Recuemos até 1997. Foi um bom ano: os Radiohead editaram o clássico “OK Computer”, alertando toda uma geração para os perigos que se escondem por entre o avanço furiosamente veloz da tecnologia. Os Verve editaram “Urban Hymns”, o álbum onde encontramos o clássico 'Bittersweet Symphony', que marcou os anos 90 alternativos e ajudaram a encher os bolsos dos Rolling Stones. E os Spiritualized editaram “Ladies and Gentlemen We Are Floating In Space”, magnífica obra de arte onde o gospel cristão e a eletricidade se fundem para criar um dos melhores discos de sempre sobre um romance que chega ao fim, sobre as drogas que se tomam após esse fim, sobre o não nos querermos reerguer do mesmo fim.

“Ladies and Gentlemen...” é um daqueles álbuns capazes de criar um culto imediato à sua volta, de angariar centenas de fiéis seguidores que, mais que numerosos, são indefetíveis na vassalagem que prestam à música que por ali se escuta, e que daí em diante passou a ser conhecida como “a fórmula Spiritualized”: canções sobre dor de corno alicerçadas numa energia e num ruído rock inacreditáveis, completos com psicadelismo muito e algum free jazz, e com uma série de referências retiradas à bíblia. Não apenas as musicais – atente-se à letra de qualquer canção dos Spiritualized e, inevitavelmente, lá encontraremos Deus ou Cristo caminhando sobre o som.

Para esses mesmos indefetíveis, Jason Pierce – guitarrista, vocalista e mentor de todo o projeto / grupo / igreja Spiritualized – ganhou uma certa aura mística, religiosa. Não adoram a música de Pierce; têm fé nela. Não acreditam no Divino; acreditam que aquilo que Pierce consegue fazer, inspirado pelo Divino, é prova da existência de algo maior que a humanidade por si só. A bíblia diz-nos que no início era o Verbo. Com os Spiritualized, no início era o Rock.

Sim, é certo; para muito boa gente, o Rock (também) é uma religião e não era preciso tomar conhecimento da palavra dos Spiritualized para o perceber. Mas há ali algo de diferente. Algo insondável. O ruído, talvez – porque, no rock dos Spiritualized, o ruído é a chave. O ruído nasce do silêncio para se apoderar do corpo, para o elevar a um outro patamar, rasgar com a sua realidade terrena. Em Paredes de Coura, nasceu logo após 'Hold On', curta intro que deu de imediato origem a 'Come Together', glorioso cântico presente em “Ladies and Gentlemen...” e que é hoje património de todos os crentes.

A fé mostrou-se inabalável e foi-se mantendo ao longo de uma hora de concerto, e só porque não haveria tempo para mais; logo a seguir, um padre de seu nome John Misty subiria ao palco para fechar o terceiro dia do festival. Mas que pode um padre contra um santo, ou melhor, contra um enviado d'Ele à terra? Pouca coisa. Porque logo após 'Come Together', o público ali presente é brindado com 'Shine a Light', que espalhou luz e magia gospel pelo recinto inteiro.

Apoiado pela sua banda e por um coro feminino, Jason Pierce pregou o seu evangelho como pôde (parece-nos, francamente, que os anos e anos de abuso de drogas começaram a ter impacto na sua forma física, algo debilitada), sentado numa cadeira durante todo o espetáculo e murmurando apenas dois “obrigado”s no final. Não que mais palavras fossem necessárias: as palavras estão ali, naquela música, naquele sonho tão real. Em 'Soul on Fire', em 'She Kissed Me (It Felt Like a Hit)', em 'I'm Your Man', 'On the Sunshine' ou no final catártico, com uma interpretação de 'Oh! Happy Day' (clássico gospel dos Edwin Hawkins Singers). Nós acreditamos nos Spiritualized. Não há como não o fazer.

Gostaríamos, também, de acreditar nos Deerhunter, mas a banda de Bradford Cox, que aqui e ali ainda vai apresentando uma ou outra ideia interessante (o uso de drones, as guitarras pop sonhadoras, o ritmo), não consegue ser pouco mais que um bocejo de início de noite. Isto quando não puxava pela nossa indignação, como por exemplo logo ao início, quando o vocalista e guitarrista exprime a sua satisfação por voltar ao... Porto. Há muita melancolia naqueles temas, uma melancolia em formato épico, apoiada sobretudo nas melodias. Mas também há uma tremenda falta de velocidade ou de perigo. Só 'Desire Lines', que até soa melhor cantada por um português, conseguiu quebrar a monotonia – isso, e o facto de Cox se ter revelado fã de Rafael Toral e Nuno Canavarro, dois dos maiores músicos nacionais no campo da música dita “experimental”...

Se a questão é a crença, há muita gente que, hoje em dia, acredita nos Black Midi: a própria banda, que se formou no liceu e hoje anda a tocar por praticamente todo o globo; os seus colegas e amigos, como os Shame, que vimos recentemente no Super Bock Super Rock e que disseram deles que eram «a melhor banda de Londres»; a Rough Trade, lendária editora indie, que se diz ter assinado um contrato de seis dígitos com eles; e dezenas de jornalistas / críticos musicais, que veem neles a next big thing no que toca à música com guitarras.

Os britânicos apresentaram-se em palco a uma hora não muito digna: o sol ainda raiava, e o sol é sinónimo de música dolente, permissiva, e não da jarda que os Black Midi foram debitando e que é francamente inclassificável. Talvez só a enorme caixa rotulada “pós-punk” tenha espaço para o quarteto, que já foi comparado a coisas tão díspares quanto os Can, King Crimson, Slint, The Fall, Bloc Party ou Abe Vigoda. As guitarras e o ritmo ora fazem dançar, ora explodem em escandaleira elétrica; o vocalista ora canta com a candura de um qualquer mago indie, ora sussurra, ora grita; o público, apanhado pela maré, não sabe o que fazer – se pensa no que está a acontecer, se se dedica ao balançar do corpo, se se atira para um crowdsurf gostoso. Talvez um festival como o de Paredes de Coura ainda seja demasiado grande para eles, mas quem os quiser apanhar num registo mais intimista poderá sempre passar pela Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, dentro de um mês.

Jonathan Wilson, que se apresentou no palco principal pouco depois dos leirienses First Breath After Coma, trouxe consigo um rock de raízes, com toda uma América no sangue, naquela que foi a sua segunda passagem por Portugal e a primeira em nome próprio. Expliquemos: Wilson foi o guitarrista de Roger Waters, nos dois concertos que o ex-Pink Floyd deu na Altice Arena, em 2018. Em Coura para apresentar “Rare Birds”, o seu último trabalho, o músico mostrou-se coeso (juntamente com a sua banda) e encantou os presentes com ótimas canções, como 'There's a Light'. E, porque estamos em tempo de celebrar Woodstock, até houve espaço para um momento à la 'Soul Sacrifice', com o baterista que o acompanhava a mostrar todos os seus atributos.

O Vodafone Paredes de Coura termina este sábado com concertos de Patti Smith, Mitski e Sensible Soccers, entre outros. Os bilhetes estão à venda em todos os locais habituais pelo preço de 55 euros.