatisfação dos visados da polémica ou a das instituições. Hoje em dia tens a opinião do Manuel José, da Soraia Rafaela, da Joana Santos...
O que é que achas, então, que motivou todo este burburinho em volta do tema?
É assim que nós estamos. Estamos numa sociedade em que basta uma pessoa partilhar algo que depois é uma bola de neve. Depois do Imimente houve polémica por causa de uma pessoa que estava a passar e gravou uma cena. Partilhou e outra pessoa, que talvez seja mais influente, partilhou também. Isso foi o suficiente para o Observador e o New in Town noticiarem. E isso basta para haver pessoas a insultar o festival sem ainda se ter uma declaração ou saberes qual foi a razão. E a razão já foi explicada. E não te sentes ridículo? Não estou a dizer que as intenções da pessoa que fez o vídeo não são boas, mas o que temos mais hoje são o que gosto de chamar de exposers profissionais. Hoje vou ao cinema, ver o filme da Jennifer Lopez e relaxar um bocadinho. Ele também devia fazer o mesmo. Eu fui ao mural dessa pessoa e o post anterior [a esse] era: 'Amazónia, o ser humano é uma merda'. Pronto, vive a vida assim. São boas causas, mas relaxa um bocado, boy. E [pessoas como ele] é o que há mais por aí.
Neste caso do Valete, não sei se foi uma pessoa... Eu sei o que é que foi. E até refletindo... O post dele no Instagram teve muitos comentários e ele respondeu a uma publicação da Sónia Tavares, dos Gift. E aquilo já foi o suficiente para alguém no Diário de Notícias fazer um texto. Esse artigo foi depois multiplicado por todos os órgãos. O que fez com que humoristas twittassem a sua piada… e é a tal bola de neve. Antigamente o que era polémico era cool. Isto porque antigamente só tínhamos as declarações de insatisfação dos visados da polémica ou a das instituições. Vaticano indignado com um vídeo da Madonna - polémica. E um jovem dizia 'tá-se bem, foi polémico com o Vaticano, fogo'. Hoje em dia tens a opinião do Manuel José, da Soraia Rafaela, da Joana Santos...
[É preciso] parar um bocadinho antes de julgar. No caso do Valete, ou com qualquer que seja, se vais responder, pensa duas vezes. A quantos de nós já aconteceu isso? Eu acho que me controlo e tenho orgulho disso. Já fiquei tentado.… É respirar fundo. Mas aí é que está, se calhar se ele não tivesse respondido não havia material suficiente para andar... E ele respondeu, e ela disse, e ele depois respondeu a seguir. Acabas por ter um bate-boca na conta de Instagram, mas que já dá para fazer uma página de um jornal.
Mas acho que isto tudo é exagerado. Não vejo polémica nenhuma, nenhuma. E é pena estarmos nesta altura.
A primeira pessoa a querer que exista um álbum na rua sou eu
Nesta altura?
De sensibilidade exagerada. Okay, há coisas... Eu também gosto de ser justiceiro e quando vejo alguém a acusar: 'então agora deixa-me ver os teus telhados'. Quase ninguém está inocente. E se quisermos descontextualizar, podes ser a próxima vítima, ninguém está imune a isso.
O feedback positivo de "Sendo Assim", em “Mechelas”, mais de uma década depois do último tema a solo editado, não te encorajou a mais?
Tenho esse objetivo, mesmo antes de existir um álbum, de lançar mais músicas a solo.
Obviamente que todo o carinho que recebo contribui. Para sentir que, na balança do amor e do ódio, 95% é amor. Essas coisas não me passam ao lado. Mas quando faço as cenas, faço para mim. Também sou o meu maior fã. E a primeira pessoa a querer que exista um álbum na rua sou eu.
Mas neste tema a certa altura dizes "porquê fazer um álbum se ele dura meses". É uma crítica ao estado atual das coisas?
É uma crítica a todos nós, eu também consumo dessa forma. Eu continuo a ser aquela pessoa que quer estar a par de tudo o que saia, sou a pessoa que mostra as músicas aos meus amigos e que dá as novidades.
Que novidades é que nos podes dar?
De música?
O hip-hop não vai deixar de ser uma cultura jovem, e ainda bem, mas também não vamos ter complexos de ser um pouco mais velhos e falar de divórcio numa rima
Ou séries e filmes, que também sei que és um cinéfilo.
Sou, hoje vou ao cinema ver o da J.Lo [“Ousadas e Golpistas”]. Vou para aí duas vezes por semana ao cinema. Também vejo muitas séries. Acabei agora de ver a “Top Boy", na Netflix, e estou a seguir uma de comédia na HBO, “The Righteous Gemstones”. De música, saiu um novo álbum de Little Brother, que é muito bom; um de Skyzoo com o Pete Rock, também muito bom; o novo do Common, que não diria que é o melhor dele mas é sempre aquela qualidade. Curiosamente, todos estes álbuns que estou a mencionar, diria que são álbuns para adultos. É engraçado, estamos numa fase em que já existe rap que fala para ti sem pudor. É primeira vez que estamos a testemunhar o rap ter a idade que tem. O hip-hop não vai deixar de ser uma cultura jovem e ainda bem, que é preciso essa frescura, mas também não vamos ter complexos de ser um pouco mais velhos e falar de divórcio numa rima. 'Tá bem, um miúdo de 14 anos não se vai identificar com isso. Mas existem temas adultos e é possível haver hip-hop adulto contemporâneo.
Nesse sentido achei engraçada uma resposta que deste quando foste ao Maluco Beleza. Um dos comentários que ele te leu questionava se ias fazer música para sempre. E respondeste que a "Sendo Assim" podia ser algo escrito por ti com 60 anos. O teu público, que cresceu a ouvir-te, é o público dessas novas abordagens?
Exatamente, é mesmo isso.
Aquele bravado de ego, dos trocadilhos, irá fazer parte de mim à mesma, mas posso [agora] tocar num assunto sério. E em vez der ser uma versão introspetiva do Sam the Kid de 18-19 anos, agora posso abordar temas mais concretos. Mas não deixarei de ser de confronto, com a minha concorrência ou com 'esses intrusos que andam por aí' [canta], porque faz parte da cultura do hip-hop; não sei se farei para sempre, mas até agora não sinto a coisa ridícula.
Com a tua memória ou com o espírito arquivista que já te ouvi dizer que tens, podes vir a ser o Pacheco Pereira do hip-hop?
[ri-se] O Pacheco Pereira tem uma cena dessas? Por acaso não sabia.
Tem a Ephemera, uma biblioteca e arquivo pessoal. O espólio tem de tudo: revistas, panfletos, autocolantes, documentos que marcaram um determinado período da política portuguesa…
Então, ya, acho que é uma comparação justa nesse aspeto da memorabilia. Porque o que me estás a dizer são exemplos do que também tenho. Tenho autocolantes, revistas, tenho isso tudo. Sou um bocado de guardar as coisas, mais do que as outras pessoas. Apego-me às coisas que para mim são importantes.
Podes dar um exemplo de algo que tenhas guardado?
Há imensas coisas que só eu é que tenho. Cassetes, gravações ou fotografias... Ou mesmo memorabilia da minha vida, mas que pode ser reconhecida pelo público. Por exemplo, na História do Hip-Hop Tuga [espetáculo que aconteceu em março deste ano na Altice Arena], levei para o palco um espelho retrovisor, que segurava na mão que não tinha o micro. 90% das pessoas — ou 99%! — não sabia o que é que se estava ali a passar. Mas bastou para duas pessoas reconhecerem, como o Madkutz e o Chullage. No vídeo da "Não percebes" vou a andar e ao segundo verso, faço assim [gira a mão] e mostro que é o Chullage que está a filmar. O concerto aconteceu este ano e o videoclip foi gravado em 2001. Passaram quase vinte anos! Eu ainda tenho esse retrovisor, não fui buscar outro para o simbolizar. É esse o tipo de cenas. Tudo o que puder, guardo.
Como é que tens espaço para guardar isso tudo?
Não tenho [risos]. Neste momento estou à procura de um espaço para armazenar algumas coisas. Como agora tenho merchandising, realmente está a ficar difícil.
Queres o meu disco? Fala comigo. Eu sou a loja de música, da minha música
Por falar no Chullage, há uns dias partilhaste no Instagram um vídeo onde mostravas a origem do sample da "Rhymeshit Que Abala". Contavas que essa publicação tivesse tido tanta repercussão?
Já fiz isso algumas vezes, nos meus stories. Só comunico para aqueles que sabem. Posso até nem estar com a MPC [Music Production Controller], mas estou a partilhar a fonte onde fui buscar certo som. Só não estou a dizer qual; isso é uma lei, é proibido. Se tu perceberes o hip-hop nem podes perguntar. E eu já sou uma ratazana ao ponto de, quando estou a divulgar o original... Deixa-me explicar-te o marado da cena. Eu sei quase todos os samples que usei e sobre este som do Chullage, que é considerado um clássico do hip-hop nacional, já muita gente me tinha perguntado e eu não me lembrava. E aquela era uma MPC que estava estragada e para efeitos do concerto no Coliseu tive de a ressuscitar. E sempre pensei, quando ressuscitar esta MPC, vai ser a minha última hipótese de tentar descobrir qual era o sample. Mas essa MPC tinha pouca memória, então o fragmento que usava era o fragmento cortado. Se carregasse e fizesse shazam, não era tempo suficiente para ele saber que música era. Mas tive sorte porque encontrei um sample que não usei e que deixei mais tempo [o corte do original]. Quando oiço um bocado da voz, bam, já sei quem é o autor. Pronto, decidi fazer logo um vídeo para mostrar como se faz a magia acontecer. A cena interessante, para te explicar a cena da ratazana, é que como sei que há pessoas que 'ah, não sei quê', quando deixo o beat correr vinte-trinta segundos, mesmo que penses que estás a ouvir o original, ele já está alterado uns pontinhos para cima para o shazam não identificar. Porque ladrão reconhece ladrão, sei os métodos porque também os uso. Não queria que me viessem dizer 'eu já sabia', detesto os snobs do sampling.
Pode dizer-se que já inspiraste toda uma geração. Mas menos conhecido é o facto de teres inspirado o teu pai a escrever poesia.
A voltar a escrever. Já tinha era, por assim dizer, arrumado as botas. Por volta de 2006 é que lhe dei a dica para entrar no meu disco. Ele foi buscar um poema ao baú mas saiu efetivamente da 'reforma' ao fazer a introdução para o “Pratica(mente)”. Mas é um grande orgulho ter motivado o meu pai a voltar a esta cena. Já tinha um grande orgulho nele por várias cenas: já foi ciclista, já teve o seu restaurante, o seu blogue, o seu vinho, um jornal local... Sempre sem parar. Já mais maduro entrar neste mundo artístico, e com bastantes projetos, é de louvar.
Porque é que já não te encontramos à venda numa loja de música?
Porque é possível. Se tu quiseres o meu disco basta falares comigo. Assim eu não tenho de fazer parcerias com ninguém. Queres o meu disco? Fala comigo. Eu sou a loja de música, da minha música. Hoje há que usufruir dessas ferramentas. Acho que até é muito mais fixe [a possibilidade de] comprar à própria pessoa. Se fores dessas pessoas que gosta de comprar o físico….
A palavra hip-hop ainda é uma palavra cool, tanto para o artista, que quer pertencer à cultura, como para quem está no negócio dos festivais
Mas achas que isso é possível porque és o Sam The Kid ou um puto novo que estiver a aparecer pode fazê-lo da mesma forma?
Pode. Pode é não ter os mesmos resultados, mas acho que o caminho é esse. Podes começar com menos pessoas [a comprar], mas esse número vai crescer. O que é que uma loja de te dá? Qual é a cena da loja? Eu, como consumidor, já não entro numa loja há não sei quanto tempo. E eu faço muitas coisas em função de mim como consumidor. Imagino que hoje [a secção de música] deve ser tipo um canto. Um cantinho... E o resto é que é importante. Então para quê? As grandes, que hoje em dia já não são grandes, sempre nos trataram de uma forma que parece que nós é que precisamos delas. Nunca fui a favor de fazer as FNAC e o caraças. Fui com Orelha Negra porque sou membro do grupo e não quero ser o mau da fita. Nem é uma questão de pensar que sou superior a essas lojas. Não preciso. Parece que me estão a fazer um favor e pagam-me com um croquete.
Isso é voltar à base, ao do it yourself.
Eu comecei assim. Então, se sei o que é isso, regressar com este estatuto ainda é mais benéfico. Se eu já tinha um grande amor a fazer a cena…. 'Uma cópia? Quantas queres, dez?'. Meter o autocolante, fechar...
Como é que tens tempo para tudo?
Essa parte é que não é fácil.
És tu que tratas de tudo, és tu que vais aos correios....
Ya.
E o que é que a senhora ou senhor dos CTT te diz, já?
Já lá vendi muitos discos.
Porque não são só os discos, há o merchandising também.
Inicialmente ia muitas vezes por semana, agora junto tudo e vou uma, duas vezes no máximo. E tenho a ajuda da minha mulher. Mas somos mesmo só nós os dois.
É cool agarrares-te à palavra hip-hop. Mesmo que aches que não és desta caixinha, os próprios media ou a tua agência vão querer associar-te a ela (...) Ainda é uma palavra que por conveniência dá muito jeito
O hip-hop tem-se destacado. Nos últimos anos, e concretamente a nível nacional, começamos a ver uma aposta de nomes nos principais cartazes dos festivais. Os promotores começaram a aperceber-se de que havia ouvintes ou que se vendiam bilhetes?
As duas coisas, obviamente. Mas não as podemos culpar. Essa popularidade é que atrai muita coisa que não interessa e que me inspira a dizer que 'tu não és real' e essas coisas cliché [ri-se]. Felizmente, a palavra hip-hop ainda é uma palavra cool, tanto para o artista, que quer pertencer à cultura, como para quem está no negócio dos festivais. O hip-hop está mais forte do que nunca, o que faz com que toda a gente queira um pedaço. 'Também quero, também quero'. 'Mas tu nem és rapper, man'. 'Sou, sou, sei mandar uma rima: um-dó-li-tá'. É isso que acontece. Há muita gente que nem é do hip-hop. Tenho de perceber a sociedade onde estou e aceitar muitas coisas, claro que sim. Tu achas que quando falamos na história do hip-hop tuga mencionamos o Pedro Abrunhosa? Faço-te essa pergunta.
Não.
O Pedro Abrunhosa aparece no início dos anos 90 quando surge também o "Rapública". Porque é que ele não está inserido nessa cena? Ele também rappa. Ele também tem beats com funk, com groove, principalmente no primeiro álbum. E se eu te perguntar outro artista? O Melo D. Ele é inegavelmente alguém da história do hip-hop tuga. Entrou no “Rapública" e depois pertenceu aos Cool Hipnoise. Isto para te dizer o quê: eu pesquisei. Pesquisa no Google: Pedro Abrunhosa, rapper. Vão-te aparecer vários resultados. E depois aparece assim: 'em falta rapper' ou 'em falta hip-hop'. Agora a minha questão é, se ele aparecesse hoje, em 2019, com aquele trabalho, com a sua cena. Se pesquisasses, iam aparecer resultados ou não, derivado dos parâmetros de que nos baseamos hoje para dizer o que é rap ou que não é. Eu acho que sim. Porque é cool agarrares-te à palavra hip-hop. Mesmo que aches que não és desta caixinha, os próprios media ou a tua agência vão querer associar-te a ela. Porque ela vende e é bom que te associes a ela. Ainda é uma palavra que por conveniência dá muito jeito.
Como é que se deu esse salto, então? De um género que podia ser marginal a um género que é conveniente.
Por causa do negócio e porque dentro da juventude ainda é cool. O que faz seres ou não hip-hop é tu sentires-te como tal. O Melo D sempre disse que era, o Pedro Abrunhosa não. Mas esses gajos que hoje dizem que são, se calhar nem sabem o que é um scratch, não sabem a história, não sabem nada. E é muito importante o knowledge. Como cada vez mais aparecem pessoas que se querem agarrar a isto, que fazem uma rima ou duas, cada vez mais quero o respeito e valorizo cada vez mais o que é ser rapper. Porque antigamente dizia mesmo 'Não sou músico nem cantor. Não sou grande produtor…' [“Não percebes”]. Eu não sou cantor, não sou uma Alicia Keys, que consegue atingir certas notas vocais, mas sou rapper. Também mereço algum respeito. Eu não sei cantar, mas tu não consegues fazer o que faço. Tenho outro dom, penso nas rimas, faço um ritmo com as palavras. Cada vez mais vejo pessoas que por rimarem 'um-dó-li-tá' já têm o termo rapper associado. E não é bem assim. É cool, mas pode ser insultuoso para quem realmente o é.
Sentes-te insultado?
Uma parte de mim, a do gajo das batalhas... Mas, de resto, desejo o bem a toda a gente e que toda a gente dê de comer aos seus filhos. Também não sou um guardião... Na minha vida real, não [me sinto insultado]. Mas o meu lado de defensor da cultura e da arte reivindica esse bate-boca.
Há um ponto de retorno? Ou como se dá a volta a isso?
Cada um contribui da maneira que pode. Eu curtia que cada vez mais tivéssemos uma nova geração a equilibrar a ignorância com a cultura. Ou mesmo as várias gerações... Porque já estamos aqui a chegar a um ponto em que há os quarentões e os dos vintes. E às vezes eles já se sentem deslocados uns dos outros. É como a oferta noturna. Há sítios só para jovens, e se tiveres quarenta anos já te sentes mal. Ou se tiveres 17 anos não te sentes bem a ouvir Bon Jovi no Plateau. Mas a vida não tem de ser assim, não faz mal haver estas duas ofertas opostas que não se misturam. Temos sempre o Lux. Isto para fazer um paralelo com a cultura hip-hop, é possível estarmos todos em harmonia.
Se me sentir bem, se sentir esse conforto, poderá haver mais. Mais concertos, mais Sam The Kid a solo
Saltando para os teus concertos nos Coliseus de Lisboa e Porto, porque é que demorou tanto tempo para te termos a solo numa sala como esta?
Eu não penso em tempo. Isto foi uma epifania; ia a conduzir, a ouvir a "Sendo Assim" e pensei que gostava de a ouvir com orquestra. Depois pensei num concerto só de músicas que gostava de ouvir com orquestra. O ponto de partida não foram os Coliseus.
Não são concertos celebrativos de 20 anos de “Entre(tanto)”?
Não, não. Fez-se uma luz, e essa luz é importante como empurrão para outras coisas, para sentir um conforto e uma vontade que há muito tempo não tinha. Os meus amigos que cantavam comigo faleceram, o Snake e o GQ… Agarrei-me ao Mundo para sentir algo semelhante. Gosto da partilha... Orelha Negra, bora, todos… Mas aqui fez-se luz. E se me sentir bem, se sentir esse conforto, poderá haver mais. Mais concertos, mais Sam The Kid a solo.
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