1. Metadados? O que é isso?

São, no fundo, o rasto que deixamos quando tentamos fazer comunicações ou usamos tráfego nos nossos telemóveis. Ou seja, metadados não concernem ao conteúdo das nossas chamadas telefónicas, mas sim ao que elas significam: permitem saber a que horas alguém tentou fazer determinada chamada, quando e por quanto tempo.

2. Como assim?

Imagine que ligou para um familiar seu durante esta tarde. Quem tiver acesso aos metadados dessa conversa, não saberá do que falou, mas saberá que fez a chamada à hora x, a partir do local x e durante tempo x.

3. E para que servem estes metadados?

Sendo armazenados pelos fornecedores de serviços de telecomunicações e comunicações eletrónicas, estes metadados podem eventualmente ser utilizados para prevenção, investigação e repressão de crimes graves.

4. Isso acontece em Portugal?

Sim, desde 2008 que temos a “Lei dos Metadados”, mais concretamente, a Lei n.º32/2008, que prevê que esses dados possam ser armazenados durante um ano. Como se pode ler no sumário do documento, este pedaço de legislação partiu de uma diretiva europeia de 2006 para a “conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações”. A ideia para esta diretiva partiu da necessidade de implementar medidas de combate ao terrorismo.

5. E porque é que isso se tornou um problema?

O Tribunal Constitucional tornou público a 27 de abril um acórdão de dia 19 do mesmo mês onde considera essa lei inconstitucional e por vários motivos, todos eles se centrando, no fundo, na violação do direito de privacidade dos cidadãos, porque a lei não visa apenas pessoas suspeitas de crimes e sim toda a gente.

O TC considerou que, ao não se prever que o armazenamento desses dados ocorra num Estado-membro da União Europeia, “põe-se em causa o direito de o visado controlar e auditar o tratamento dos dados a seu respeito” e a “efetividade da garantia constitucional de fiscalização por uma autoridade administrativa independente”. Além disso, o tribunal alerta que guardar os dados de tráfego e localização de todas as pessoas, de forma generalizada, “restringe de modo desproporcionado os direitos à reserva da intimidade da vida privada e à autodeterminação informativa”.

6. Inconstitucional? Mas não tinha sido a União Europeia a propor esta lei?

Sim, mas não é por ser uma diretiva europeia que não pode colidir com as normas constitucionais dos estados-membros. Além disso, o próprio Tribunal de Justiça da União Europeia acabou por determinar em 2014 que esta lei era inválida, pois “infringia no direito fundamental ao respeito pela vida privada e à proteção de dados pessoais”.

7. Portanto, a lei foi considerada inconstitucional. E agora?

Essa é a parte complicada. A principal consequência desta decisão é que ela não estabeleceu um prazo temporal, ou seja, não disse se a recolha de metadados seria proibida apenas para o futuro, depois de conhecido o acórdão. Como tal, ela vale para o futuro e para o passado, afetando todos os casos desde 2008, quando a lei foi promulgada. Por outras palavras, sem poder recorrer aos metadados como prova, muitas das investigações criminais e processos em curso podem cair.

8. Como reagiu o Governo, o Presidente da República e restantes órgãos?

Nos dias que se seguiram a esta decisão, o temor de ver cair múltiplos processos foi expressado publicamente por vários atores políticos e judiciais:

  • A Procuradora-Geral da República, Lucília Gago, disse haver "efetivamente o perigo" de o acórdão do TC fazer com que "algumas investigações possam soçobrar".
  • Marcelo Rebelo de Sousa alertou que “reabrir os processos significa voltar à estaca zero”, já que o Tribunal Constitucional, "ao não se pronunciar" sobre os efeitos temporais da sua decisão de inconstitucionalidade sobre normas desta lei, "significa que a decisão vale para o futuro e para o passado, e nesse sentido põe em causa a aplicação da lei nos últimos anos". Em última análise, isto levaria também a Portugal ter de recorrer a outros países para processar esses metadados, adiantou.
  • O Ministério da Justiça reagiu dizendo estar a analisar "do ponto de vista prático e jurídico" o acórdão, o qual tem "relevante impacto na investigação, deteção e repressão de crimes graves".

9. Houve alguma medida para contestar a decisão do TC?

Sim, a Procuradora-Geral da República remeteu uma arguição de nulidade da decisão ao TC por entender haver "contradição entre a fundamentação e o juízo de inconstitucionalidade". Além disso, Lucília Gago “requereu a nulidade da decisão por omissão de pronúncia sobre a fixação de limites aos efeitos da mesma, requerendo que seja declarada a eficácia apenas para o futuro”.

Ou seja, considerou que o TC não justificou corretamente porque é que decidiu considerar a lei inconstitucional e não definiu prazos para os efeitos dessa decisão, ambas razões para considerá-la nula.

10. E como respondeu o Palácio Ratton?

Os juízes do Tribunal Constitucional (TC) arrasaram a argumentação da Procuradora-Geral da República, dizendo que os seus argumentos eram "manifestamente improcedentes” e que o seu requerimento carecia de “legitimidade processual e constitucional” para suscitar a nulidade da decisão.

Mais importante do que isso, o TC disse que os limites da aplicação da decisão são os estabelecidos pela Constituição. Ou seja, desde que a lei foi implementada, em 2008.

11. Mas se este era um problema que ameaçava arrastar-se, porque é que ninguém fez nada?

Houve quem combatesse esta lei. Uma notícia do Observador, de 10 de maio, recorda que a provedora de Justiça tentou convencer em janeiro de 2019 o Governo de António Costa a alterar tal norma, invocando para o efeito dois acórdãos do Tribunal da Justiça da União Europeia (UE) de 2014 e 2016, acrescentando que "nada foi feito e [que] agora milhares de processos de investigação criminal correm perigo de vida depois de o TC ter largado a bomba da inconstitucionalidade com efeitos retroativos da lei aprovada em 2008".

A resposta da ministra da Justiça à época, Francisca Van Dunem, a quem foi dirigida a recomendação da provedora de Justiça, foi não só de defesa da constitucionalidade da lei, como argumentando que “a decisão do Tribunal de Justiça da UE não deverá afetar as investigações nacionais” e que não haveria tempo para mudar a lei antes das eleições legislativas de outubro de 2019.

12. Ok, o passado é o passado. E agora?

Inicialmente, António Costa propôs que se fizesse uma "revisão constitucional cirúrgica". “Se até agora, o Tribunal Constitucional não conseguiu encontrar uma interpretação onde o bom senso prevaleça sobre a literalidade daquilo que está na Constituição, então porventura o legislador constituinte tem de ser chamado a garantir que, quer os serviços de informações quer os órgãos de policia criminal, possam recorrer aos metadados como elemento de prova, tendo em conta que é aliás isso que acontece na generalidade dos países europeus”, afirmou.

13. E isso vai para a frente?

Não, já esta segunda-feira (16) o primeiro-ministro deixou cair essa ideia. Depois de se reunir com o Conselho de Superior de Segurança Interna para analisar as "consequências práticas" do acórdão, Costa fez saber que não pretende mexer na Constituição, até porque o Tribunal de Justiça da União Europeia também já tinha deixado cair a lei, considerando assim essencial uma mudança na jurisprudência europeia sobre esta matéria.

Ao invés, o que o Governo vai fazer é apresentar em junho uma revisão da lei dos metadados, tendo o Ministério da Justiça constituído já um grupo de trabalho para pensar nas alterações. Costa disse ser preciso “um novo quadro legislativo respeitando a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e do Tribunal Constitucional e que não desmunicie o Estado de Direito das ferramentas para combater a criminalidade mais grave”.

14. Se essa alteração não vingar, o que pode acontecer?

Perante a possibilidade de haver “um terramoto” na justiça com a reabertura dos processos, Costa garantiu que, ao menos, a decisão não vai afetar os casos transitados em julgado. “O Artigo 282 número 3 da Constituição da República é muito claro: As declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral não afetam os casos julgados, a não ser quando o Tribunal Constitucional não ressalva essa consolidação do caso julgado”, sustentou o primeiro-ministro.

Em defesa desta linha de interpretação, António Costa advogou que, no caso concreto dos metadados, o Tribunal Constitucional “não fez nenhuma ressalva”.

(Artigo corrigido às 14h59)