À hora marcada e nem mais um segundo, faz-se a chamada para Valete, liga-se o gravador, preparam-se as perguntas. O rapper, nome de topo do hip-hop feito em Portugal – editou dois discos seminais dentro do género, “Educação Visual” (2002) e “Serviço Público” (2006) – está prestes a regressar aos palcos em nome próprio e há um disco, “Em Movimento”, com alguns temas já prontos a serem apresentados (o seu lançamento ainda dista um aninho, contudo) no Capitólio, este fim de semana e na próxima quarta-feira, e no Hard Club, a 21 de dezembro.
Palavra puxa palavra, Valete é um conversador nato – até quando da nossa boca sai um pedido de desculpas sincero, pela consciência de estarmos a impedir o músico de assistir à partida de outro dos seus grandes amores para além da música: o Sporting. Mas... ele nem sabia que essa partida estava a decorrer, à hora da entrevista. “Resolvi divorciar-me do Sporting, só volto nas boas exibições”, confidencia-nos, entre risos e boa disposição.
Uma boa disposição que, há cerca de dois meses, não se vislumbrava nas suas palavras e no seu rosto. A “culpa” foi de 'BFF', que foi o segundo tema do novo álbum a ser divulgado, e que gerou bastante polémica, com várias vozes a acusar Valete de sexismo e misoginia pelo relato visceral que encontramos, na canção, do assassinato de uma mulher que traiu o marido. Águas tempestuosas, que parecem já ter passado; há que concentrar esforços no futuro. Que era há muito aguardado pelos fãs, já que o rapper não lança um disco novo há 13 anos.
Estou a conseguir o que sempre quis, que é aquela coisa de ser um artista transgeracional
A dois dias de atuar perante dois Capitólios esgotados, com um terceiro a caminho, para não falar do concerto também já esgotado no Hard Club, qual é a sensação?
É uma sensação muito boa. Estive muito tempo fora da música — voltei em 2017 —, e então não sabia bem se o público ainda estava comigo, não sabia se as músicas novas tinham a capacidade de chegar a um público mais novo, que agora tem ouvido muito rap. E vi que estou a conseguir o que sempre quis, que é aquela coisa de ser um artista transgeracional. Creio que no concerto se vai sentir isso. Vais ver lá miúdos de 16 anos, vais ver pessoal de 40 anos, 30 anos... Vai ser uma diferença etária muito bonita.
O que podemos esperar destes concertos? Já tem o alinhamento preparado?
Sim, há um alinhamento preparado. Vou tentar celebrar estes 17 anos de rimas, 17 anos em que faço rap. O Capitólio é a sala perfeita para dar ali uma energia, uma vibe muito do hip-hop, a energia do hip-hop tradicional. Aquela coisa dos anos 90, uma ligação forte entre o artista e o público, uma coisa de palavra, de mensagem. Vou tentar fazer isso. Às vezes, em festivais, tu não consegues passar essa coisa que o hip-hop tem que é a mensagem, a palavra. Eu no Capitólio sinto que consigo fazer isso, um concerto tradicional de hip-hop e da cultura hip-hop.
O concerto já deverá contar com alguns temas do novo álbum, certo?
Sim, sim.
O álbum terá como título "Em Movimento". Ia perguntar se existe aqui algum jogo de palavras, pelo facto de o Valete ter regressado ao ativo após ter estado tanto tempo fora...
[Risos] É "Em Movimento" porque não vai ser um álbum num registo típico. Ou seja, o normal seria eu trancar-me num estúdio durante seis meses, um ano, e apresentar um disco com 15, 16 músicas novas. O que eu vou fazer é: revelar as músicas uma a uma e, quando o disco físico sair, todas as músicas já serão conhecidas pelo público. Por isso é que é "Em Movimento", porque eu estou a fazer o disco ao mesmo tempo que estou a fazer outras coisas, como concertos. Já lancei dois temas do novo álbum ['Colete Amarelo' e 'BFF'] e, em 2020, provavelmente, sairão mais uns quatro, seis. Creio que é um álbum para ser lançado em 2021.
Será, então, correto afirmar que o "Em Movimento" será uma espécie de compilação em vez de ser um álbum, digamos, tradicional?
Se quiseres. Se quiseres voltar aos tempos antigos, em que se iam lançando maxi-singles que depois eram agrupados num LP... Para os dias de hoje e para mim, como artista, é muito mais fácil. Demoro muito tempo a fazer as coisas, pelo que estar a lançar singles dá uma presença a Valete que eu não teria se estivesse trancado num estúdio a fazer um disco. Isso, para mim, é importante. E depois, com a forma como as pessoas estão a consumir música nos dias de hoje, acho que faz sentido. As pessoas estão muito a ouvir singles, mais do que álbuns.
Quero também mostrar às pessoas, partilhar com as pessoas esse novo talento que eu sinto que tenho, o Valete como compositor
Parece que voltamos aos primórdios, aos tempos do rock n' roll, da pop dos anos 50 e 60, em que se ouviam mais os singles que os LPs...
Exatamente. Lançavam-se singles e depois, se calhar, agrupavam-se seis, sete singles num EP ou num LP. Acho que estamos a voltar a isso.
Em julho, o Valete disse ao Rimas e Batidas que tinha este disco "pensado, mas daqui a seis meses pode ser outra coisa". Quase seis meses depois, o que mudou?
Eish, já mudou alguma coisa. Eu durante estes 17 anos fui-me apresentando, essencialmente, como um letrista, um rapper da palavra. Um rapper social, se calhar alinhado com algumas questões da esquerda política. Agora, para além desse caminho — que não vai deixar de existir, vai existir sempre —, estou também muito interessado em mostrar um Valete que aprendeu imenso ao nível da composição musical. Quero também mostrar às pessoas, partilhar com as pessoas esse novo talento que eu sinto que tenho, o Valete como compositor. É isso que me interessa mostrar. Se calhar, há seis meses não estava a pensar nisso.
Há muitos jovens que estão a desistir de fazer música, de fazer rap, porque se sentem muito pressionados com estas coisas das visualizações
Nesse sentido, em que medida é que ajudaram o Dino D'Santiago, o Here's Johnny e o SP, que colaboram neste disco?
Ajudaram imenso, imenso. São verdadeiros músicos, alguns dos maiores músicos desta década. Para mim, são geniais. A forma como eu ouvia música, que era uma coisa muito da palavra, quase uma ditadura da palavra sobre a música, mudou muito por causa deles. Eu hoje consigo mesmo ter um ouvido musical, muito por causa deles, sem dúvida.
É neste disco que o Valete consegue, por fim, fazer "a melhor rima de sempre" ou há ainda um longo caminho a percorrer?
Essa pergunta é excelente... [risos] Vou-te responder de outra forma. Há uma letra que eu estou muito interessado em escrever — e eu creio que vou escrevê-la nos próximos meses — que se chamará "A Melhor Rima de Sempre, Parte II". E a letra falará... Sabes, eu lido bué com jovens. E há muitos jovens que estão a desistir de fazer música, de fazer rap, porque se sentem muito pressionados com estas coisas das visualizações.
Imagina: tu és um miúdo que está a fazer rap ou outra coisa qualquer, partilhas a tua música no YouTube, e ficas um ano, dois anos a fazer isso e sentes que não chegaste [ao número de] visualizações que têm os grandes artistas, ou os artistas mais populares. E desistes... Isso está a acontecer muito. Muitos jovens estão a desistir porque vêem os números do YouTube e percebem que os números [deles] não estão a chegar perto dos números dos artistas populares.
Então, eu queria muito fazer uma música para esse pessoal, dizer que esta coisa de ser artista não pode ser uma coisa de popularidade. Esta coisa de ser artista é sempre uma maratona, esta coisa de ser artista tem, provavelmente, muito mais dor que fogo de artifício ou euforia, e esta coisa de ser artista, muitas vezes, é mais para os outros do que para nós. Apetece-me muito escrever sobre isso, muito. Ou seja: tu tens de ir fazer a tua melhor rima de sempre pela arte, pelo hip-hop, pela música.
Os partidos têm um capital humano incrível. São pessoas de uma qualidade impressionante, e não podem estar só nas assembleias dos partidos, na AR. Não! Têm que estar perto das pessoas
Em agosto, tive a oportunidade de entrevistar o Chuck D, por ocasião do concerto dos Prophets of Rage em Vilar de Mouros. Disse-me ele que "as pessoas estão mais despertas" para aquilo que, hoje em dia, se passa no mundo. Se assim é, porque é que não existem mais jovens a fazer rap consciente? O que é que faz mais falta, heróis ou anti-heróis?
Creio que anti-heróis, sempre. Para mim, o conceito de anti-herói tem muito a ver com a coisa de destruir o status quo, destruir o que já existe, e reconstruir uma coisa nova. Propor um mundo novo. Esse, para mim, é o conceito de anti-herói. Mas, e pensando em microrealidades e em microrevoluções, também é importante perceber o que é que nós temos de muito bom.
Eu tenho alguns amigos em partidos políticos. Eu acho que o capital humano que existe nos partidos políticos em Portugal é incrível. Incrível, mesmo. Nós temos dos melhores sociólogos, dos melhores advogados, dos melhores cientistas políticos em partidos políticos. Para mim, uma grandessíssima revolução seria nós termos essas pessoas, que têm uma qualidade profissional inacreditável, ao serviço das populações.
Deixa-me contar isto melhor: imagina que tu tens um problema nas Finanças, como muita gente tem onde eu moro, onde tu moras, em todo o lado. Imagina que tu tens que fazer uma operação urgente e o Serviço Nacional de Saúde diz-te que a tua operação só vai ser feita daqui a um ano. Imagina que tu tens um problema na Justiça. As Finanças, a Justiça, o Serviço Nacional de Saúde não irão ser benevolentes para com o teu problema. São instituições frias, estás a ver? Nós precisamos de sedes ativas, com esses militantes dos partidos, para ajudar a população a fazer essa intermediação entre as instituições do estado e as populações. Se tu tens um problema nas Finanças, devia haver uma sede na tua freguesia com militantes do PSD que te ajudassem a resolver o problema. Porque essas pessoas têm uma qualidade profissional inacreditável e, para mim, a representação dessas pessoas na tua comunidade teria muito mais importância que a representação parlamentar.
É o que te estou a dizer: os partidos têm um capital humano incrível. Tenho amigos em partidos políticos, conheço pessoas que estão lá. São pessoas de uma qualidade impressionante, e não podem estar só nas assembleias dos partidos, na Assembleia da República. Não! Têm que estar perto das pessoas. As pessoas estão com muitos problemas no dia a dia. Problemas de saúde, de justiça... De não ter sítio onde estacionar o carro, problemas tão pequenos quanto esse! Eu vivo num sítio onde não há sítio para estacionar o meu carro! Tenho que o estacionar a três quilómetros de casa, 'tás a ver?...
São pequenas coisas, que podem ser resolvidas pondo esses militantes ao serviço das populações. E isso, para mim, seria uma grande revolução e nem precisaríamos de uma mentalidade de anti-herói; é de aproveitar as coisas boas que já existem, mesmo dentro do status quo.
Tivemos mais negros eleitos para a Assembleia. Para mim, como negro, é muito importante que isto não seja simbólico. (...) Deixo aqui um apelo à Joacine e aos outros deputados negros que nós temos: façam essa representação
Aproveito, então, para lhe perguntar o que é que achou dos resultados das últimas eleições, tendo em conta que agora temos no parlamento partidos como o Livre, com Joacine Katar Moreira, e o Chega, com André Ventura...
Queria só dizer uma coisa em relação à Joacine. Não quero aprofundar muito para não ser injusto, mas é o que me apetece dizer e é uma cena sentida. A Joacine é uma mulher negra na Assembleia da República. Este momento eleitoral foi o momento em que tivemos mais negros eleitos para a Assembleia. Para mim, como negro, é muito importante que isto não seja simbólico. A representatividade da comunidade negra é das coisas que nós mais precisamos. Falo como negro. Então, deixo aqui um apelo à Joacine e aos outros deputados negros que nós temos: façam essa representação. É mesmo muito importante.
A comunidade negra em Portugal tem um nível de invisibilidade muito parecido ao que acontecia nos anos 90. Ou seja: a invisibilidade da comunidade negra continua. O meu grande apelo é esse, à Joacine, que é agora a mais popular: que faça essa representação. É o me interessa dizer.
Em relação ao André Ventura, não consigo dizer muitas coisas. Há muita coisa que tem a ver com oportunismo, há pessoas na política — em todo o mundo, não é só em Portugal — que agora estão a representar papéis e a falar de coisas nas quais, no fundo, nem sequer acreditam, só porque percebem que há ali um espaço que pode ser aproveitado. Aproveitam-no, e começam a fazer o seu teatro. Eu acredito que o André Ventura não crê em metade das coisas que diz. Acredito piamente nisso.
Em relação a Joacine, acha que estas polémicas em torno dela poderão contribuir para um efeito bola-de-neve negativo - na medida em que as pessoas poderão pensar duas vezes antes de eleger outro deputado negro - ou, caso tudo se altere, venha a ser uma bola-de-neve positiva - no sentido de se começarem a eleger mais deputados negros?
Acho que isso não vai acontecer. É mais provável que venha a ser uma bola-de-neve negativa. Eu percebo o que a Joacine está a fazer, mas é importante que ela defina, para dentro e para fora, quais são as prioridades. Isto, para mim, é muito importante. Há muita coisa que estou a ver, a ouvir falar em relação à Joacine, que para mim são fait divers. A Joacine não pode ser uma plataforma de fait divers. A Joacine é uma pessoa muito importante para as mulheres, para as feministas, para a comunidade negra. Ela tem que perceber quais são as prioridades e focar-se só nisso. E eu estou a ver a Joacine desgastada com coisas muito, muito pequenas. Ela também tem sido atacada por coisas muito pequenas — [mas são] culpa dela, também. Acho que ela tem de perceber a importância que ela tem para nós, negros, para as mulheres e focar-se nas prioridades.
Continuando nesta onda do "desgaste" - até porque é inevitável abordar a 'BFF' e toda a discussão que o tema provocou -, o Valete disse esta semana à Time Out: "Desgastei-me um bocado com essa polémica, mas aprendi". Que lições retirou, essencialmente?
Aprendi uma lição gigante. Eu não sabia que existia uma cúpula de feministas burguesas na comunicação social. Foi novo para mim, não sabia que elas tinham tanta força.
Não me lembro de uma peça cultural que tenha sido tão atacada como o meu tema. Acho que ['BFF'] foi, provavelmente, a peça cultural mais atacada de sempre
Sente que poderia ter abordado as críticas que recebeu de outra forma, também para não alimentar tanto a polémica?
Sim, poderia. Mas também não gosto de me proibir sempre que sou visceral, honesto comigo mesmo, entendes? Obviamente que fazendo outras leituras... Se eu realmente soubesse a força que elas tinham na comunicação social, provavelmente teria agido de outra forma. Mas tudo o que foi manifestado da minha parte foi sentido, foi honesto. Acho que foi justo.
Ao longo da história da música, já muitas canções abordaram a violência contra mulheres de forma bastante explícita, até misógina, sem gerar — pelo menos em Portugal — uma discussão semelhante. O Valete sente que, com a 'BFF', isso só aconteceu por preconceito para com o rap?
A coisa que mais me magoou foi ter uma jornalista que... A primeira jornalista que me fez uma entrevista — não vou dizer o nome, acho que deves saber quem foi — queria escrever um artigo sobre o meu tema, o 'BFF'. A primeira declaração que eu dei foi: "Nesse tema, eu estou a falar de uma história que aconteceu com um amigo meu". Eu tenho um amigo que está preso por violência doméstica. Na 'BFF', eu estou a narrar a história que aconteceu com ele.
Sem dúvida nenhuma [que foi preconceito]. Uma semana antes de eu lançar o meu tema, passou um filme na RTP, com o Johnny Depp como ator, em que [a temática do filme] é exatamente igual à 'BFF'. Todo o processo de um marido que vai matar a mulher quando descobre que ela o traía com o melhor amigo. Esse filme passou na RTP uma semana antes de o meu som sair... [risos] Eu acredito que no pós-25 de Abril... Não me lembro de uma peça cultural que tenha sido tão atacada como o meu tema. Não me lembro disso. Acho que ['BFF'] foi, provavelmente, a peça cultural mais atacada de sempre.
Há uns anos os Mão Morta foram bastante criticados por um vídeo onde aparecem a disparar contra vários políticos...
Pelo menos [o meu] está no top 5, percebes? Para tu veres o nível de preconceito. É o seguinte: eu lido com muitas feministas. Muitas. A diferença é que são feministas que costumam ouvir rap... Elas perceberam exatamente que produto é que estava ali. Conhecem a história do Valete. Conhecem o Valete como um rapper cinematográfico. Para elas não existiu confusão nenhuma. Não são preconceituosas em relação ao género. O mesmo conteúdo pode aparecer numa peça de teatro, num filme, num livro e não será alvo de crítica. É mesmo preconceito.
Passando para outro tema, em setembro tentei falar com o Valete a propósito dos 40 anos do lançamento da 'Rapper's Delight', dos Sugarhill Gang. Na altura não foi possível, pelo que aproveito para o perguntar agora: como olha para esta efeméride, e de que forma é que esse tema em particular moldou a música e a cultura hip-hop?
Olha, acho que quero falar pouco disso, porque nem era nascido na altura em que o tema saiu...
Mas conhece-o, presumo...
Conheço bem o tema, conheço bem o tema. Até sei que dentro do hip-hop há uma polémica muito grande, porque a letra desse tema foi bytada [roubada], como nós dizemos no rap. É uma história muito conhecida. Eu creio que mudou para sempre [o hip-hop], porque levou o rap às massas. Eu acho que, para muita gente, aquele foi o primeiro contacto com o rap e com a cultura hip-hop. A noção que eu tenho é essa, a de que foi a primeira grande apresentação do rap ao mainstream.
Vivemos numa ditadura de visualizações
A pergunta vai de encontro a uma outra. Ao Rimas e Batidas, disse também que sentia ter de cumprir "o papel de guardião da cultura hip-hop, dos valores da cultura hip-hop". Em 2002, lançou o tema 'Pseudo MCs'; em 2019, afirma sentir que "há um défice de rappers a defender a bandeira da cultura hip-hop". De há 40 anos para cá, o que é que se tem perdido?
É uma pergunta muito longa... [risos] Vamos lá. Nós estamos a viver tempos que são muito difíceis para artistas novos. Porquê: porque vivemos numa ditadura de visualizações. Não só o próprio público só reconhece aqueles artistas que têm mais visualizações, como o próprio mercado musical também só faz esse reconhecimento aos que têm mais visualizações.
Mas isso não acontece só no hip-hop, acontece também em outros géneros. Aliás, é um dos motivos pelo quais se diz que o rock morreu.
Exatamente, sem dúvida nenhuma. É uma coisa geral. E o hip-hop até é dos mais beneficiados, porque o hip-hop, atualmente, é dos géneros musicais que mais produz para o mainstream e também mais produz lixo para o mainstream. Se tu pensares em Portugal... Artistas com menos de 30 anos, a viver da música, a maior parte deles são rappers. Nós temos muito poucas bandas novas de rock a viver da música. Poucas bandas de reggae. De outros estilos musicais... A música em Portugal, no geral, está a sofrer muito. Falando do rap, o que está a acontecer é que os miúdos agora sentem que, para se profissionalizarem, têm que ter muitas visualizações. Têm que fazer hits. Têm que ser muito in. Têm que ser radiofónicos.
Inevitavelmente, com esse pensamento, o rap sofre. As letras começam a ficar mais estéreis. Os miúdos começam a fazer música que se tenta aproximar da estética pop. E cada vez temos menos letristas, cada vez temos menos rappers reflexivos, cada vez temos menos rap social. Ainda por cima no mercado português... No circuito intermédio, nos Estados Unidos, tens um Common, tens uns Run the Jewels, que são "alternativos"...
Em Portugal, para te profissionalizares, tens que ser mainstream
Sendo que, desses, só os Run the Jewels é que são um bocadinho mais novos...
Mas conseguem viver tranquilamente da música. Em Portugal, isso é muito difícil. Em Portugal, para te profissionalizares, tens que ser mainstream. Então, tu vais sempre tentar fazer música mainstream, entendes? [risos]. Ninguém está a arriscar, ninguém está a falar de coisas que geralmente importam... Em relação ao rap, ninguém está preocupado com a cultura hip-hop, com os valores da cultura hip-hop... O rap, em geral — e não é só um problema português — está a querer substituir a pop. Com coisas boas e com coisas más... Há aqui uma coisa positiva, que é o rap estar com cada vez mais musicalidade. Ok, mas o rap está cada vez mais estéril.
E não há ninguém, das novas gerações do rap em Portugal, que sinta que esteja a defender essa bandeira, essa cultura?
Há sempre, e há sempre miúdos a fazer a coisa underground, miúdos que se calhar não têm tanta visibilidade. Mas eu queria destacar muito o Slow J. Para além de ser um grande artista, sinto que é dos poucos que percebe exatamente o que é a cultura hip-hop. Percebe que a missão do hip-hop não é substituir a pop. A missão do hip-hop é transformar o que existe. O hip-hop tem posturas anti-herói, sempre. O Slow J é dos poucos artistas conhecidos da nossa praça que corre riscos. A maior parte dos artistas joga fácil. Queria muito destacar o Slow J por causa disso, é um gajo que eu sinto que realmente carrega a bandeira hip-hop por mais distante que algumas músicas [dele] possam ser da estética rap.
Seria do caraças haver um Língua Franca II, mas com outros protagonistas. Nós conseguimos criar muitas pontes entre a música brasileira e a portuguesa
A última vez que entrevistei o Valete foi por ocasião do concerto de Língua Franca no festival Super Bock Super Rock, em 2017. Ia perguntar em que estado é que se encontra esse projeto em particular.
Olha, sabes que a nossa ideia, ou uma das nossas ideias, era que Língua Franca fosse o início de um movimento. Estabelecer a ponte entre o Brasil e Portugal. Começou com o Rael, o Emicida, a Capicua e Valete mas, se houver um Língua Franca II, eu acho que o ideal até seria ser com outros protagonistas. Se calhar, até de outros estilos musicais. Eu acho que era muito importante continuar essa ponte, esse movimento. Porque há aqui uma relação muito fixe entre a Sony Portugal e a Sony Brasil: foram elas quem conseguiram pôr o projeto de pé. Creio que seria do caraças haver um Língua Franca II, mas com outros protagonistas. Um Língua Franca III, um Língua Franca IV, sempre a mudar de protagonistas. Nós conseguimos criar muitas pontes entre a música brasileira e a portuguesa. Acho que seria muito bom.
Queremos sempre a revolução exterior, e nunca há uma proposta para a revolução interior. Somos sempre perfeitos, incríveis. É um teatro
Para terminar, na entrevista à Time Out o Valete afirma que "mais importante do que projetar a coisa que queres ser, é projetar o que realmente és". O que é, nos dias que correm, o Valete?
É uma boa pergunta. Olha... Há um álbum de um rapper espanhol, chamado Tote King, do qual eu gosto muito em que o título é "Un Tipo Cualquiera". O Valete, antes de tudo, é un tipo cualquiera. É um gajo normal. Nesta altura da minha vida, o que mais me interessa é projetar para as minhas músicas o meu lado mais humano: as minhas vulnerabilidades, as minhas fraquezas, os meus tempos duros, a dor, a depressão. Interessa-me projetar isso, porque eu acho que é isso que também faz aproximar cada vez mais o rapper do poeta. O rapper, normalmente, é o imbatível, o invencível, o gajo que nunca chora, que nunca sofre. O poeta é vulnerável, é nu.
Não acha que um rapper pode ser um poeta? Um poeta de rua?
Isto é polémico, o que estamos a falar. [risos] Eu percebo isso. Tu tornas-te poeta, em primeiro lugar, quando tens uma boa capacidade para dominar a língua. Quando tens pertinência na tua escrita. Quando estás a correr ao lado da verdade. Um problema que muitos de nós, rappers, temos é esse: nós denunciamos, nós queremos sempre a revolução exterior, e nunca há uma proposta para a revolução interior. Somos sempre perfeitos, incríveis. É um teatro, entendes?... Nós temos que deixar de fazer teatro. Nós temos que falar o que vivemos, também. Temos que projetar cada vez mais o que realmente somos. Acredito nisso.
Comentários